sexta-feira, 29 de março de 2013

Legenda Perusina 60-65.

[60]

Durante um tempo, quando o bem-aventurado Francisco vivia junto da igreja de Santa Maria da Porciúncula e os frades ainda eram poucos, o bem-aventurado Francisco ia, às vezes, por aquelas vilas e igrejas ao redor da cidade de Assis, anunciando e pregando aos homens que fizessem penitência. E carregava uma vassoura para varrer as igrejas. Porque o bem-aventurado Francisco ficava muito sentido quando entrava numa igreja e via que não estava limpa, e por isso, sempre, depois que pregava ao povo, acabado o sermão, fazia reunir todos os sacerdotes que havia no lugar, num lugar afastado, para não ser ouvido pelos seculares, e pregava a eles sobre a salvação das almas, mas principalmente para que tivessem um cuidado solícito por conservar limpas as igrejas, os altares e tudo que serve para celebrar os divinos mistérios.



[61]

Pois, num dia em que o bem-aventurado Francisco fora a uma igreja de uma vila da cidade de Assis, começou a varre-la, e logo se espalhou o boato naquela vila, principalmente porque ele visto e ouvido de boa vontade por aquelas pessoas. Mas quando isso foi ouvido por um sujeito chamado João, da maior simplicidade, que estava arando num campo seu perto daquela igreja, ele foi logo para lá e o encontrou varrendo a igreja. Disse-lhe: “Irmão, dá-me a vassoura, porque quero te ajudar”. E, tomando a vassoura, dele, varreu o resto.

E, sentado, disse ao bem-aventurado Francisco: “Irmão, já faz tempo que tenho vontade de servir a Deus, e mais ainda depois que ouvi falar de ti e de teus frades, mas não sabia como chegar a ti. Mas depois que aprouve a Deus que eu te visse, quero fazer tudo que te agradar”. O bem-aventurado Francisco, considerando o seu fervor, exultou no Senhor, principalmente porque tinha, então, poucos frades e porque lhe parecia que poderia ser um bom religiosos, por sua pura simplicidade. Então lhe disse: “Irmão, se queres ser de nossa vida e sociedade, é preciso que te desapropries de todas as tuas coisas que podes ter sem escândalo, e que dês tudo aos pobres, segundo o conselho do santo Evangelho, pois foi isso que fizeram os meus frades, que puderam”.

Ouvindo isso, ele foi imediatamente para o campo, onde deixara os bois, soltou-os e trouxe um para o bem-aventurado Francisco, dizendo: “Irmão, servi durante tantos anos a meu pai e a todos de minha casa; ainda que seja pequena esta parte da minha herança, quero tomar este boi como a minha parte e dá-lo aos pobres, como melhor te parecer segundo Deus”. Mas quando seus parentes e irmãos, que ainda eram pequenos, viram que queria abandoná-los, começaram a chorar tão fortemente e tão alto, eles e todos da casa, que por isso moveu-se a piedade do bem-aventurado Francisco, principalmente porque a família era grande e fraca.

Então o bem-aventurado Francisco lhes disse: “Preparai e fazei uma refeição para nós todos comermos juntos, e não choreis, porque vou deixar-vos alegres”. Eles logo prepararam, e todos comeram com muita alegria. Depois da refeição, o bem-aventurado Francisco lhes disse: “Este vosso filho quer servir a Deus, por isso vós tendes que ficar alegres, não tristes. E não só segundo Deus, mas também de acordo com este século, isso será atribuído a vós para honra e proveito das almas e dos corpos, porque Deus fica honrado pela vossa carne, e todos os nossos frades serão vossos filhos e irmãos. E porque é uma criatura de Deus e quer servir ao seu Criador, aquele para quem servir é reinar, não posso nem devo devolvê-lo a vós; mas, para que recebais e tenhais uma consolação por causa dele, quero que ele se exproprie desse boi em vosso favor, como a pobres, ainda que ele devesse dá-lo a outros pobres, segundo o conselho do santo Evangelho”.

E todos ficaram consolados com as palavras do bem-aventurado Francisco, e se alegraram principalmente porque o boi lhes foi devolvido, porque eram pobres. E porque o bem-aventurado Francisco amava demais e sempre lhe agradava a santa simplicidade, em si e nos outros, logo que o vestiu com os panos da Religião, levava-o como seu companheiro. Pois ele era de tamanha simplicidade que se achava obrigado a fazer tudo que o bem-aventurado Francisco fizesse. Por isso, quando o bem-aventurado Francisco estava em alguma igreja ou em algum outro lugar afastado, para a oração, ele queria vê-lo e espiá-lo, para se conformar com todos os seus gestos.

Então, se o bem-aventurado Francisco dobrasse os joelhos, ou juntasse as mãos para o céu, ou cuspisse, ou tossisse, ele fazia tudo igual. E o bem-aventurado Francisco começou a questioná-lo, com muita alegria, sobre esse tipo de simplicidade. Ele respondeu: “Irmão, eu prometi fazer tudo que tu fazes, por isso quero fazer tudo que tu fazes”. O bem-aventurado Francisco ficava admirado e alegre com isso, vendo-o em tão grande pureza e simplicidade. Pois começou a ser tão perfeito em todas as virtudes e bons costumes, que o bem-aventurado Francisco e os outros frades ficavam muito admirados de sua perfeição. E não muito tempo depois, ele morreu naquela santa perfeição. Por isso o bem-aventurado Francisco, com muita alegria interior e exterior, falava entre os seus irmãos do seu comportamento, e não o chamava de Frei João mas de São João.



[62]

Em certa ocasião, o bem-aventurado Francisco andava pregando pela província das Marcas. Aconteceu que um dia, quando estava pregando ao povo de uma vila, um homem se aproximou dele, dizendo: “Irmão, quero deixar o século e entrar na tua Religião”. O bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Irmão, se queres entrar na Religião dos frades, primeiro é preciso que, de acordo com a perfeição do santo Evangelho, dês todas as tuas coisas aos pobres, e depois te livres de tua vontade em todas as coisas”. Ouvindo isso, ele foi rapidamente e, levado pelo amor carnal e não espiritual, deu todas as suas coisas aos seus parentes. E voltou ao bem-aventurado Francisco, dizendo-lhe: “Irmão, eu me desapropriei de tudo que era meu”. Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Como fizeste? Ele respondeu: “Irmão, dei tudo que era meu a alguns parentes meus, que tinham necessidade”. O bem-aventurado Francisco, percebendo logo, pelo Espírito Santo, que o homem era carnal, disse-lhe: “Vai pelo teu caminho, Irmão Mosca, porque deste o que era teu aos parentes e queres viver de esmola entre os frades”. Ele pegou imediatamente o seu caminho, sem querer dar as suas coisas aos outros pobres.



[63]

Nesse mesmo tempo, como o bem-avenrturado Francisco morasse no lugar de Santa Maria, aconteceu que, para o proveito de sua alma, foi introduzida nele uma gravíssima tentação do espírito, de modo que seu espírito e seu corpo ficaram muito atribulados, por dentro e por fora. Chegou a ponto de se afastar da familiaridade com os irmãos, principalmente porque, por causa dessa tentação, não podia se mostrar alegre entre eles, como era seu costume. Afligia-se não só pela abstinência de comida mas também pela de palavras; ia muitas vezes para a oração no bosque que havia perto da igreja, para mostrar melhor sua dor e para poder derramar suas lágrimas mais abundantemente diante do Senhor, para que, no meio de tanta tribulação, o Senhor, que tudo pode, se dignasse mandar-lhe remédio do céu.

Como já tivesse sido tão atribulado por essa tentação durante mais de dois anos, de dia e de noite, aconteceu que um dia, quando estava em oração na igreja de Santa Maria, foi-lhe dita em espírito aquela palavra do santo Evangelho: “Se tivesses fé como um grão de mostarda e dissesses àquele monte para sair de seu lugar e se transferir para outro, isso aconteceria”. São Francisco respondeu: “Que monte é esse?”E lhe foi respondido: “Esse monte é a tua tentação”. Disse o bem-aventurado Francisco: “Portanto, Senhor, faça-se em mim como disseste”. E ficou livre imediatamente, a ponto de lhe parecer que nunca tinha tido aquela tentação.



[64]

Certa vez, num dia em que o bem-aventurado Francisco tinha voltado para a igreja de Santa Maria da Porciúncula, encontrou aí o simples Frei Tiago com um leproso cheio de feridas, que tinha ido para lá no mesmo dia. O santo pai tinha recomendado muito a ele aquele leproso e principalmente todos os outros leprosos que estivessem muito chagados. pois naqueles dias os frades moravam nos hospitais dos leprosos. Mas esse Frei Tiago era como um médico dos que estavam muito chagados, e de boa vontade tocava suas feridas, trocava-os e cuidava deles.

O bem-aventurado Francisco disse a Frei Tiago, como se o estivesse repreendendo: ”Tu não devias levar assim os irmãos cristãos, porque não é honesto nem para ti nem para eles”. O bem-aventurado Francisco chamava os leprosos de “irmãos cristãos”. Mas o santo pai disse isso porque, embora gostasse de que os ajudasse e servisse, não queria que levasse para fora do hospital os muito chagados, principalmente porque esse Frei Tiago era muito simples e muitas vezes ia à igreja de Santa Maria com algum leproso, e principalmente porque as pessoas costumavam ter asco dos leprosos que fossem muito chagados. Tendo dito isso, o bem-aventurado Francisco logo se repreendeu e disse sua culpa a Frei Pedro Cattani, que então era o ministro geral, principalmente porque o bem-aventurado Francisco achou que o leproso ficou envergonhado por causa da repreensão de Frei Tiago. E por isso disse sua culpa, para satisfazer a Deus e ao leproso.

E disse o bem-aventurado Francisco a Frei Pedro: “Eu te digo que confirmes a penitência que quero fazer por isso e não me contradigas”. Disse-lhe Frei Pedro: “Irmão, faça-se como te agradar”. Pois Frei Pedro tinha tanta veneração e respeito pelo bem-aventurado Francisco, e lhe era tão obediente, que nem presumia mudar sua obediência, embora nessa e em muitas outras ocasiões ficasse por isso aflito interior e exteriormente.

O bem-aventurado Francisco disse: “Que seja esta a minha penitência: que eu coma no mesmo prato com o irmão cristão”. E assim se fez: quando o bem-aventurado Francisco sentou-se à mesa com o leproso e os outros frades, foi posta uma escudela entre os dois. Pois o leproso estava todo machucado e ferido, principalmente tinha os dedos com que comia contraídos e sangrentos de modo que sempre, quando os punha no prato, derramava sangue nele. Vendo isso, Frei Pedro e os outros frades ficaram muito tristes, mas não tinham coragem de dizer nada, por respeito ao santo pai. Quem escreveu isto, viu e prestou testemunho.



[65]

Certa vez, o bem-aventurado Francisco ia pelo vale de Espoleto e com ele ia Frei Pacífico, que foi da Marca de Ancona e no século era chamado “rei dos versos”, nobre e cortês mestre dos cânticos. E se hospedaram num hospital de leprosos de Trevi. E o bem-aventurado Francisco disse a Frei Pacífico: “Vamos à igreja de São Pedro de Bovário, porque quero ficar lá esta noite”.

A igreja não estava muito longe do hospital e ninguém ficava lá, principalmente porque naquele tempo tinha sido destruído o castelo de Trevi, de modo que ninguém permanecia no castelo ou na vila de Trevi. E acontece que quando o bem-aventurado Francisco ia indo para lá, disse a Frei Pacífico: “Volta para o hospital, porque quero ficar sozinho aqui nesta noite, e volta a mim amanhã bem cedo”.

Mas quando o bem-aventurado Francisco lá ficou sozinho e disse o completório e outras orações, quis descansar e dormir mas não pôde, e seu espírito começou a temer e a sentir sugestões diabólicas. Levantou-se imediatamente e saiu fora da casa persignando-se e dizendo: “Da parte de Deus onipotente eu vos digo, demônios, que façais tudo que vos foi permitido por nosso Senhor Jesus Cristo para prejudicar meu corpo, porque estou preparado para agüentar tudo, pois o maior inimigo que eu tenho é o meu corpo: por isso vingar-me-ei de meu adversário e inimigo”. Pararam na mesma hora aquelas sugestões. Ele voltou para o lugar onde se deitava, aquietou-se e dormiu em paz.

Quando amanheceu, Frei Pacífico voltou para junto dele. O bem-aventurado Francisco estava em oração diante do altar dentro do coro; Frei Pacífico ficou em pé, esperando-o fora do coro, diante do crucifixo e rezando ao mesmo tempo ao Senhor. E quando Frei Pacífico começou a rezar, foi elevado em êxtase, se no corpo ou fora do corpo Deus soube, e viu muitas cadeiras no céu, entre as quais uma mais eminente que as outras, gloriosa e fulgente, e ornada com todas as pedras preciosas. Admirando sua beleza, começou a pensar consigo mesmo o que era essa cadeira e a quem pertencia. E logo ouviu uma voz que lhe dizia: “Esta cadeira foi de Lúcifer, e no seu lugar vai sentar-se nela o bem-aventurado Francisco”. E voltando a si, logo o bem-aventurado Francisco saiu ao seu encontro. Ele se jogou imediatamente aos pés do bem-aventurado Francisco, em forma de cruz, considerando-o como se já estivesse no céu, por causa da visão que tivera sobre ele, e lhe disse: “Pai, perdoa-me os meus pecados e roga ao Senhor que me perdoe e tenha misericórdia de mim”. E, estendendo a mão, o bem-aventurado Francisco o fez levantar-se e soube que tinha visto alguma coisa na oração. Parecia todo mudado, e falava ao bem-aventurado Francisco não como a alguém que vivia na carne mas como a alguém que já reinava no céu. Depois, como de longe, porque não queria contar a visão ao bem-aventurado Francisco, Frei Pacífico interrogou o bem-aventurado Francisco dizendo-lhe: “O que achas de ti mesmo, irmão?”.

O bem-aventurado Francisco respondeu e lhe disse: “Eu acho que sou um homem mais pecador que qualquer outro que haja no mundo”. E na mesma hora foi dito a Frei Pacífico no coração: “Nisso tu podes saber que foi verdadeira a visão que tiveste”; porque como Lúcifer foi jogado daquela cadeira por sua soberba, assim o bem-aventurado Francisco, por sua humildade, vai merecer ser exaltado e sentar-se nela”.


quinta-feira, 28 de março de 2013

Crucifixo, livro de rezas do cristão, por S. Afonso de Liguori.

O Crucifixo, "o livro de rezas do cristão"

(Santo Afonso de Ligório)

O Crucifixo é o livro de rezas do cristão, é o breviário da fé, o epítome da ciência divina, o instrumento das bênçãos, o topo de todas as virtudes e o símbolo das esperanças imortais.

Fato admirável! Este símbolo, tão singelo quão sublime, está ao alcance de todas as idades; fala e compreende todas as línguas; corresponde a todas as necessidades, todas as condições, a todas as situações; instrui e consola; sustenta os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os fiéis e os pecadores, os sábios e os ignorantes; resume em si todas as exortações e todas as prédicas; é a figura tangível de todos os mistérios de nossa redenção. Que humano coração poderá conservar-se indiferente e frio em face de um benfeitor generoso? Ora, o Crucifixo é imagem daquele que nos salvou e que livrou do opróbrio a nossa família e da servidão todos os nossos antepassados.

