segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Revelações a Santa Catarina de Siena.



Catarina de Siena (25 de Março 1347 - 29 de Abril 1380) foi uma leiga da Ordem Terceira de São Domingos, venerada como Santa Catarina na Igreja Católica. Catarina de Siena foi ainda uma personagem influente no Grande Cisma do Ocidente.
Catarina nasceu em Siena, Itália no dia 25 de março do ano 1347, sendo a 24ª filha de um tintureiro chamado Giacomo di Benincasa. Os seus pais eram burgueses comerciantes, com forte sentido religioso e familiar, próprio do seu tempo.

Aos 7 anos de idade Catarina consagrou a sua virgindade a Cristo e aos 15 ingressou na Ordem Terceira de São Domingos. Catarina encarou a sua clausura com seriedade e vivia encerrada no seu próprio quarto, onde, por intermédio da oração e diálogo afirmava que estava sempre com e em Cristo. Catarina abandonou a sua cela somente em 1374, quando a peste se alastrou por toda a Europa e ela decidiu cuidar dos enfermos e abandonados, tendo praticado grandes actos de caridade. Nesse mesmo ano (1374), recebeu uma visão e ficou estigmatizada. Na visão Cristo lhe disse de d'ora em diante ela trabalharia pela paz, e mostraria a todos que uma mulher fraca pode envergonhar o orgulho dos fortes.

No ano 1376, quando toda a Itália estava envolvida em graves disputas políticas à volta do papado, organizaram-se nas cidades de Peruggia, Florença, Pisa e em toda a Toscânia milícias e revoltas contra o poder político do Papa Gregório XI. Catarina decidiu seguir até