Não é para admirar, pois, que lhe reservemos sempre um lugar de honra em nossa vida, que o beijemos com amor e que lhe não lancemos senão olhares cheios de simpatia, respeito e reconhecimento.

Estas impressões vivas e fortes, a alma cristã as tem mil vezes experimentado. E na verdade, para animar o fervor, basta considerar o crucifixo com uma atenção calma e serena. Não sei que secreta virtude sai dele então que brandamente nos toca e se insinua na alma, enternecendo-a, dilatando-a e elevando-a até Deus. Sem dúvida que emoções tais nem sempre se enlaçam num encadeamento de orações, mas em si contêm luminosas partículas que ao sopro de Deus se espalham esbraseantes como labaredas de amor. Demais as simples efusões de um coração comovido têm para Deus um preço infinitamente maior que as orações mais ricas e eloquentes.

Não, não é necessário saber ler para aprender a rezar: o Crucifixo é o livro dos iletrados, dos analfabetos e das crianças, mas é também para os sábios uma filosofia e uma teologia.

Pois, o que sabem acaso os homens que aprenderam muitas coisas e que, no meio de todas essas coisas, ignoram a Deus e ignoram o que eles próprios são? A ciência que não esclarece nem as origens nem os fins últimos do homem é bem insuficiente e estéril. Por que está ele na terra? De onde vem? Para onde vai? Que caminho deve ele seguir? Qual a causa das suas lutas e dos seus sofrimentos? Qual é a condição do seu triunfo e da sua reabilitação?

Qual é em definitivo o fim da sua vida e da sua morte?

A estes problemas capitais o Crucifixo dá soluções. Faz-nos ele pressentir a nobreza de nossa origem e a grandeza de nosso destino, resume ao mesmo tempo a doutrina das lágrimas e a ciência das celestes consolações e tanto ilumina o passado como as coisas presentes e futuras.

Todos os ensinamentos do cristianismo descem do Crucifixo como do alto de um púlpito sagrado.

Meditando-os com fé, nós contemplamos a majestade da Santíssima Trindade; adoramos o filho de Deus encarnando na natureza humana, o divino Emanuel, o desejado das nações, a esperança única dos descendentes de Eva; glorificamos enfim a Vítima que, para nos resgatar, oferece o Seu sangue e expira na cruz "Transpassaram-lhe os pés e as mãos", dizia o profeta; lacerou-lhe a fronte uma coroa de espinhos e a ponta de uma lança rasgou-lhe o coração.

O emblema deste augusto sacrifício não nos dá somente a chave da ciência; inicia-nos também no mistério das virtudes sobrenaturais. A linguagem do Crucifixo, bem a compreendem os que produzem na sua vida cristã a paciência, a abnegação, a resignação, a caridade e a divina mansidão de Jesus Cristo.

O que é mais capaz de nos inspirar o horror do mal e o amor do bem, do que esta imagem sagrada?! Que tocante exortação há nela às almas generosas! É

Jesus Cristo quem lhes fala: "Aquele que me quer acompanhar, renuncie-se a si próprio e siga-me!" O crucifixo estimula a coragem, dissipa o medo e mostra todo o valor dos sofrimentos; desde então cada dor que se junte às dores de Jesus Cristo, como a gota da água ao oceano, adquire um mérito que faz jus a uma recompensa.

O divino Salvador quer que participemos do conteúdo do seu cálice. Ele, sofrendo por nós, não aboliu o sofrimento, nem morrendo por nós nos isentou da morte; mas por seu sacrifício voluntário santificou os sofrimentos e deu vida à morte.

Grande lição que nos indica tudo o que devemos fazer e tudo o que devemos esperar. O crucifixo nos mostra a razão por que sofremos, o modo como é preciso sofrer e quais são os frutos dos sofrimentos.

Dá-nos, além disso, o exemplo da obediência cristã. Em Jesus Cristo não se veem os murmúrios nem revoltas nem represálias; ele se submete sem resistência a todas as provas e a todos os ultrajes. Que mansidão e que magnanimidade! Que bondade imensa e que inesgotável misericórdia!

O Crucifixo fala aos olhos e ao coração, excita os bons desejos, nutre a piedade e abre a fonte das lágrimas. Ele gera os heróis e gera os mártires.

Ainda mesmo que a alma infiel se ache inteiramente em trevas, a cruz dardeja um rutilante raio que acorda a consciência, apazigua o desespero e enxota os terrores.

A cruz é como uma ponte misteriosa lançada sobre o abismo; é um caminho por onde se vai à pátria; é a alavanca que nos ergue acima de nós mesmos e que nos transporta para os braços de nosso Pai. O Salvador crucificado pagou o resgate do pecador e advoga a nossa causa. Ele é hoje o que era ontem e o que será nos séculos dos séculos; cura os enfermos e dá vista aos cegos, ouvido aos surdos, palavra aos mudos e vida aos mortos. Habituemo-nos a conversar com o nosso Crucifixo; estudemos este luminoso símbolo.

Ah! Desgraçadamente muitos cristãos o não compreendem! Amemo-lo como se ama um amigo fiel e um supremo consolador; veneremo-lo como se venera a venerabilíssima imagem de um Salvador. Ele é o estandarte da nossa religião; cerquemo-lo de ferventes homenagens e ergamo-lo bem alto nos combates da fé. É o escudo da nossa esperança oponhamo-lo com firmeza às seduções do mundo. É o para-raios que protege os lares; reunamo-nos em torno dele no dia das tempestades e dos perigos.

E quando soar a nossa última hora tomemo-lo às mãos e apertemo-lo ao seio, que ele suavizará a nossa agonia, dissipará as trevas que nos rodearem e nos abrirá as portas do céu.

quarta-feira, 27 de março de 2013

O "mito" do Concílio Vaticano II.

20/03/2013 - 03h30
Análise: Papa terá que enfrentar mito do Vaticano 2º


MATEUS SOARES DE AZEVEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Da substância dos 16 documentos elaborados durante o concílio Vaticano 2º (1962-65) sobre uma variedade de assuntos, entre os quais o ecumenismo e a relação do catolicismo com outras religiões, pouco se conhece.

Tampouco são lembrados os encarniçados debates, as numerosas sessões, a história de sua convocação por João 23 e de sua conclusão, já sob a batuta de Paulo 6º.

Mas há rica e variada "mitologia" envolvendo o evento. Confrontá-la será o principal desafio de Francisco.

Tal mitologia sustenta que, antes do Vaticano 2º, a igreja era uma instituição retrógrada, superada, mesmo reacionária. O Concílio teria sido uma lufada de ar fresco.

Mas se a igreja tivesse sido este corpo fossilizado, como teria sobrevivido aos inúmeros desafios e confrontos que a ameaçaram?

Se fosse tal como a descrevem, certamente não teria sobrevivido ao fascismo, nem ao comunismo de Stálin, tampouco ao liberalismo. A verdade é que os documentos do Concílio não são conhecidos senão de especialistas.

O Vaticano 2º se tornou como um "Bezerro de Ouro" para muitos. Tornou-se tão sacrossanto que não pode ser criticado ou questionado.

Os meros resultados quantitativos do Concílio, contudo, são desastrosos para a própria tradição que ele supostamente veio renovar. Os números e a situação espiritual geral mostram que o projeto fracassou.

Esperava-se uma "renovação", mas o que se tem visto após meio século são crescente secularização e dessacralização da sociedade, abandono da fé por milhões, escândalos morais e corrupção financeira.

Parafraseando Nelson Rodrigues, resta saber o que Francisco fará para impedir que a América Latina logo se torne "o maior continente ex-católico do mundo".

A primeira coisa é colocar a verdade no lugar do mito do Concílio.

MATEUS SOARES DE AZEVEDO é mestre em História das Religiões pela USP

segunda-feira, 25 de março de 2013

Cruzada Cordimariana

Cruzada Cordimariana
Com o fim de estabelecer no mundo
a devoção ao Coração Doloroso
e Imaculado de Maria

Deus o quer!

“Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Coração Imaculado.
A quem a abraçar, prometo a salvação;
E estas almas serão amadas com predileção por Deus,
como flores colocadas por mim para adornar Seu trono”
(Nossa Senhora em Fátima)

Maria merece e o pede
“Eis aí a tua Mãe” (Jo. 19, 27)
“Fazei o que Ele vos disser” (Jo. 2, 5)

Nós precisamos
“Salvai-nos, Senhor, que perecemos!” (Mt. 8, 25)

O que é a Cruzada Cordimariana?

A resposta ao pedido que nos fez a Virgem Maria em Fátima. Um chamado urgente que quer despertar as almas da letargia, da indiferença à Vontade de Deus, manifestada em Fátima. Não se trata de uma nova devoção nem de acrescentar outra invocação, mas de identificar-nos com a Vontade de Deus como perfeitos cristãos através do Coração de Maria.

Finalidade da Cruzada

Estender e estabelecer por todos os meios a devoção ao Coração Doloroso e Imaculado de Maria. Que haja muitos filhos do Coração de Maria que instaurem esta devoção para que se salvem muitas almas, se estabeleça a paz e chegue o reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por que a chamamos Cruzada?

Porque Nossa Senhora, quando nos pediu em Fátima, utilizou as mesmas palavras com que os cruzados medievais se lançavam à luta: “Deus o quer!”. Hoje Deus nos pede outra Cruzada mais urgente, mais necessária, de muito maior transcendência, convocada pela mesma Rainha do Céu, que vem a nos manifestar a vontade do seu Filho.

Por que o Coração de Maria?

Porque Deus o quer assim: “Deus quer que se estenda a todo o mundo a devoção ao meu Coração Imaculado”.

Porque o seu Coração é o Templo de Deus que nos comunica as maiores graças de união a Deus: “Essa gente fica tão contente só porque os demais lhes dizem que Nossa Senhora mandou rezar o Rosário… O que seria se soubessem que Ela nos mostrou a Seus no seu Coração Imaculado, nessa luz ao grande…!” (Francisco).Porque por ele obteremos as graças que precisamos, de conversão, de santificação, de salvação: “Deus nos dá todas as graças pelo Coração Imaculado de Maria” (Jacinta).

Porque é a devoção para estes últimos tempos: todas as graças, vitórias e triunfos virão pelo estabelecimento da devoção ao Coração de Maria. In hoc signo vinces: por este sinal vencerás.
Porque o “meu Coração Imaculado será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá a Deus” (Nossa Senhora de Fátima).

Diga sim a Nossa Senhora

A nós, a cada um, a nossa Mãe nos pediu e nos pede cada dia, e nos corresponde contribuir com a nossa parte para dito triunfo. Só nos pede que disponhamos, que nos deixemos usar como e quando Ela quiser para conseguir o triunfo do seu Coração Imaculado. É urgente que respondamos, que despertemos, pois “a Virgem está muito triste porque ninguém faz caso da sua mensagem” (Lúcia).

E o que eu posso fazer?

Consagrar-se ao seu Coração Imaculado e propagar esta devoção. Disse Jacinta a Lúcia: “Tu ficas aqui para dizer que Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Quando vás a dizê-lo, não te escondas”. Todos estamos chamados a colaborar. Não há limites de idade nem condição. Também as crianças podem e devem se comprometer.

Objetivos da Cruzada

Fazer uma campanha da consagração ao Coração de Maria: consagração de adultos, crianças, jovens, famílias, lares, escolas, igrejas, dioceses, cidades, etc. A consagração não deve consistir só na leitura de uma fórmula, senão que deve ser todo um programa de vida católica e um solene compromisso de viver sob o amparo especial de Maria. Desta maneira, prepararemos e obteremos a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria: “Chegou o momento em que Deus pede ao Santo Padre que, em união com todos os bispos do mundo, faça a consagração da Rússia ao meu Coração, prometido para salvá-la por este meio”.

Propagar a prática dos primeiros sábados: “Dize que todos os que durante cinco meses, no primeiro sábado, se confessem, recebam a Sagrada Comunhão, rezem o terço, me façam quinze minutos de companhia, meditando nos quinze mistérios do Rosário, com o fim de me desagravar, prometo assisti-los na hora da sua morte com todas as graças necessárias para a sua salvação”.

Praticar o espírito de reparação ao Coração de Maria pedido pelo Céu em Fátima, mediante o Terço, a oração, os sacrifícios e o cumprimento das obrigações do próprio estado. “Quereis vos oferecer ao Senhor, prontos a fazer sacrifícios e aceitar voluntariamente todas as penas que Ele queira vos enviar, em reparação de tantos pecados com que se ofende a Divina Majestade, em desagravo das blasfêmias e das ofensas feitas ao Imaculado Coração de Maria, e para obter a conversão de tantos pecadores…?”.
Consolar o Coração de Maria: “Olha, milha filha, o meu Coração cercado de espinhos que os homens ingratos me cravam sem cessar com blasfêmias e ingratidões. Tu, ao menos, vê de me consolar”. Trata-se de suprir e oferecer o amor e veneração das almas que não o amam e o veneram. É um dever de gratidão! “Não disse Nossa Senhora – exclamava Francisco – que tínhamos que sofrer muito para reparar a Nosso Senhor e o seu Imaculado Coração de tantos pecados com que são ofendidos? Eles estão tão tristes! Se com estes sofrimentos pudéssemos consolá-los, já ficaríamos contentes!”.

Um apostolado cordimariano: “Jesus quer se servir de ti para dar-me a conhecer e amar. Ele quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Coração Imaculado”. “Para salvá-los [os pecadores] o Senhor quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Coração Imaculado”. No fundo a Cruzada Cordimariana é essencialmente a resposta a esta petição: É essencialmente apostólica! “Fogo vim trazer à terra, e que quero senão que arda?” (Lc. 12, 49).

Sejamos apóstolos do Coração de Maria

Há duas maneiras muito simples:

1ª. Cooperando livremente: com a Comunhão, o terço, os sacrifícios, o exemplo, a difusão deste folheto, enfim, tudo o que a Rainha do Céu nos for indicando, sugerindo, ordenando…

2ª. Alistando-se como Cruzado cordimariano: dê um passo à frente e apresente-se sob o estandarte do Coração de Maria e:
- Consagrando-se ao seu Imaculado Coração.
- Faça os primeiros sábados do mês.
- Reze diariamente o Santo Terço.
- Repare com sacrifícios e orações.
- Console a sua Mãe na sua dor.
- Propague a devoção ao Coração de Maria.

Imaculado Coração de Maria, rogai por nós!

“Tu ficas aqui para dizer que Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Quando vás a dizê-lo, não te escondas. Dize a toda a gente que Deus concede as graças por meio do Imaculado Coração de Maria. Que peçam-nas a Ela, que o Coração de Jesus quer que ao seu lado se venere o Coração Imaculado de Maria, que peçam a paz ao Imaculado Coração de Maria, que Deus a confiou a Ela. Se eu pudesse pôr no coração de toda a gente a luz que tenho aqui dentro do peito, que me está abrasando e me faz gostar tanto do Coração de Jesus e do Coração de Maria” (Jacinta ao despedir-se de Lúcia).

Santa Margarida Clitherow - mártir.

Santa Margarida Clitherow, a “Pérola de York”

Mãe de família, católica destemida e mártir, brilhou pela fidelidade à verdadeira Igreja e pelo destemor com que enfrentou seus inimigos

Plinio Maria Solimeo

Pode-se afirmar que não existe ódio maior do que aquele que se insurge contra a verdade religiosa. Temos exemplo disso no requinte de crueldade com que foram tratados os primeiros cristãos. E também no sofrimento dos católicos durante a pseudo Reforma Inglesa nos séculos XVI e XVII. Um desses mártires foi Santa Margarida Clitherow. Primeira mulher a ser martirizada nessa época, ela foi esmagada sob um peso de cerca de 700 quilos, por não querer renegar a verdadeira fé católica e por albergar sacerdotes católicos.

A “Ilha dos Santos” sob tormenta

A Inglaterra foi outrora chamada a Ilha dos Santos. Entretanto, desde a Idade Média, seus reis se tornaram em geral prepotentes no tocante aos direitos da Igreja. Isso levou, por exemplo, ao martírio de São Tomás Becket (1170). Posteriormente, em 1531, Henrique VIII rompeu com o Papa por este negar-se a anular seu legítimo casamento com Catarina de Aragão. O lúbrico rei declarou-se “Protetor e Cabeça Suprema da Igreja da Inglaterra”. Assim nasceu o anglicanismo.

Quem não concordasse com seu divórcio e a adoção desse título, ele mandava decapitar, como sucedeu com São Tomás Morus e São João Fisher, em 1535. Por igual motivo ordenou a execução de alguns monges cartuxos e franciscanos. A partir de então, por circunstâncias diversas, foi-se dando a gradual protestantização do que restara de católico na religião anglicana. E o cerco aos católicos foi se tornando cada vez mais estreito, sendo vários deles martirizados.

Em 1558, a ímpia Elisabeth I sucedeu a seu pai no trono. Ela não só seguiu a funesta política de Henrique VIII, mas radicalizou-a cada vez mais. Assim, foi necessário aos católicos fiéis, principalmente aos membros do clero, ocultarem-se para praticar a Religião verdadeira, sob a ameaça constante de prisão e morte. A Santa Missa foi proibida, e a população obrigada a participar dos “serviços” nas igrejas anglicanas.

Radical conversão à verdadeira fé

Nesse contexto, em York, pelo ano de 1556, nasceu Margarida, filha de Tomás Middleton, um bem-sucedido comerciante de cera e comissário da cidade. Em 1571 ela se casou com João Clitherow, fazendeiro e açougueiro abastado, que exercera e exerceria ainda vários cargos públicos em York. Tornado um de seus mais ricos cidadãos, ele foi autorizado a usar o Sir antes do nome. Margarida o ajudava no açougue, sendo muito querida dos clientes por causa de sua honestidade e simpatia.

A família de Tomás Middleton não opusera resistência à nova religião e à rainha como cabeça da “igreja”. Por isso Margarida foi educada no anglicanismo.

Apesar de não saber ler nem escrever — uma das consequências da perseguição foi a supressão das ordens religiosas e do sistema educacional inglês —, Margarida tinha boa inteligência e muita perspicácia. Analisando a religião na qual se educou, “não encontrou substância, verdade nem consolo cristão nos ministros da nova igreja, nem em sua doutrina; ao inteirar-se de que muitos sacerdotes e leigos sofriam ao defender a antiga fé católica” – comenta seu confessor e biógrafo, Pe. João Mush1 – Margarida quis instruir-se nela, convertendo-se três anos depois de casada.

A nova convertida entregou-se com ardor à prática da Religião católica. Rezava longamente, confessava-se com frequência, e quando algum padre celebrava a Missa secretamente em alguma casa católica, ela a assistia e comungava.
Mas o ardor de Margarida não se limitava a isso: ela se dedicou ao apostolado, procurando confirmar na fé os católicos perseguidos e tentando reconduzir ao seio da Igreja os que dela haviam se afastado por fraqueza.
João Clitherow, que por comodidade seguia a nova religião, dava entretanto toda a liberdade à esposa. Dizia encontrar nela somente dois defeitos: jejuava muito e não o acompanhava à igreja anglicana, o que lhe mereceu algumas multas. Quando a esposa começou a albergar em sua residência padres proscritos, ele preferiu ignorar o fato, para ficar em paz com sua consciência e não ter que delatar a esposa.

O casal Clitherow teve três filhos: Henrique, Ana e William, nascido na prisão. Com licença do marido, Margarida criou-os na Religião católica. Como não havia feito estudos, contratou um tutor católico para instruí-los. Com o tempo, enviou o filho mais velho ao seminário de Douai, na França. Como isso era considerado crime, ela foi novamente presa. Depois de sua morte, os filhos perseveraram na fé: os rapazes se tornaram sacerdotes e a moça, religiosa.

Conversão considerada como traição

A situação, porém, piorava gradativamente para os católicos fiéis. Em 1581, o governo da cruel rainha anglicana promulgou os Decretos de Persuasãodeclarando a conversão de alguém à fé católica crime de alta traição. O Decreto restringiu em grande medida a ação de Margarida. Ela foi logo considerada como suspeita e presa várias vezes, uma delas por dois anos. A heróica católica aproveitava a reclusão para fazer verdadeiros retiros espirituais, nos quais sua alma se unia cada vez mais a Deus. Durante a prisão passou a jejuar quatro dias por semana, prática que depois continuou a seguir. Foi também na prisão que, à força de perseverança, conseguiu aprender a ler e escrever.

Margarida havia transformado um quarto de sua casa em esconderijo para padres em caso de perseguição. Alugou também, com o mesmo fim, outra casa para a eventualidade de a sua ficar sob suspeita. Vários dos sacerdotes por ela acolhidos foram depois martirizados. Ela possuía um armário secreto com todo o necessário para a celebração da Missa. Segundo a tradição local, Margarida chegou mesmo a esconder sacerdotes na hospedaria do Cisne Negro, em Peaseholme Greem, sob os próprios narizes dos perseguidores.

Santa Margarida tinha uma personalidade cativante e atraente. Diz seu biógrafo que “todos a amavam e acudiam a ela em demanda de auxílio, consolo e conselho em suas penas. Seus criados tinham-lhe um amor tão reverente que, apesar de ela os corrigir com razoável severidade por suas faltas e negligências, e de saberem quando os sacerdotes frequentavam a casa, tinham tanto cuidado em conservar os seus segredos, como se fossem verdadeiros filhos”.2

Ela começava seu dia com a meditação, e se havia algum sacerdote, assistia à Missa ajoelhada atrás de seus filhos e empregados.

Seu dramático e heróico fim

Martírio de Santa Margarida

Em 1585 a situação agravou-se ainda mais. Elisabeth I decretou o chamado Ato Estatutário, tornando crime de alta traição o fato de qualquer padre, sobretudo se jesuíta, permanecer nos domínios dela. A heróica Margarida então afirmou: “Pela graça de Deus, todos os padres ser-me-ão ainda mais bem-vindos, e farei o que puder para fazer progredir o divino culto católico”.3
No dia 10 de março de 1586, João Clitherow foi intimado a explicar ao conselho municipal a ida de seu filho para o exterior. Como ele era membro do conselho e conhecidamente anglicano, conseguiu justificar-se. Mas mandaram revistar sua casa.

Margarida não se preocupou muito, pois no momento lá não havia nenhum sacerdote refugiado, e seus filhos e criados eram de confiança.

Mas os policiais irromperam de modo inopinado, justamente na sala de aula das crianças. O professor fugiu pela janela. Entretanto, havia na sala outras crianças da vizinhança, uma das quais entrou em pânico e acabou mostrando às autoridades o esconderijo secreto e o armário onde se encontrava o material da Missa. Com isso a polícia possuía evidência contra Margarida. Seus dois filhos foram mandados para a casa de um protestante, e seus criados postos na prisão.

Margarida negou-se a se submeter a julgamento. Neste poderiam ser chamados a depor seu marido, seus filhos e criados, possivelmente sob tortura, o que ela quis evitar. Sabia que, em qualquer caso, seria executada: “Eu não conheço ofensa pela qual devo me confessar culpada. Não tendo feito nenhuma ofensa, não preciso de julgamento”, disse ela.4

Os juízes condenaram-na então a ser esmagada até a morte – pena infligida aos que não se submetiam a julgamento – “por ter alojado e mantido jesuítas e padres do seminário, traidores da majestade da Rainha e de suas leis”.

No momento do suplício, Margarida foi convidada a rezar pela Rainha. Ela o fez desejando a conversão do monarca à verdadeira fé.
Alguns anglicanos presentes lhe pediram que rezasse com eles. Ela se negou, afirmando: “Eu não rezarei convosco, nem vós rezareis comigo. Nem direi Amém a vossas orações, nem vós às minhas”.5 (+)

Os dois carrascos encarregados da horrível execução contrataram alguns mendigos para substituí-los. Margarida, que esperava seu quarto filho, foi deitada sobre uma pedra afiada que, quando pressionada, deveria romper-lhe as costas. Sobre seu corpo foi colocada uma porta, e encima desta empilhando grandes blocos de pedra, até que a mártir fosse completamente esmagada sob um peso de quase 700 quilos.

Ela foi martirizada no dia 25 de março de 1586, Sexta-feira Santa.
“Depois da morte de Clitherow, Elisabeth I escreveu aos cidadãos de York para dizer que ficara horrorizada com o tratamento dado a uma mulher: devido ao seu sexo, Clitherow não deveria ter sido executada”.6 O que soa como uma hipocrisia, pois foi o que ela fez no ano seguinte com a católica Maria Stuart, a quem mandou decapitar para não ter uma rival ao trono da Inglaterra.

FONTE: http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm?IDmat=948C99AB-04EF-B6F0-FB0AB9D9A16E8729&mes=Mar%C3%A7o2012
E-mail para o autor: catolicismo@terra.com.br
____________
Notas:
1. http://savior.org/saints/clitherow.htm.
2. Radio Cristiandad, “Benditos seam los que predicam el verdadero ecumenismo”, http://wp.me/p1ydz-477.
3. http://savior.org/saints/clitherow.htm.
4. Daniel F. McSheffery, St. Margaret: Mother and Martyr, The Homiletic & Pastoral Review, N.Y., april 1994, apud http://www.ewtn.com/library/MARY/CLITHER.htm.
5. Radio Cristiandad, op. cit..
6. http://en.wikipedia.org/wiki/Margaret_Clitherow

(+) Nota da Confraria: lição de ecumenismo. Nem rezemos juntos com esses hereges e bandidos.

sábado, 23 de março de 2013

Confrarias de Penitentes: o desfile da Quaresma.

Pe. Manoel Henrique de Melo Santana

Foi em Barbalha, cidade vizinha do Juazeiro do Ceará, que conduzidos pelo saudoso Padre Murilo, fomos conhecer um grupo de penitentes, todos paramentados de preto. No Brasil durante a Semana Santa, a televisão tem apresentado cenas de penitentes até se auto lacerando. Em Alagoas, os índios da tradição Pankararu utilizam-se de urtiga para se penitenciarem em seus rituais de Quaresma.

A Semana Santa tem o seu ponto culminante na Sexta-feira Santa, apesar de a Liturgia cristã apontar para o Domingo da Páscoa. Em Portugal, as faixas roxas descem e adornam sobriamente as Igrejas, os sinos silenciam para funcionarem as matracas. Várias Igrejas da Arquidiocese Primaz de Braga celebram desde 1710 a adoração eucarística do Lausperene Quaresmal, com decorações feitas de flores, velas e monumentais cortinas, em contraste com rigor litúrgico do tempo quaresmal. O Descimento de Jesus da cruz é um dos momentos mais importantes da cerimônia, seguida pelo sermão do “Senhor Morto”. Um texto português de Braga trazia a seguinte quadra popular, publicada pelo Abade de Baçal, sobre as cores litúrgicas:” Ando vestida de preto/ ou de roxo como o lírio,/ Mas ninguém me morreu:/ é de luto por quem está vivo”. Esta é uma questão muito séria entre nós, que toca à Teologia, que não sabe explicar o mistério da Morte de Jesus. Segundo Vivaldo Coaracy, do Rio de Janeiro, a Semana Santa envolvia a cidade em atmosfera pesada de luto e melancolia. Sobre o povo caía um opressivo silêncio, sem músicas ou gritos. Tudo convergia para o trágico, o triste, o doloroso, o deprimente da Paixão e Morte de Nosso Senhor e tudo então terminava com o seu enterro. Havia também a Madalena, convertida, que levava um vaso de bálsamo para ungir os pés do Senhor, como está no Evangelho. A Procissão para por um momento e entra em cena Verônica, cantando “O vos omnes”, que desenrrolando um pano o rosto ensanguentado de Jesus está impresso, mostrando-o ao povo. Na chegada da Procissão à Igreja está a Soledade de Nossa Senhora, na frente da Igreja. O corpo desfalecido de Jesus é entregue à sua Mãe, corajosamente ali presente, cena que mereceu uma obra prima “La Pietá”, do gênio Michelangelo. O espírito ascético da Quaresma conduziu ao aparecimento de grupos penitentes, que se flagelam publicamente.
Na noite Sexta-Feira Santa, em Portugal, aconteciam a Procissão de Endoenças, a Procissão dos Painéis, a Procissão de Santa Maria, a Procissão do “Ecce Homo” ou do Senhor da Cana Verde e a Procissão dos Fogaréus. Nesta noite, os penitentes públicos eram perdoados, prática que durou até o século XIV, quando tudo então passou para a Quinta-Feira Santa. Abolida a reconciliação dos penitentes públicos, organizaram-se então, as Procissões de Penitência, com homens e mulheres flagelantes ou simplesmente penitentes, autoflagelando-se a si próprios e aos outros com cordas e objetos de ferro, confessando seus pecados em voz alta.. Outras pessoas traziam caixas de marmelada, em fatias, para serem oferecidas aos penitentes enfraquecidos, bem como água para beberem. Mais adiante encontravam-se os “físicos”, que cuidavam das chagas dos penitentes, lavando-as com vinho. No século XVI, formaram-se as célebres Confrarias de Penitência, apesar de já conhecidas desde o século XII. Por causa de abusos praticados, o Papa Clemente VI aboliu, no século XIV, a cerimônia dos flagelantes.

Em Congonhas do Campo, Minas Gerais, um espaço foi dedicado à contemplação da Paixão de Cristo, nas obras do imortal Aleijadinho, em fins do século XVIII. Cerca de 66 estátuas, especialmente de Cristo, estão ali expostas revelando-nos expressões de inocência como vítima da crueldade dos soldados. Na Capela dos Passos, o Cristo está com um olhar distante, em atitude de entrega, com uma expressão de fatalidade. Aleijadinho, como parte numerosa dos cristãos, acreditam que Jesus precisava morrer para cumprir o que os profetas haviam predito.

Em algumas Igrejas de Alagoas existem as chamadas imagens da Paixão, que, nesse dia, deveriam ficar expostas ao público, com as devidas informações bíblicas e comentários artísticos, justificando desta forma a sua existência no passado e hoje. Os fiéis têm necessidade de visibilizar sua fé. Tão verdade é isto que em muitos lugares se preparam encenações da Paixão e Morte de Jesus. Arapiraca é um exemplo maior destas iniciativas populares, de tanta valia para todos em sua fé. Em Fazenda Nova, a Globo tomou conta do espetáculo da Paixão. Como teatro é perfeito, mas falta-lhe o clima de fé, que poderia ser assumido pelas Igrejas, evitando o comércio tão variado de tudo em derredor daquele espaço tornado sagrado pelo tema ali desenvolvido.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Legenda Perusina 56-59.

[56]

Vendo o bem-aventurado Francisco que o Senhor queria multiplicar o número de irmãos, disse-lhes: “”Queridos irmãos e filhinhos meus, vejo que o Senhor quer nos multiplicar; por isso acho coisa boa e religiosa adquirir do bispo ou dos cônegos de São Rufino, ou do abade do mosteiro de São Bento, alguma igreja pequena e pobrezinha onde os frades possam dizer suas Horas, e ter, junto dela, só alguma casa pequena e pobrezinha, construída de barro e ramos, onde os frades possam descansar e cuidar de trabalhos conforme as suas necessidades; porque este lugar não é adequado e esta casa é muito pequena para os frades permanecerem, uma vez que é vontade do Senhor atualiza-los, e principalmente porque não temos aqui uma igreja onde os frades possam dizer suas Horas, e se alguém morresse não seria adequado sepultá-lo aqui nem numa igreja dos clérigos seculares”.

E essas palavras agradaram aos outros irmãos. Então o bem-aventurado Francisco levantou-se e foi ao bispo de Assis, e propôs ao bispo as mesmas palavras que tinha proposta aos frades. O bispo respondeu-lhe: Ïrmão, não tenho nenhuma igreja que possa dar-te”. Ele foi aos cônegos de São Rufino e disse palavras semelhantes; mas eles responderam como o bispo.

Então foi ao mosteiro de São Bento do monte Subásio e disse ao abade as mesmas palavras que tinha dito ao bispo e aos cônegos; e também contou como o bispo e os cônegos tinham respondido. O abade ficou com pena, fez uma reunião sobre o assunto com seus irmãos e, como foi da vontade de Deus, concederam ao bem-aventurado Francisco e aos seus frades a igreja de Santa Maria da Porciúncula, a mais pobre que tinham. Também era a mais pobrezinha do que qualquer outra que havia nos arredores de Assis; o que fazia tempo que o bem-aventurado Francisco desejava. Disse o abade ao bem-aventurado Francisco: “Irmãos, nós atendemos o que pediste; mas queremos que, se vossa congregação se multiplicar, este lugar seja a cabeça de todos vós”. Isso agradou ao bem-aventurado Francisco e a seus irmãos.

O bem-aventurado Francisco ficou muito contente com o lugar concedido aos irmãos e principalmente porque a igreja tinha o nome da Mãe de Cristo, era uma igreja tão pobrezinha, e também pelo apelido que tinha. Pois era chamada de Porciúncula, nome que prefigurava que devia ser a mãe e cabeça dos pobres frades menores. Chamava-se Porciúncula por causa da região onde a igreja tinha sido construída, que desde antigamente era conhecida como Porciúncula. Pois o bem-aventurado Francisco dizia: “O Senhor quis que nenhuma outra igreja fosse concedida aos frades e que primeiros frades não construíssem, então, uma igreja nova nem tivessem outra senão aquela porque isso foi uma certa profecia, que se cumpriu com a vinda dos frades menores”.

E embora fosse pobrezinha e já quase destruída por ter muito tempo, as pessoas de Assis e da região sempre tiveram muita devoção por aquela igreja, e a tem maior ainda até hoje. Por isso, imediatamente depois que os frades foram para lá para ficar, quase todos os dias o Senhor multiplicava seu número e a notícia e a fama disso espalhou-se do por todo vale de Espoleto. Antigamente era chamada de Santa Maria dos Anjos, e a província chama-se Santa Maria da Porciúncula. Por isso, depois que os frades começaram a restaura-la, diziam os homens e mulheres daquela província: “Vamos a Santa Maria dos Anjos”.

E embora o abade e os monges tivessem concedido livremente ao bem-aventurado Francisco e a seus frades aquela igreja sem nenhuma exigência ou pagamento anual, todavia o bem-aventurado Francisco, como um bom e experimentado mestre que quis edificar sua casa sobre a pedra firme, isto é, a sua congregação sobre a grande pobreza, mandava todos os anos ele mesmo um cestinho cheio de peixinhos chamados lascas como sinal da maior humildade e pobreza, para que os frades não tivessem nenhum lugar próprio nem permanecessem am algum outro lugar que não estivesse sob o domínio de alguém, de forma que os frades nunca tivessem de modo algum o poder de vender ou alienar. E quando os frades levavam todos os anos os peixinhos para os monges, eles, por causa da humildade do bem-aventurado Francisco, que fazia aquilo por que queria, davam a ele e a seus irmãos uma vasilha cheia de azeite.

Mas nós que estivemos com o bem-aventurado Francisco damos testemunho de que ele dizia sobre aquela igreja, e confirmando a palavra, que, por causa das muitas prerrogativas que o Senhor aí mostrou e lhe foi revelado nesse lugar, que a Bem-aventurada Virgem ama esta igreja mais do que todas as outras igrejas desde mundo que ela ama. Por isso, teve por ela a maior reverência e devoção durante todo o tempo de sua vida; e para que os frades tivessem sempre uma recordação em seus corações, perto de sua morte quis escrever em seu Testamento que os frades fizessem o mesmo.

Pois, próximo a sua morte, disse ao ministro geral e aos outros frades: “Quero ordenar e deixar em testamento o lugar de Santa Maria da Porciúncula, para que sempre seja tido pelos frades com a maior reverência e devoção. O que também nossos antigos frades fizeram: pois ainda que aquele lugar seja santo, eles mantinham a sua santidade com oração contínua, de dia e de noite, e contínuo silêncio. E se alguma vez falavam depois do termo determinado para o silêncio, tratavam com a maior devoção e honestidade das coisas que diziam respeito ao louvor de Deus e à salvação das almas. E se acontecesse, o que era raro, que alguém começasse a dizer algumas palavras inúteis ou ociosas, era imediatamente corrigido por outro. Portanto, maceravam a carne não só pelo jejum, mas por muitas vigílias, frio, nudez e trabalho de suas mãos. Pois muitas vezes, para não estarem ociosos, iam ajudar as pessoas pobres em seus campos, e elas às vezes lhes davam pão por amor de Deus”.

“Com essas e outras virtudes santificavam a si mesmos e ao lugar, e os outros que vieram depois deles por muito tempo vieram de maneira semelhante, embora não tanto”. “Mais tarde, entretanto, pela vinda de muitos frades e de outros que se reuniam naquele lugar, mais do que tinha sido costume, principalmente porque era bom que todos os frades da religião fossem lá, e o mesmo acontecia com os que queriam entrar na Religião. Também porque os frades são mais frígidos na oração e nas outras boas obras, e mais dissolutas para proferirem palavras ociosas e inúteis e comunicar notícias desde século, aquele lugar não é tido pelos irmãos que ali moram e pelos outros religiosos com tanta reverência e devoção como convém e como eu gostaria”.

“Pois quero que sempre esteja sob o poder do ministro geral e por isso ele tenha maior cuidado e solicitude de providenciar por ele, especialmente para colocar aí uma boa e santa família. Os clérigos sejam escolhidos entre os frades mais santos e mais honestos, e que saibam dizer melhor o ofício em toda a religião, para que não só as outras pessoas mas também os frades os ouçam de boa vontade com grande devoção. Escolham-se frades e leigos santos, homens honestos e discretos, que os sirvam. “Também quero que nenhum frade ou outra pessoa entre naquele lugar a não ser o ministro geral e os frades que ali servem. E eles não conversem com nenhuma pessoa a não ser com os frades que os servem e com o ministro, quando os visitar.

“Quero igualmente que os frades leigos que os servem sejam obrigados a não lhes referir nenhuma palavra ou notícia deste mundo que tiverem ouvido e que não fossem úteis para a alma. E por isso quero especialmente que ninguém entre naquele lugar, para que eles conservem melhor sua pureza e santidade, e que naquele lugar não se profiram palavras vãs e inúteis para a alma, mas se conserve e mantenha todo puro e santo em hinos e louvores do Senhor. E quando algum desses irmãos migrar, onde quer que houver outro frade santo, faça o ministro geral com que ele venha para cá, no lugar do que tiver morrido. Porque, se em algum tempo os frades e os lugares onde moram decaírem da pureza, santidade e honestidade que convém, quero que este lugar seja o espelho e o bom exemplo de toda a religião e como um candelabro diante do trono de deus e diante da bem-aventurada Virgem, pelo qual o Senhor propicie aos defeitos e culpas dos frades e conserve e proteja sempre a religião e sua plantinha”.

Certa ocasião, perto do capítulo que estava para ser realizado, e que naquele tempo se fazia todos os anos em Santa Maria da Porciúncula, considerando o povo de Assis que os frades eram uma graça do Senhor, já multiplicados e multiplicando-se todos os dias, e que, principalmente quando todos se reuniam ali para o capítulo, não tinham senão uma pobrezinha e pequena cabana coberta de palha, com paredes feitas de galhos e barro, como os frades tinham feito no começo, quando foram para lá para ficar, fizeram uma reunião geral e, em poucos dias, com pressa e grande devoção, construíram lá uma casa grande com paredes de pedra e cal, sem o consentimento do bem-aventurado Francisco, que estava fora. Quando o bem-aventurado Francisco voltou de uma província e veio para o capítulo, viu aquela casa construída ali e ficou muito admirado com isso. E pensando que, por causa daquela casa, os frades iam edificar ou fazer edificar grandes casas nos lugares onde moravam ou haveriam de morar, e principalmente porque queria que aquele lugar fosse a forma e o exemplo de todos os lugares dos frades, antes do fim do capítulo, levantou-se um dia e subiu ao telhado da casa mandando que os frades subissem, e, com os frades, começou a jogar no chão as telhas com que estava coberta, querendo destruir a casa.

Quando viram isso, alguns soldados de Assis e outros que ali estavam por ordem da comuna da cidade para proteger o lugar para os seculares e forasteiros que tinham vindo de todas as partes para ver o capítulo dos frades, que o bem-aventurado Francisco e os outros frades queriam destruir a casa, foram logo a eles; e disseram ao bem-aventurado Francisco: “Irmão, esta casa é da comuna de Assis e nós somos seus representantes; por isso te dizemos que não destruas nossa casa”. O bem-aventurado Francisco disse: -- “Então, se a casa é vossa, não quero toca-la”. E desceu logo dela, e os outros frades que estavam com ele também desceram. Por isso, o povo da cidade de Assis resolveu, durante muito tempo, que quem fosse o seu “podestà” teria que cobri-la e restaurar, se fosse necessário. Em outra ocasião, o ministro geral queria fazer aí uma casa pequena para os frades daquele lugar, onde pudessem descansar e dizer suas Horas, principalmente porque naqueles tempos todos os frades da religião e os que vinham à Religião vinham e recorriam àquele lugar, pelo que aqueles frades se cansavam muito quase todos os dias. Também por causa da multidão de frades que se reuniam naquele lugar não tinham um espaço onde pudessem descansar e dizer suas Horas, pois tinham que ceder aos outros os lugares onde se deitavam. Por isso passavam muitas vezes por muitas tribulações, porque, depois de muito trabalho, quase não podiam satisfazer à necessidade do corpo e à utilidade da alma.

Quando essa casa já estava quase construída, eis que voltou ao lugar o bem-aventurado Francisco e, enquanto estava descansando em uma pequena cela, de noite, ouviu de manhã o tumulto dos frades que lá trabalhavam, e começou a ficar admirado do que seria. Perguntou a seu companheiro: “Que barulho é esse? O que estão fazendo aqueles frades?”. O companheiro contou-lhe tudo como era. Ele mandou chamar imediatamente o ministro, dizendo: -- “Irmão, este lugar é forma e exemplo de toda a religião; por isso prefiro que os frades deste lugar suportem as tribulações e necessidades por amor de Deus, para que os frades de toda a religião, que vêm aqui, contem o bom exemplo de pobreza em seus lugares, em vez de falarem de suas satisfações e consolações; e os outros frades da Religião o tomassem como exemplo para edificar em seus lugares, dizendo: No lugar de Santa Maria da Porciúncula, que é o primeiro lugar dos frades, edificam-se tais e tantos edifícios, que bem podemos edificar em nossos lugares, porque não temos um lugar adequado para ficar”.



[57]

Um frade, homem espiritual, de quem o bem-aventurado Francisco era muito familiar, permanecia em certo eremitério. Considerando que, se alguma vez lá fosse o bem-aventurado Francisco, não teria um lugar apto para ficar, mandou fazer num lugar afastado, perto do lugar dos frades, uma pequena cela, onde o bem-aventurado Francisco pudesse rezar quando fosse lá. E acontece que, não muitos dias depois, chegou o bem-aventurado Francisco. Quando foi levado pelo frade para ver a cela, disse-lhe o bem-aventurado Francisco: -- Essa cela me parece muito bonita. Mas, se queres que eu fique nela por alguns dias, mande fazer-lhe um revestimento tanto interno quanto externo de samambaias e galhos de árvores”.

Pois a cela não era murada mas feita de madeira. Mas como as tábuas eram planas, feitas com machado e enxó, o bem-aventurado Francisco achou que era bonita demais. O frade mandou adaptá-la imediatamente, como dissera o bem-aventurado Francisco. Pois quanto mais as celas e casas dos frades fossem pobrezinhas e religiosas, via-as com mais boa vontade e às vezes nelas se hospedava. Como tivesse ficado e rezado nela por alguns dias, eis que um dia, perto da cela, fora do lugar dos frades, um certo irmão, que estava no lugar, foi onde o bem-aventurado Francisco estava.

O bem-aventurado Francisco perguntou-lhe: “De onde vens, irmão?”. Ele disse: -- “Venho de tua cela”. O bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Porque disseste que a cela é minha, vai ser outro que vai ficar nela de agora em diante, não eu”. Nós, que estivemos com ele, ouvimo-los muitas vezes dizendo aquela palavra do Evangelho: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”. E dizia: “Quando esteve no cárcere, onde jejuou quarenta dias e quarenta noites, o Senhor não mandou fazer uma cela nem uma casa, ficou embaixo de uma rocha da montanha”. E por isso, a exemplo dele, não quis ter casa nem cela neste século, nem mandou fazer para si. Mais, se alguma vez acontecesse de dizer aos frades: “Ajeitem de tal forma esta cela”, depois não queria ficar nela, por causa daquela palavra do santo Evangelho: “Não vos preocupeis”. Pois perto de sua morte quis que fosse escrito em seu Testamento que todas as celas e casas dos frades não deviam ser construídas a não ser de barro e galhos, para conservar melhor a pobreza e a humildade.



[58]

Por isso, em certa ocasião, quando estava em Sena por causa da doença nos olhos e morasse numa cela, onde depois de sua morte foi edificado um oratório para reverenciá-lo, disse-lhe o senhor Boaventura, que dera a terra aos frades, onde fora edificado o lugar dos frades: “Que te parece deste lugar?”. O bem-aventurado Francisco respondeu-lhe: “Queres que te diga como os lugares dos frades deveriam ser construídos?”. Ele respondeu: -- “Quero, pai”. Disse-lhe: “Quando os frades vão a alguma cidade, onde não têm um lugar, e encontram alguém que lhes queira dar tanta terra que possam edificar um lugar e ter uma morada e o que lhes for necessário, primeiro eles têm que considerar quanta terra lhes basta, sempre levando em conta a santa pobreza que prometemos e o exemplo que devemos dar aos outros em tudo”.

O santo pai dizia isso porque não queria, em ocasião alguma, que os frades, nas casas, igrejas, hortas ou outras coisas que usavam excedessem o modo da pobreza nem possuíssem algum lugar com direito de propriedade, mas sempre morassem nelas como peregrinos e forasteiros. Por isso queria que os frades não fossem colocados em grande número nos diversos lugares, porque lhe parecia difícil observar a pobreza em quantidades grandes. E essa foi a sua vontade desde o começo de sua conversão e até o fim na sua morte, que a santa pobreza fosse absolutamente observada. “Depois deveriam ir ao bispo da cidade e dizer-lhe: Senhor, tal pessoa, por amor de Deus e pela salvação de sua alma quer dar-nos tanta terra para que aí possamos construir um lugar; por isso recorremos a ti primeiro, principalmente porque és o pai e senhor das almas de todo o rebanho a vós confiado , como das nossas e dos outros frades que permanecerem neste lugar. Por isso queremos aí construir com a bênção de Deus e a tua”.

Mas o santo dizia isso porque o fruto das almas que os frades querem fazer no povo é melhor conseguido com a sua paz, com lucro deles e do povo, do que escandalizando os prelados e os clérigos, mesmo que o povo sai ganhando. E dizia: “O Senhor nos chamou para ajudar a sua fé e a dos prelados e clérigos da santa mãe igreja; por isso, quanto pudermos, temos que amá-los sempre, honrá-los e venerá-los. Pois é por isso que se chamam frades menores, porque tanto de nome como de exemplo e por obra devem ser humildes diante das outras pessoas deste século. E porque desde o início de minha conversão, quando me separei do século e do pai carnal, o Senhor pôs sua palavra na boca do bispo de Assis para que me aconselhasse bem no serviço de Cristo e me confortasse. Por isso, e por muitas outras coisas excelentes que considero nos prelados, não só nos bispos mas também nos sacerdotes pobrezinhos, quero amá-los, venerá-los e tê-los como meus senhores”.

“Depois de recebida a bênção do bispo, vão e façam abrir um grande sulco ao redor do terreno que receberam para a construção do lugar, e nele coloquem uma boa sebe como muro, em sinal da santa pobreza e humildade. Depois façam construir casas pequeninas de barro e galhos e algumas pequenas celas, onde os frades possam orar de vez em quando e também trabalhar, para sua maior honestidade e também para se precaver das palavras ociosas. Façam construir também igrejas; pois os frades não devem mandar fazer igrejas grandes com a desculpa de que é para pregar ao povo nem por alguma outra desculpa, porque há maior humildade e melhor exemplo quando os frades vão a outras igrejas para pregar, para observarem a santa pobreza e a sua própria humildade e honestidade”.

“E se alguma vez forem visitados por prelados ou clérigos, religiosos ou seculares, as casas pobrezinhas, as celas e as igrejas existentes no lugar vão ser uma pregação para eles, e ficarão edificados”. E disse: “Pois muitas vezes os frades mandam construir grandes edifícios, rompendo nossa santa pobreza e dando ocasião de murmuração e mau exemplo para o próximo. Depois, com a desculpa de ir para um lugar melhor ou mais são, abandonam aqueles lugares e edifícios. E, por isso, os que aí deram suas esmolas e outros que vêem e ouvem ficam muito escandalizados e perturbados. Por isso é melhor que os frades façam construir lugares e edifícios pequenos e pobrezinhos, observando sua profissão, e dando bom exemplo ao próximo, do que fazerem contra a sua profissão e darem mau exemplo aos outros. Porque, se alguma vez acontecesse que os frades, com a desculpa de um lugar mais honesto, abandonassem os lugares pequenos e pobrezinhos, haveria por isso muito mau exemplo e escândalo”.



[59]

Naqueles dias e na mesma cela em que o bem-aventurado Francisco tinha dito essas palavras ao senhor Boaventura, uma tarde, como quisesse vomitar por causa do mal do estômago, aconteceu-lhe que, tendo feito muita força, vomitasse sangue, e assim ficou vomitando sangue durante toda a noite e até o amanhecer. Quando os companheiros viram que ele estava quase morrendo por causa da fraqueza e da dor da doença, disseram-lhe com muita dor e derramando muitas lágrimas: “Pai, que vamos fazer? Abençoa a nós e aos teus outros irmãos. Além disso, deixa aos teus frades alguma lembrança da tua vontade, para que, se o Senhor quiser chamar-te deste século, os teus frades sempre possam dizer e ter na memória: Nossa pai deixou estas palavras para seus filhos e frades em sua morte”.

Mas ele lhes disse: “Chamai-me Frei Bento de Piratro”. Esse frade era um sacerdote, discreto, santo e antigo na Religião, que de vez em quando celebrava na cela do bem-aventurado Francisco; porque, embora estivesse doente, sempre que podia queria ouvir a missa de boa vontade e devotamente. Quando o frade chegou perto dele, disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Escreve como eu abençôo todos os meus frades, os que estão na Religião e os que virão até o fim do século”.

Pois era costume de Francisco que, sempre, nos capítulos dos frades, com os frades se reuniam, abençoar e absolver, no fim do capítulo, todos os frades presentes e os outros que estavam na Religião, e abençoava também todos os que deveriam vir a esta Religião; e não só nos capítulos mas também muitas outras vezes abençoava todos os frades que estavam na Religião e que haveriam de vir.

E o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Como por causa da fraqueza e da dor da doença não consigo falar, manifesto brevemente nestas três palavras, a minha vontade para os meus frades, isto é: que em sinal da lembrança de minha bênção e de meu testamento, sempre amem uns aos outros, sempre amem e observem nossa senhora, a santa pobreza, e que sempre permaneçam fiéis e submissos aos prelados e a todos os clérigos da santa mãe igreja”. Também aconselhava os frades a temerem e se cuidarem do mau exemplo; além disso amaldiçoava a todos que, que por desordenados e maus exemplos, provocassem as pessoas a blasfemar a Religião e a vida dos frades e os frades bons e santos, que por isso se envergonhavam e afligiam.


quinta-feira, 14 de março de 2013

Legenda Perusina 50-55.

[50]

Em certa ocasião, no começo, isto é quando o bem-aventurado Francisco começou a ter irmãos, permanecia com eles em Rivotorto. Uma noite, lá pela metade, quando todos estavam descansando em suas enxergas, um dos frades exclamou dizendo: “Estou morrendo, estou morrendo!”. Assustados e atemorizados, todos ao frades acordaram.

Levantando-se, o bem-aventurado Francisco disse: “Levantai-vos, irmãos, e acendei a luz”. Quando se acendeu a luz, o bem-aventurado Francisco disse: -- “Quem foi que disse: “Estou morrendo”. Aquele frade respondeu: “Sou eu”. E o bem-aventurado Francisco lhe disse: -- “O que tens, irmão? Como estás morrendo?”. E ele: “Estou morrendo de fome”. O bem-aventurado Francisco, homem cheio de caridade e discrição, para que aquele frade não ficasse com vergonha de comer sozinho, mandou logo pôr a mesa e todos comeram juntos com ele. Pois ele e outros tinham sido convertidos havia pouco tempo para o Senhor, e afligiam demais os seus corpos.

Depois da refeição, o bem-aventurado Francisco disse aos outros frades: “Irmãos meus, assim vos digo que cada um leve em conta sua natureza; porque, ainda que algum de vós possa sustentar-se com menos comida que outro, não quero que o que necessita de mais comida tente imitá-lo nisso; mas considerando sua natureza, dê a seu corpo o que lhe é necessário. Pois assim como temos que evitar o exagero no comer, que faz mal ao corpo e à alma, , assim temos que evitar a abstinência demasiada, tanto mais que o Senhor quer a misericórdia e não o sacrifício”.

E disse: “Queridos irmãos, isso que eu fiz, isto é que por caridade com nosso irmãos comemos com ele, para que não ficasse com vergonha de comer sozinho, fui obrigado a fazê-lo pela grande necessidade e a caridade. Mas eu vos digo que, nas outras coisas, não quero fazer assim, porque não seria religioso nem honesto. Mas quero e vos ordeno que cada um, segundo nossa pobreza satisfaça ao seu corpo, como for necessário”.

Pois os primeiros frades, e outros que vieram depois deles durante muito tempo, afligiam seus corpos não só com uma excessiva abstinência na comida e bebida, mas também em vigílias, frio e trabalho de suas mãos. Para isso levavam sobre a carne cinturões de ferro e as cotas de malha que podiam ter e fortíssimos cilícios, como também o mais que podiam ter. Por isso o santo pai, achando que os frades podiam ficar doentes por causa disso, e alguns já tinham adoecido em pouco tempo, proibiu em um capítulo que algum frade usasse por baixo, junto da carne, a não ser a túnica.

Nós, porém, que estivemos com ele, damos testemunho de que, embora fosse discreto com os frades desde o tempo em que começou a receber irmãos e também durante todo o tempo de sua vida, procurou entretanto que se guardassem sempre, que em questão de comidas e de coisas, a pobreza e a honestidade requeridas por nossa Religião e que eram usadas pelos frades antigos. Mas ele mesmo, ainda antes de ter irmãos, desde o começo de sua conversão e durante todo o tempo de sua vida, foi austero com o seu corpo, apesar de ter sido um homem frágil em sua juventude e de natureza fraca, e no século não podia viver a não ser delicadamente.

Certa ocasião, achando que os frades já tinham exagerado o modo da pobreza e da honestidade na comida e nas coisas, numa pregação que fez, disse a todos os frades, dirigindo-se pessoalmente a alguns deles: “Será que os frades não acreditam que meu corpo precisa de comidas especiais? Mas como convém que eu seja a forma e o exemplo de todos os frades, quero usar e ficar contente com comidas e coisas pobrezinhas, não delicadas”.



[51]

Quando o bem-aventurado Francisco começou a ter irmãos, ficava tão contente com a conversão deles e porque o Senhor lhe dera boa companhia, e os amava e venerava tanto que não lhes dizia para irem pedir esmola e principalmente porque lhe parecia que ficariam envergonhados de ir. Para poupar-lhes essa vergonha, ia todos os dias sozinho pedir esmolas. Seu corpo ficava muito cansado com isso, principalmente por ter sido homem delicado no século e débil por natureza e por causa da excessiva abstinência e aflição que suportara, e tinha ficado mais fraco desde o dia em que saíra do século. Por isso, considerando que não poderia agüentar tanto trabalho, e que eles tinham sido chamados a essa vocação, mesmo que ficassem com vergonha, e ainda não tinham pleno conhecimento, nem eram tão discretos para dizer-lhe: “Nós queremos ir pedir esmolas”, disse-lhes: “Meus queridos irmãos e filhinhos, não fiqueis com vergonha de ir pedir esmolas, porque o Senhor se fez pobre por nós neste mundo; por isso, a seu exemplo e de sua santíssima mãe, escolhemos o caminho da pobreza verdadeira.

Esta é a nossa herança, que pelo Senhor Jesus Cristo foi adquirida e deixada para nós e para todos que, a seu exemplo, querem viver na santa pobreza”. E lhes disse: “Na verdade vos digo que muitos dos mais nobres e sábios desde século virão a esta congregação e terão como grande honra ir pedir esmolas. Por isso, ide com confiança e ânimo alegre pedir esmolas com a bênção do Senhor Deus. Deveis ir pedir esmolas com mais liberdade e alegria que alguém que oferecesse cem dinheiros por um, pois vós ofereceis a quem pedis esmolas o amor de Deus, dizendo-lhes: Dai-nos esmolas por amor de Deus, pois em comparação com Ele, o céu e a terra não são nada”.

E como ainda eram poucos, não podia mandá-los dois a dois, mas mandou cada um sozinho por aqueles castelos e vilas. E aconteceu que, quando voltaram, cada um mostrava ao bem-aventurado Francisco as esmolas que tinha conseguido, dizendo um ao outro: “Eu consegui esmola maior que tu”. E o bem-aventurado Francisco se alegrou de vê-los tão contentes e felizes. Desde então cada um pedia com mais boa vontade para ir pedir esmolas.



[52]

Nesse mesmo tempo, quando o bem-aventurado Francisco vivia com os seus irmãos que tinha então, tinha uma pureza tão grande que, desde a hora em que o Senhor lhe revelou que ele e seus irmãos deviam viver segundo a forma do santo Evangelho, quis observar isso à letra durante todo o tempo de sua vida. Por isso proibiu ao frade que fazia a cozinha para os irmãos que, se quisesse dar legumes para os irmãos comerem, não os pusesse de véspera na água quente, para o dia seguinte, como se costuma, para que os frades observassem aquela passagem do santo Evangelho: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã”. Por isso, o referido frade punha-os para amolecer só depois que os frades tinham rezado matinas. Pela mesma razão, durante muito tempo, muitos frades, em muitos lugares em que moravam por conta própria, e principalmente nas cidades, observaram isso, não querendo adquirir ou receber esmolas a não ser as que lhes fossem suficientes para um dia.



[53]

Certa ocasião, quando o bem-aventurado Francisco estava no mesmo lugar, havia aí um frade, homem espiritual e antigo na religião, que estava muito debilitado e enfermo. Pensando nele, o bem-aventurado Francisco se comoveu de piedade para com ele. 3Entretanto, como naquele tempo os frades doentes e sadios, com alegria e paciência tomavam a pobreza como abundância e em suas doenças não usavam remédios, antes, com muito mais boa vontade, faziam o que era mais contrário ao corpo, o bem-aventurado Francisco disse consigo mesmo: “Se esse irmão comesse uvas maduras bem de manhã, acho que ia fazer bem para ele”. Por isso, levantou-se um dia bem cedo, em segredo, chamou o frade e o levou para uma vinha que ficava perto da mesma igreja. Escolheu uma videira em que havia uvas boas e sadias para comer. E sentando-se com o frade junto da videira, colheu uvas para comer, para que não ficasse envergonhado de comer sozinho. Enquanto eles comiam, o frade louvou o Senhor Deus. E, durante todo o tempo que viveu, recordou-se entre os irmãos muitas vezes, com grande devoção e derramando lágrimas, daquela misericórdia que o santo pai fez por ele.



[54]

Numa ocasião, quando o bem-aventurado Francisco estava no mesmo lugar, ficava em oração numa cela que estava atrás da casa. Estava nela um dia, quando veio o bispo de Assis para visitá-lo. E aconteceu que, quando entrou na casa, bateu na porta para entrar onde estava o bem-aventurado Francisco. E abrindo a porta para si, foi entrando na cela, dentro da qual tinha sido feita uma outra celazinha de esteiras, onde estava o bem-aventurado Francisco. Como sabia que o santo pai lhe demonstrava familiaridade a afeto, foi com liberdade e abriu a esteira da pequena cela, para vê-lo. Mas logo que pôs a cabeça dentro da cela, de repente, querendo ou não, foi jogado à força para fora por vontade do Senhor, porque não era digno de vê-lo, e voltou de costas. Saiu imediatamente da cela, tremendo e assustado, e disse sua culpa diante dos frades, e que naquele dia arrependera-se de ter ido lá.



[55]

Certo frade era um homem espiritual, antigo na Religião e foi familiar do bem-aventurado Francisco. Mas aconteceu que, em certo tempo, sofreu por muitos dias de gravíssimas e muito cruéis sugestões do diabo, de modo que quase foi levado, na ocasião, ao mais profundo desespero, e era tão atormentado todos os dias que ficava com vergonha de se confessar todas as vezes. Por isso, afligia-se demais com abstinência, vigílias, lágrimas e disciplinas. Estando atribulado todos os dias, e por muitos dias, eis que pela graça de Deus veio ao lugar o bem-aventurado Francisco. E como certo dia, não muito longe daquele lugar, o bem-aventurado Francisco estivesse andando com um frade e com ele, que estava tão atribulado, o bem-aventurado Francisco se afastou um pouco do outro frade e se juntou ao que estava sendo assim tentado, e lhe disse: “Querido irmão, quero e te digo que de agora em diante não tenhas mais que confessar a ninguém as tentações e investidas do diabo, e não tenhas medo, porque não fizeram nenhum mal a tua alma. Mas, por minha licença, vais rezar sete Pai-nossos todas as vezes que fores atormentado por essas sugestões”.

O frade ficou muito contente com o que ele lhe disse, que não tinha que confessá-las, principalmente porque, como precisava confessar-se todos os dias, ficava muito confuso; e isso era a causa de sua maior dor. E o frade ficou admirado da santidade do santo pai, de como conheceu suas tentações pelo espírito Santo, pois ele não tinha confessado a mais ninguém se não aos sacerdotes. E também mudava sempre de sacerdote por causa da vergonha, pois se envergonhava de um sacerdote conhecesse toda sua enfermidade e tentação. E imediatamente, desde aquela hora em que o bem-aventurado Francisco falou com ele, ficou livre daquela grande tribulação, por dentro e por fora, quem tinha agüentado durante tanto tempo. E pela graça de Deus , pelos méritos do bem-aventurado Francisco, foi colocado numa grande calma e paz da alma e do corpo.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Pedro? Sem Chance!

PEDRO?... SEM CHANCE!

Dom Fernando Arêas Rifan*

Toda a Igreja está em oração pelo bom sucesso do Conclave que se reúne para eleger o sucessor de São Pedro, o próximo Papa. Por mais que falem mal dela, os meios de comunicação se veem obrigados a confessar involuntariamente a importância excepcional que a Igreja tem na história do mundo e a repercussão que sua vida provoca em toda a humanidade.

Mas, infelizmente, os homens do mundo em geral só vêm a face humana da Igreja, não tendo capacidade de ver o que nela há de sobrenatural. “O homem natural (animal) não compreende as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucuras, nem as pode compreender, porque é espiritualmente que se devem ponderar” (I Cor 2, 14). Por isso o candidato a usar o anel do pescador, ao papado, é em geral analisado nos seus aspectos humanos e mundanos, sendo as qualidades do futuro Papa assim ressaltadas.
Sob esse prisma e pelos parâmetros atuais, como me disse certa vez um Cardeal, São Pedro não teria a menor chance de ser eleito em um Conclave. Com efeito, seu currículo era bem fraco e nada entusiasmante. Oriundo da Galiléia, região não muito apreciada, pescador do lago de Genesaré, só falava uma língua, assim mesmo em dialeto, e não tinha grandes estudos. Era um instável emocional e impulsivo, foi até chamado por Jesus de “satanás”, quer dizer, adversário, quando, com vistas humanas, quis impedi-lo de ir a Jerusalém para sofrer sua Paixão. Mesmo com todas as promessas a ele feitas, acabou fugindo quando Jesus foi preso, e, pior ainda, negou que o conhecia, para escapar de uma eventual prisão. Era, humanamente falando, alguém não confiável para exercer qualquer cargo de importância. E, se houvesse “mídia” naquele tempo, ele seria completamente desmoralizado. Numa banca de apostas, qual chance teria Pedro de ser eleito em um Conclave? Você apostaria nele e, se fosse Cardeal, votaria nele?

“Meus pensamentos não são os vossos, e vosso modo de agir não é o meu, diz o Senhor, mas tanto quanto o céu está acima da terra, tanto é superior à vossa a minha conduta e meus pensamentos ultrapassam os vossos” (Is 55, 8-9).

Assim, “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20). Pedro foi a “pedra” escolhida por Jesus para ser o fundamento de sua Igreja, o primeiro Papa, o seu “vigário” aqui na terra. Assim como Jesus, “a pedra rejeitada pelos construtores tornou-se a pedra angular” (Mt 21, 42). Pedro caracteriza bem a Igreja, em seu aspecto humano e divino. Fraca e forte, desprezível e imbatível, sacudida, mas indefectível, cheia de pecadores, mas santa em sua doutrina e na sua graça. E isso por causa da garantia que lhe dá o próprio Jesus Cristo. A vinda do Espírito Santo transformou aquele pescador em um sábio poliglota, em um valente defensor de Cristo, até com a própria vida. Por isso, apesar de todas as fraquezas da sua parte humana, ele recebeu o carisma de confirmar os seus irmãos na Fé e de apascentar as ovelhas e os cordeiros do Senhor. E os poderes do Inferno jamais prevalecerão contra a Igreja, edificada sobre essa pedra: “Non praevalebunt! (Mt 16, 18)”.

*Bispo da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney
http://domfernandorifan.blogspot.com.br/http:/ e /domrifan.wordpress.com/

Clodovis Boff reconhece o fracasso da teologia da libertação. "Sem Mim (Cristo), nada podereis fazer".

Irmão de Leonardo Boff defende Bento 16 e critica Teologia da Libertação


Alexandre Gonçalves | Colaboração para a Folha - Em maio de 1986, os irmãos Clodovis e Leonardo Boff publicaram uma carta aberta ao cardeal Joseph Ratzinger. O artigo analisava a instrução "Libertatis Conscientia", em que o futuro papa Bento 16 visava corrigir os supostos desvios da Teologia da Libertação na América Latina. Os religiosos brasileiros desaprovavam, com uma ponta de ironia e uma boa dose de audácia, a "linguagem com 30 anos de atraso" no texto.

Em 2007, o irmão mais novo de Leonardo Boff voltou à carga. Mas, dessa vez, o alvo foi a própria Teologia da Libertação --movimento do qual ele foi um dos principais teóricos e que defende a justiça social como compromisso cristão. Ele censurou a instrumentalização da fé pela política e enfureceu velhos colegas ao sugerir que teria sido melhor levar a sério a crítica de Ratzinger.

Em entrevista à Folha por telefone, frei Clodovis diz que Bento 16 defendeu o "projeto essencial" da Teologia da Libertação, mas o critica por superdimensionar a força do secularismo no mundo.

Folha - Bento 16 foi o grande inimigo da Teologia da Libertação?

Clodovis Boff - Isso é uma caricatura. Nos dois documentos que publicou, Ratzinger defendeu o projeto essencial da Teologia da Libertação: compromisso com os pobres como consequência da fé. Ao mesmo tempo, critica a influência marxista. Aliás, é uma das coisas que eu também critico.

No documento de 1986, ele aponta a primazia da libertação espiritual, perene, sobre a libertação social, que é histórica. As correntes hegemônicas da Teologia da Libertação preferiram não entender essa distinção. Isso fez com que, muitas vezes, a teologia degenerasse em ideologia.

E os processos inquisitoriais contra alguns teólogos?

Ele exprimia a essência da igreja, que não pode entrar em negociações quando se trata do núcleo da fé. A igreja não é como a sociedade civil, onde as pessoas podem falar o que bem entendem. Nós estamos vinculados a uma fé. Se alguém professa algo diferente dessa fé, está se autoexcluindo da igreja.

Na prática, a igreja não expulsa ninguém. Só declara que alguém se excluiu do corpo dos fiéis porque começou a professar uma fé diferente.

Não há margem para a caridade cristã?

O amor é lúcido, corrige quando julga necessário. [O jesuíta espanhol] Jon Sobrino diz: "A teologia nasce do pobre". Roma simplesmente responde: "Não, a fé nasce em Cristo e não pode nascer de outro jeito". Assino embaixo.

Quando o sr. se tornou crítico à Teologia da Libertação?

Desde o início, sempre fui claro sobre a importância de colocar Cristo como o fundamento de toda a teologia. No discurso hegemônico da Teologia da Libertação, no entanto, eu notava que essa fé em Cristo só aparecia em segundo plano. Mas eu reagia de forma condescendente: "Com o tempo, isso vai se acertar". Não se acertou.

"Não é a fé que confere um sentido sobrenatural ou divino à luta. É o inverso que ocorre: esse sentido objetivo e intrínseco confere à fé sua força." Ainda acredita nisso?

Eu abjuro essa frase boba. Foi minha fase rahneriana. [O teólogo alemão] Karl Rahner estava fascinado pelos avanços e valores do mundo moderno e, ao mesmo tempo, via que a modernidade se secularizava cada vez mais.

Rahner não podia aceitar a condenação de um mundo que amava e concebeu a teoria do "cristianismo anônimo": qualquer pessoa que lute pela justiça já é um cristão, mesmo sem acreditar explicitamente em Cristo. Os teólogos da libertação costumam cultivar a mesma admiração ingênua pela modernidade.

O "cristianismo anônimo" constituía uma ótima desculpa para, deixando de lado Cristo, a oração, os sacramentos e a missão, se dedicar à transformação das estruturas sociais. Com o tempo, vi que ele é insustentável por não ter bases suficientes no Evangelho, na grande tradição e no magistério da igreja.

Quando o sr. rompeu com o pensamento de Rahner?

Nos anos 70, o cardeal d. Eugênio Sales retirou minha licença para lecionar teologia na PUC do Rio. O teólogo que assessorava o cardeal, d. Karl Joseph Romer, veio conversar comigo: "Clodovis, acho que nisso você está equivocado. Não basta fazer o bem para ser cristão. A confissão da fé é essencial". Ele estava certo.

Assumi postura mais crítica e vi que, com o rahnerismo, a igreja se tornava absolutamente irrelevante. E não só ela: o próprio Cristo. Deus não precisaria se revelar em Jesus se quisesse simplesmente salvar o homem pela ética e pelo compromisso social.

Bento 16 sepultou os avanços do Concílio Vaticano 2º?

Quem afirma isso acredita que o Concílio Vaticano 2º criou uma nova igreja e rompeu com 2.000 anos de cristianismo. É um equívoco. O papa João 23 foi bem claro ao afirmar que o objetivo era, preservando a substância da fé, reapresentá-la sob roupagens mais oportunas para o homem contemporâneo.

Bento 16 garantiu a fidelidade ao concílio. Ao mesmo tempo, combateu tentativas de secularizar a igreja, porque uma igreja secularizada é irrelevante para a história e para os homens. Torna-se mais um partido, uma ONG.

Mas e a reabilitação da missa em latim? E a tentativa de reabilitação dos tradicionalistas que rejeitaram o Vaticano 2º?

Não podemos esquecer que a condição imposta aos tradicionalistas era exatamente que aceitassem o Vaticano 2º. O catolicismo é, por natureza, inclusivo. Há espaço para quem gosta de latim, para quem não gosta, para todas as tendências políticas e sociais, desde que não se contraponham à fé da igreja.

Quem se opõe a essa abertura manifesta um espírito anticatólico. Vários grupos considerados progressistas caíram nesse sectarismo.

Esses grupos não foram exceção. Bento 16 sofreu dura oposição em todo o pontificado.

A maioria das críticas internas a ele partiu de setores da igreja que se deixaram colonizar pelo espírito da modernidade hegemônica e que não admitem mais a centralidade de Deus na vida. Erigem a opinião pessoal como critério último de verdade e gostariam de decidir os artigos da fé na base do plebiscito.

Tais críticas só expressam a penetração do secularismo moderno nos espaços institucionais da igreja.

Como descreveria a relação de Bento 16 com a modernidade?

É possível identificar um certo pessimismo na sua reflexão. Ele não está só. Há um rio de literatura sobre a crise da modernidade, que remete até mesmo a autores como Nietzsche e Freud. O que ele tem de diferente? Propõe uma saída: a abertura ao transcendente.

Ainda assim, há pessimismo.

Há algo que ele precisaria corrigir: Bento 16 leva a sério demais o secularismo moderno. É uma tendência dos cristãos europeus. Eles esquecem que o secularismo é uma cultura de minorias. São poderosas, hegemônicas, mas ainda assim minorias.

A religião é a opção de 85% da humanidade. Os ateus não passam de 2,5%. Com os agnósticos, não chegam a 15%. Minoria culturalmente importante, sem dúvida: domina o microfone e a caneta, a mídia e a academia. Mas está perdendo o gás. Há um reavivamento do interesse pela espiritualidade entre os jovens.

Que outras críticas o sr. faria a Bento 16?

Ele preferiria resolver problemas teológicos a se debruçar sobre questões administrativas na Cúria. E isso gerou diversos constrangimentos no seu pontificado. Ele também não tem o carisma de um João Paulo 2º. De certa forma, era o esperado em um intelectual como ele.

Não está na hora de a igreja ficar mais próxima da realidade dos fiéis?

Bento 16 não resolveu um problema que se arrasta desde o Concílio Vaticano 2º: a necessidade de se criarem canais para a cúpula escutar e dialogar com as bases.

Os padres nas paróquias muitas vezes ficam prensados entre a letra fria que vem da cúpula e o cotidiano sofrido dos fiéis, que pode envolver dramas como aborto ou divórcio. Note que não sugiro mudanças no ensinamento da igreja. Mas acho que seria mais fácil para as pessoas viverem a doutrina católica se houvesse processos que facilitassem esse diálogo.

Como vê o futuro da igreja?

A modernidade não tem mais nada a dizer ao homem pós-moderno. Quais as ideologias que movem o mundo? Marxismo? Socialismo? Liberalismo? Neoliberalismo? Todas perderam credibilidade. Quem tem algo a dizer? As religiões e, sobretudo no Ocidente, a Igreja Católica.

Fonte: Folha de São Paulo

sexta-feira, 8 de março de 2013

O papel da mulher na sociedade e na Igreja (reprise).


A mulher sem alma

Régine Pernoud

Em 1975, “ano internacional da mulher”, o ritmo de referências à Idade Média tornou-se estonteante; a imagem da Idade Média, dos tempos obscuros de onde se emerge, como a Verdade de um poço, impunha-se a todos os espíritos e fornecia um tema básico para os discursos, colóquios, simpósios e seminários de todos os tipos. Como eu mencionasse, um dia, em sociedade, o nome de Eleonora de Aquitânia, obtive logo aprovações entusiásticas: “Que personagem admirável! — exclamou um dos presentes. Numa época em que as mulheres só pensavam em ter filhos...”. Eu lhe fiz uma observação sobre o fato de que Eleonora parecia haver pensado assim pois teve dez e, considerando sua personalidade, isto não poderia ter ocorrido por simples advertência. O entusiasmo tornou-se um pouco menor.



A situação da mulher, na França medieval, é na atualidade assunto mais ou menos novo: poucos estudos sérios lhe foram consagrados, pode-se mesmo dizer que se os poderia contar pelos dedos. A sociedade Jean Bodin, cujos trabalhos são tão notáveis, editou em 1959-1962 dois grossos volumes (respectivamente 346 e 770 páginas) sobre a mulher. Todas as civilizações são sucessivamente examinadas. A mulher é estudada na sociedade do Sião, ou de acordo com os vários direitos cuneiformes, ou no Direito malikité-magrebino, mas, para o nosso Ocidente medieval, não se contam mais do que dez páginas relativas ao Direito canônico, outras dez ao período que vai do século XIII ao fim do século XVII, um estudo consagrado aos tempos clássicos até o Código Civil, um outro, a monarquia Franca, e trabalhos mais pormenorizados sobre a Itália, a Bélgica e a Inglaterra, na Idade Média. E eis tudo. O período feudal é completamente esquecido.



É igualmente inútil procurar nesta obra um estudo sobre a mulher nas sociedades célticas, onde, estamos certos, ela tinha um papel contrastante com o confinamento a que estava sujeita nas sociedades do tipo clássico greco-romano. No que se refere aos celtas, para os historiadores de nossa época, o homem e a mulher se encontravam num pé de igualdade completa, tanto que não se ressalta nunca nem um nem outro. Aos celtas, de uma vez por todas, foi recusado o direito de existir.



No entanto, impõe-se uma imagem, à qual já tive ocasião de me referir.1.Não é, em realidade, surpreendente pensar que nos tempos feudais a rainha é coroada como o rei, geralmente em Reims, às vezes em outra catedral do domínio real (em Sens, como Margarida de Provence), mas sempre pelas mãos do arcebispo de Reims? Dito de outra forma, atribuía-se à coroação da rainha tanto valor quanto à do rei. Ora, a última rainha a ser coroada foi Maria de Medicis; ela o foi, aliás, tardiamente, em 1610, na véspera do assassinato de seu marido, Henrique IV; a cerimônia ocorreu em Paris, segundo um costume consagrado nos séculos anteriores (atingir Reims representava então um feito militar por causa das guerras anglo-francesas). E, além disso, desde os tempos medievais (o termo é tomado aqui em oposição a tempos feudais), a coroação da rainha tinha-se tornado menos importante que a do rei; numa época em que a guerra se alastrava pela França de forma endêmica (a famosa Guerra dos Cem Anos), as necessidades militares começaram a ter primazia entre todas as preocupações, por ser o rei, antes de tudo, o “chefe da guerra”. Tanto assim é que, no século XVII, a rainha desaparece literalmente da cena em proveito da favorita. Basta lembrar qual foi o destino de Maria Teresa ou o de Maria Leszcynska para se convencer. E quando a última rainha quis retomar uma parte deste poder, lhe foi dada ocasião de se arrepender, pois ela se chamava Maria Antonieta (é justo lembrar que a última favorita, a Du Barry, reuniu-se à última rainha no cadafalso).



Esta rápida visão do papel das rainhas dá idéia bem exata do que se passou com as mulheres; o lugar que elas ocuparam na sociedade; a influência que exerceram seguiu, exatamente, um traçado paralelo. Enquanto uma Eleonora de Aquitânia, uma Branca de Castela dominam realmente seus séculos, exercem poder sem contestação no caso de ausência do rei, doente ou morto, e têm suas chancelarias, suas alfândegas, seus campos de atividade pessoal (que poderia ser reivindicado como um fecundo exemplo para os movimentos feministas de nosso tempo), a mulher, nos tempos clássicos, foi relegada a um segundo plano; exerce influência só na clandestinidade e se encontra notoriamente excluída de toda função política ou administrativa. Ela é mesmo tida como incapaz de reinar, de suceder no feudo ou no domínio, principalmente nos países latinos e, finalmente, em nosso Código, de exercer qualquer direito sobre seus bens pessoais.



É, como sempre, na História do Direito que se deve procurar os fatos e seu significado, ou seja, a razão desta decadência que se transformou, com o século XIX, no desaparecimento total do papel da mulher, principalmente na França. Sua influência diminui paralelamente à ascensão do Direito romano nos estudos jurídicos, depois nas instituições e, por fim, nos costumes. É um apagar progressivo do qual se pode seguir as principais etapas, pelo menos na França, muito bem.



Curiosamente a primeira disposição que afasta a mulher da sucessão ao trono foi tomada por Filipe, o Belo. É verdade que este rei estava sob a influência dos legisladores meridionais, que tinham literalmente invadido a corte de França, o começo do século XIV, e que, representantes típicos da burguesia das cidades notadamente das do Sul mais voltadas para o comércio, redescobriram o Direito romano com uma verdadeira avidez intelectual.



Esse Direito concebido por militares, funcionários, comerciantes, conferia aos proprietários o jus utendi et abutendi, o direito de usar e abusar, em completa contradição com o Direito consuetudinário de então, mas eminentemente favorável aos que detinham riquezas, principalmente móveis. Àqueles, com razão, esta legislação parecia infinitamente superior aos costumes existentes para assegurar e garantir bens, tráficos e negócios. O Direito romano do qual vemos renascer a influência na Itália, em Bolonha principalmente, foi a grande tentação do período medieval; ele foi estudado com entusiasmo não só pela burguesia das cidades, mas, também, por todos os que viam nele um instrumento de centralização e de autoridade. Ele se ressente, com efeito, de suas origens imperialistas e, por que não dizer, colonialistas. Ele é o Direito, por excelência, dos que querem firmar uma autoridade central estatizada. Também é reivindicado, adotado, estendido para as potências que procuravam, então, a centralização: pelo imperador, primeiro, depois pelo Papa. Em meados do século XIII, o imperador Frederico II, cujas tendências eram as de um monarca, fez deste tipo de direito a lei comum dos países germânicos. A universidade que ele funda em Nápoles — a única que os súditos do imperador estavam daí em diante autorizados a freqüentar — ministra o estudo do Direito romano, tão bem que esse Direito regeu as instituições e os costumes dos países germânicos numa época em que o Ocidente não o admitia ainda.2. Apenas ao longo do século XVII é que o estudo do Direito romano, precisamente, porque era o Direito imperial, será admitido na Universidade de Paris. É verdade que, muito antes, era ensinado em Toulouse, e que, favorecido pela admiração exagerada que se sente, no século XVI, pela Antiguidade, tinha começado a impregnar os hábitos e a modificar profundamente os costumes e as mentalidades, na própria França.



Ora, o Direito romano não é favorável à mulher, nem tampouco à criança. É um direito monárquico, que só admite um fim. É o direito do pater familias, pai, proprietário e, em sua casa, grande-sacerdote, chefe da família com poderes sagrados, sem limites no que concerne a seus filhos; tem sobre eles direito de vida e de morte — e da mesma forma sobre sua mulher, apesar das limitações, tardiamente introduzidas sob o Baixo Império.



Apoiando-se no Direito romano é que juristas como Dumoulin, por seus tratados e seus ensinamentos, contribuem, por sua vez, para estender o poder do Estado centralizado e também — o que nos interessa aqui — para restringir a liberdade da mulher e da sua capacidade de ação, principalmente no casamento. A influência deste direito será tão forte que, no século XVI, a maioridade, que era aos doze anos para as meninas e quatorze para os rapazes, na maior parte dos costumes, vai ser transferida para a mesma idade fixada em Roma, isto é, vinte e cinco anos (em Roma, a maioridade não importava muito, pois o poder do pai sobre os filhos perdurava durante toda a vida). Era uma nítida regressão sobre o Direito consuetudinário, que permitia à criança adquirir, muito jovem, uma verdadeira autonomia, sem que, por isso, a solidariedade da família lhe fosse negada. Nesta estrutura, o pai tinha autoridade de gerente, não de proprietário: ele não tinha o poder de deserdar seu filho mais velho e era o costume que, nas famílias nobres ou de homens comuns, regulava a devolução dos bens, em um sentido que mostra claramente o poder que a mulher conservava sobre o que lhe pertencia: no caso de um casal morrer sem herdeiros diretos, os bens provenientes do pai iam para a família paterna, mas os provenientes da mãe voltavam para a família materna, segundo o adágio bem conhecido do Direito consuetudinário: paterna paternis, materna maternis.



No século XVII já se constata uma profunda evolução neste ponto de vista: os filhos, considerados como menores até vinte e cinco anos, continuam sob a autoridade do pai e a característica de propriedade tendente a tornar-se monopólio do pai não faz mais do que se firmar. O Código de Napoleão dá o último retoque a este dispositivo e dá um sentido imperativo às tendências que começaram a se firmar desde o fim da época medieval. Lembremos que apenas no fim do século XVII a mulher toma obrigatoriamente o nome do marido; e, também, que é somente com o Concílio de Trento, portanto na segunda metade do século XVI, que o consentimento dos pais torna-se necessário para o casamento de adolescentes; tanto quanto se tornou indispensável a sanção da Igreja. Ao velho adágio dos tempos anteriores:

Beber, comer, dormir juntos

Fazem o casamento, me parece

junta-se:

Mas é preciso passar pela Igreja.

Não nos esqueceremos de destacar aqui o número de uniões devidamente arranjadas pela família nos tempos feudais: os exemplos são abundantes realmente, moças e rapazes, noivos desde o berço, prometidos um ao outro. Também não faltou quem quisesse argumentar com o fato de que as mulheres não eram livres na época; o que é fácil de retrucar, pois que, deste ponto de vista, rapazes e moças se encontravam em pé de igualdade rigorosa, porque se dispõe do futuro esposo absolutamente do mesmo modo que da futura esposa. Deste modo, é incontestável que ocorria, então, o que ainda hoje acontece em dois terços do mundo, isto é, que as uniões, em sua grande maioria, eram arranjadas pelas famílias. E nas famílias nobres, especialmente as reais, essas disposições faziam, de algum modo, parte das responsabilidades de nascimento, porque um casamento entre dois herdeiros de feudo ou de reinos era considerado como o melhor meio de selar um tratado de paz, assegurar amizade recíproca e, também, de garantir para o futuro uma herança vultosa.



Uma força lutou contra estas uniões impostas, e esta foi a Igreja; ela multiplicou, no Direito canônico, as causas de nulidade, reclamou sem cessar a liberdade para os que se unem, um com relação ao outro e, com freqüência, mostrou-se bastante indulgente ao tolerar, na realidade, a ruptura de laços impostos — muito mais nesta época do que mais tarde, notemos. O resultado é a constatação que provém da simples evidência de que o progresso da livre escolha do esposo acompanhou em toda parte o progresso da difusão do Cristianismo. Hoje, em países cristãos, esta liberdade, tão justamente reclamada, é reconhecida pelas leis, enquanto que, nos países muçulmanos ou nos países do Extremo Oriente, esta liberdade, que nos parece essencial, não existe ou só recentemente foi concedida.3



Isto nos leva a discutir o slogan: “Igreja hostil à mulher”. Não nos demoraremos em questionar a afirmação acima, o que exigiria um volume à parte; não iremos mais discutir as tolices evidentes4 que foram proferidas sobre o assunto. “Não foi senão no século XV que a Igreja admitiu que a mulher tinha alma”, afirmava candidamente, um dia no rádio, não sei que romancista certamente cheio de boas intenções, mas cuja informação apresentava algumas lacunas! Assim, durante séculos, batizou-se, confessou-se e ministrou-se a Eucaristia a seres sem alma! Neste caso, por que não aos animais? É estranho que os primeiros mártires honrados como santos tenham sido mulheres e não homens. Santa Agnes, Santa Cecília, Santa Ágata e tantas outras. É verdadeiramente triste que Santa Blandina ou Santa Genoveva tenham sido desprovidas de uma alma imortal. É surpreendente que uma das mais antigas pinturas das catacumbas (no cemitério de Priscille) representasse, precisamente, a Virgem com o Menino, bem designado pela estrela e pelo profeta Isaías. Enfim, em quem acreditar, nos que reprovam na Igreja medieval justamente o culto da Virgem Maria, ou naqueles que julgam que a Virgem Maria era, então, considerada como uma criatura sem alma?



Sem nos demorarmos, portanto, nestas tolices, recordaremos aqui que algumas mulheres (que nada designavam particularmente, pela família ou pelo nascimento, pois que vinham, como diríamos atualmente, de todas as camadas sociais, como, por exemplo, a pastora de Nanterre) usufruíram na Igreja, e justamente por sua função na Igreja, de um extraordinário poder na Idade Média. Certas abadessas eram senhoras feudais cujo poder era respeitado do mesmo modo que o de outros senhores; algumas usavam o báculo como os bispos; administravam, muitas vezes, vastos territórios com cidades e paróquias... Um exemplo, entre mil outros: no meio do século XII, cartulários nos permitem seguir a formação do mosteiro de Paraclet, cuja superiora é Heloisa; basta percorre-los para constatar que a vida de uma abadessa, na época, comporta todo um aspecto administrativo: as doações que se acumulam, que permitiam perceber ora o dízimo de um vinhedo, ora o direito às taxas sobre o feno e o trigo, aqui o direito de usufruir uma granja, e lá o direito de pastagem na floresta... Sua atividade é, também, a de um usufruidor, ou seja, a de um senhor. Quer dizer que, a par de suas funções religiosas, algumas mulheres exerciam, mesmo na vida laica, um poder que muitos homens invejariam no presente.



Por outro lado, constata-se que as religiosas desta época — sobre as quais, digamos de passagem, ainda nos faltam estudos sérios — são na maioria mulheres extremamente instruídas, que poderiam rivalizar, em sabedoria, com os monges mais letrados do tempo. A própria Heloísa conhece e ensina às monjas o grego e o hebraico. É de uma abadia de mulheres, a de Gandersheim, que provém um manuscrito do século X contendo seis comédias, em prosa rimada, imitação de Terêncio, e que são atribuídas à famosa abadessa Hrostsvitha, da qual, há muito tempo, conhecemos a influência sobre o desenvolvimento literário nos países germânicos. Estas comédias, provavelmente representadas pelas religiosas, são, do ponto de vista da história dramática, consideradas como prova de uma tradição escolar que terá contribuído para o desenvolvimento do teatro na Idade Média. Digamos, de passagem, que muitos mosteiros de homens e de mulheres ministravam instrução às crianças da região.



É surpreendente, também, constatar que a mais conhecida enciclopédia do século XII é da autoria de uma religiosa, a abadessa Herrade de Landsberg. É a famosa Hortus deliciarum (Jardim das delícias) na qual os eruditos retiravam os ensinamentos mais corretos sobre o avanço das técnicas, em sua época. Poder-se-ia dizer o mesmo das obras da celebre Hildegarde de Bingen. Enfim, uma outra religiosa, Gertrude de Helfa, no século XIII, conta-nos como se sentiu feliz ao passar de estado de gramaticista ao de teóloga, isto é, depois de ter percorrido o ciclo de estudos preparatórios ela galgara o ciclo superior, como se fazia na Universidade. O que prova que, ainda no século XIII, os conventos de mulheres permaneciam sendo o que sempre foram desde São Jerônimo, que instituiu o primeiro dentre eles, a comunidade de Belém: lugares de oração, mas, também, de ciência religiosa, de exegese, de erudição; estuda-se a Escritura Sagrada, considerada como a base de todo conhecimento e, também, os elementos de saber religioso e profano. As religiosas são moças instruídas; portanto, entrar para o convento é o caminho normal para as que querem desenvolver seus conhecimentos além do nível comum. O que parece extraordinário em Heloísa é que, em sua juventude, não sendo religiosa e não desejando claramente entrar para o convento, procurava, todavia, estudos muito áridos, ao invés de se contentar com a vida mais frívola, mais despreocupada, de uma jovem desejando “viver no século”. A carta que Pedro, o Venerável lhe enviou o diz expressamente.



Mas há algo mais surpreendente. Se quisermos fazer uma idéia exata do lugar ocupado pela mulher na Igreja dos tempos feudais, é preciso perguntarmo-nos o que se diria, em nosso século XX, de conventos de homens colocados sob a direção de uma mulher. Um projeto deste gênero teria, em nosso tempo, alguma possibilidade de se realizar? E, no entanto, isto foi realizado com pleno sucesso, e sem provocar o menor escândalo, na Igreja por Robert d’Arbrissel, em Fontevrault, nos primeiros anos do século XII. Tendo resolvido fixar a incrível multidão de homens e mulheres que se arrastava atrás dele — porque ele foi um dos maiores pregadores de todos os tempos —, Robert d’Abrissel decidiu fundar dois conventos, um de homens, outro de mulheres;5 entre eles se elevava a Igreja, único lugar em que monges e monjas podiam se encontrar. Ora, este mosteiro duplo foi colocado sob a autoridade, não de um abade, mas de uma abadessa. Esta, por vontade do fundador, devia ser viúva, tendo tido a experiência do casamento. Para completar, digamos que a primeira abadessa que presidiu os destinos da Ordem de Fontevrault, Petronila de Chemillé, tinha 22 anos. Não acreditamos que, mesmo nos dias de hoje, semelhante audácia tivesse a menor oportunidade de ser considerada ao menos uma única vez.



Se se examinam os fatos, uma conclusão se impõe: durante todo o período feudal, o lugar da mulher na igreja apresentou algumas diferenças daquele ocupado pelo homem (e em que medida não seria esta uma prova de sabedoria: levar em conta que o homem e a mulher são duas criaturas equivalentes, mas diferentes?), mas este foi um lugar eminente, que simboliza, por outro lado, perfeitamente o culto, insigne também, prestado à Virgem entre todos os santos. E é pouco surpreendente que a época termine por uma figura de mulher: a de Joana D’Arc, que, seja dito de passagem, não poderia, jamais, nos séculos seguintes, obter a audiência e suscitar a confiança que conseguiu, afinal.



É surpreendente, também, observar a rigidez que se produziu ao redor da mulher no extremo fim do século XIII. É por uma medida bastante significativa que, em 1298, o Papa Bonifácio VII decide para as monjas (cartuxas, cistercienses) a clausura total e rigorosa que elas conheceram a partir daí. Em seguida, não se admitirá mais que a religiosa se misture com o mundo. Não se tolerarão mais estas leigas consagradas, que foram as penitentes, no século XIII, que levavam uma vida igual a todos, mas que se consagravam por um voto religioso. No século XVII, principalmente, veremos as religiosas da Visitação, destinadas, por sua fundadora, a se misturarem com a vida quotidiana, obrigadas a se conformar com a mesma clausura das carmelitas; tanto que São Vicente de Paulo, para permitir às Irmãs de Caridade prestar serviço aos pobres, tratar dos doentes e cuidar das famílias necessitadas, evitará tratá-las como religiosas e de fazê-las proferir os votos: seu destino foi, então, de Visitadoras. Não se poderia mais conceber que uma mulher tendo decidido consagrar sua vida a Deus não fosse enclausurada; enquanto que, nas novas ordens criadas para os homens, por exemplo os Jesuítas, estes permaneciam no mundo.



Basta dizer que o status da mulher na Igreja é exatamente o mesmo que na sociedade civil e que tudo o que lhe conferia alguma autonomia, alguma independência, alguma instrução, lhe foi, pouco a pouco, retirado depois da Idade Média. Ora, como ao mesmo tempo a universidade — que admite apenas os homens — tenta concentrar o saber e o ensino, os conventos deixam, de modo gradativo, de ser os centros de estudo que tinham sido anteriormente; digamos que eles param, também, e muito rapidamente, de ser centros de oração.



A mulher se encontra, portanto, excluída da vida eclesiástica, como da vida intelectual. O movimento se precipita quando, no começo do século XVI, o rei de França mantém nas mãos a nomeação de abadessas e abades. O melhor exemplo continua sendo a Ordem de Fontevrault, que se torna um asilo para as velhas amantes do rei. Asilo onde se leva daí em diante uma vida cada vez menos edificante, porque a clausura tão rigorosa não demora a sofrer grandes alterações, confessadas ou não. Se algumas ordens, como a do Carmelo ou de Santa Clara, guardam sua pureza graças a reformas, a maior parte dos mosteiros de mulheres, no fim do Antigo Regime, é de casas de recolhimento onde as filhas caçulas de grandes famílias recebem muitas visitas e onde se jogam cartas e outros “jogos proibidos”, até tarde da noite.



Faltaria falar das mulheres que não eram nem grandes damas nem abadessas, nem mesmo monjas: camponesas ou citadinas, mães de família ou trabalhadoras. Inútil dizer que, para ser corretamente tratada, a questão reclamaria muitos volumes e, também, que exigiria trabalhos preliminares, que não foram feitos. Seria indispensável pesquisar não somente as coleções sobre os costumes ou os estatutos das cidades, mas, também, os cartulários, os documentos judiciários ou, ainda, os inquéritos ordenados por São Luís; 6 destacam-se aí, colhidos na vida quotidiana, mil pequenos pormenores colhidos ao acaso e sem ordem preconcebida, que nos mostram homens e mulheres através dos menores atos de suas existências: aqui a queixa de uma cabeleireira, ali a de uma salineira (comércio do sal), de uma moleira, da viúva de um agricultor, de uma castelã, da mulher de um cruzado, etc.



É por documentos deste gênero que se pode, peça por peça, reconstituir, como em um mosaico, a história real. Ela nos parece aí, é inútil dizer, muito diferente das canções de gesta, dos romances de cavalaria ou das fontes literárias que tão freqüentemente tomamos por fontes históricas!



O quadro que se delineia da reunião desses documentos nos apresenta mais de um traço surpreendente, pois vemos, por exemplo, mulheres votarem como homens em assembléias urbanas ou nas das comunas rurais. Freqüentemente, no divertimos em conferências ou palestras diversas, citando o caso de Gaillardine de Fréchou, que diante de um arrendamento proposto aos habitantes de Cauterets, nos Pirineus, pela Abadia de Saint-Savin, foi a única a votar não, quando todo o resto da população votou sim. O voto das mulheres nem sempre é expressamente mencionado, mas isto pode ser porque não se via necessidade em faze-lo. Quando os textos permitem diferenciar a origem dos votos, percebe-se que, em certas regiões, tão diferentes como as comunas bearnenses, certas cidades de Champanha, ou algumas cidades do leste como Pont-à-Mousson, ou ainda na Touraine, na ocasião dos Estados-Gerais de 1308, as mulheres são explicitamente citadas entre os votantes, sem que isto seja apresentado como um uso particular do local. Nos estatutos das cidades indica-se, em geral, que os votos são recolhidos na assembléia dos habitantes sem nenhuma especificação; às vezes, faz-se menção da idade, indicando, como em Aurillac, que o direito de voto é exercido com a idade de vinte anos, ou em Embrun, a partir de quatorze anos. Acrescentamos a isto que, como geralmente os votos se fazem por fogo, quer dizer, lar, lareira, por casa, de preferência a por indivíduo, é aquele que representa o “fogo”, portanto, o pai de família, que é chamado a representar os seus; se é o pai de família que é naturalmente seu chefe, fica bem claro que sua autoridade é a de um gerente e de um administrador, não a de um proprietário.



Nas atas de notários é muito freqüente ver uma mulher casada agir por si mesma, abrir, por exemplo, uma loja ou uma venda, e isto sem ser obrigada a apresentar uma autorização do marido. Enfim, os registros de impostos (nós diríamos, os registros de coletor), desde que foram conservados, como é o caso de Paris, no fim do século XIII, mostram multidão de mulheres exercendo funções: professora, médica, boticária, estucadora, tintureira, copista, miniaturista, encadernadora, etc.



Não é senão no fim do século XVI, por um decreto do Parlamento, datado de 1593, que a mulher será afastada explicitamente de toda a função no Estado. A influência crescente do Direito romano não tarda, então, a confinar a mulher no que foi sempre seu domínio privilegiado: os cuidados domésticos e a educação dos filhos. Até o momento em que isto, também lhe será retirado por lei, porque, destaquemos, com o Código de Napoleão ela já não é nem mesmo a senhora de seus próprios bens e desempenha, em sua casa, papel subalterno. Embora desde Montaigne até Jean-Jacques Rousseau sejam os homens que elaborem tratados sobre a educação, o primeiro, publicado na França foi de uma mulher, Dhuoda, que o elaborou (em versos latinos) por volta de 841-843, para uso de seus filhos. 7



Há alguns anos, certas discussões ocorridas a respeito da questão da autoridade paterna, na França, foram muito desconcertantes para o historiador da Idade Média; realmente, a idéia de que foi necessária uma lei para dar à mulher direito de olhar pela educação de seus filhos teria parecido paradoxal nos tempos feudais. A comunidade conjugal, pai e mãe, exercia conjuntamente, então, a função da educação e da proteção dos filhos, assim como, eventualmente, a administração de seus bens. É verdade que a família era concebida em um sentido mais amplo; esta educação causa infinitamente menos problemas, porque ela se faz no meio de um contexto vital, de uma comunidade familiar mais abrangente e mais diversificada do que hoje, pois não está reduzida à célula inicial pai-mãe-criança, mas comporta também os avós, colaterais, domésticos no sentido etimológico do termo. O que não impede que a criança tenha, eventualmente, sua personalidade jurídica distinta; assim, se ela herda bens próprios (legados, por exemplo, por um tio), estes são administrados pela comunidade familiar, que, em seguida, deverá prestar-lhe conta.



Poder-se-ia multiplicar assim os exemplos, com pormenores fornecidos pela história do Direito e dos costumes, atestando a degradação do lugar ocupado pela mulher entre os costumes feudais e o triunfo de uma legislação “à romana”, da qual nosso Código ainda está impregnado. Seria melhor que, na época em que os moralistas queriam ver “a mulher em casa”, fosse mais indicado inverter a proposição e exigir que o lar fosse da mulher.



A reação só chegou em nossos tempos. Entretanto, ela é, digamo-lo, muito decepcionante: tudo se passa como se a mulher, eufórica pela idéia de ter penetrado no mundo masculino, continuasse incapaz da força da imaginação suplementar, que lhe seria necessária, para levar a este mundo seu traço particular, precisamente aquele que faz falta à nossa sociedade. Basta-lhe imitar o homem, ser julgada capaz de exercer as mesmas funções, adotar os comportamentos e até os hábitos de vestir do seu parceiro, sem mesmo se questionar sobre o que é realmente contestável e o que deveria ser contestado. Seria o caso de se perguntar se ela não está movida por uma admiração inconsciente, o que podemos considerar excessivo, por um mundo masculino que ela acredita necessário e suficiente copiar com tanta exatidão quanto possível, seja perdendo ela própria sua identidade, ou negando antecipadamente sua originalidade.



Tais constatações levaram-nos bem longe do mundo feudal; elas podem, em todo o caso, levar ao desejo que este mundo feudal seja um pouco mais bem conhecido, dos que crêem, de boa fé, que a mulher “sai enfim da Idade Média”: elas têm muito que fazer para reencontrar o lugar que foi seu nos tempos da rainha Eleonora ou da rainha Branca...

Idade Média: O Que Não Nos Ensinaram, Capítulo VI, Editora Agir, Rio de Janeiro 1978.

Notas:

P. Riché, Dhuoda Manuel pour mon fils, Paris, Ed. du Cerf, 1975.


1.Histoire de la bourgeoisie, op. Cit., t. II, pp. 30-31.
2.[ Paradoxalmente, os países germânicos foram modelados pelo Direito romano, enquanto que, na França, embora desagrade aos que continuam presos ao mito de “raça latina”, os costumes eram formados por hábitos que acreditamos “germânicos” e que devíamos antes chamar “célticos”.

3.“A legislação muçulmana proíbe à mulher o que ela reivindica, atualmente, e que chama de seus direitos, o que não constitui senão uma agressão contra os direitos que foram conferidos apenas aos homens”. Assim se exprimia, em 1952, em uma publicação intitulada Al Mistri, o Xeque Hasanam Makhluf (ver La Documentation française, n° 2418, 31 de maio de 1952, p. 4).

4.Não pensamos que fosse necessário, quando da primeira edição deste livro, lembrar as origens desta ridícula afirmação. Mas acontece que, ouvindo-a recentemente (1989), este esclarecimento parece útil. Gregório de Tour, na sua Histoire des Francs (História dos Francos), cap. 91, conta que o Sínodo de Mâcon de 486, ao qual ele não assistiu — diga-se de passagem —, um dos prelados fez notar “que não se devia compreender as mulheres sob o nome dos homens”, dando à palavra homo o sentido restrito do latim vir. Acrescenta que, consultando a Sagrada Escritura, “os argumentos dos bispos o fizeram reconhecer” essa falsa interpretação, o que “fez cessar a discussão”. Mas os autores da Grande Enciclopédia do século XVIII iriam explorar este pequeno incidente (que sequer consta dos cânones do Concílio) para deixar crer que se recusava à mulher a natureza...

5.Houve, daí em diante, numerosas ordens duplas na época, principalmente nos países anglo-saxões e na Espanha.

6.Iniciativa sem precedente, e também sem futuro, que consistia em fazer supervisionar, pelo rei, sua própria administração, dirigindo-se diretamente aos administradores: o rei enviava aos lugares os pesquisadores, unicamente encarregados de recolher as palavras das pessoas sem importância, que tinham motivos de reclamar dos agentes reais, e reformar assim, no local, os abusos cometidos; em outras palavras, era o caminho eficaz que remediou os defeitos do estatismo.

7.. Riché, Dhuoda Manuel pour mon fils, Paris, Ed. du Cerf, 1975.

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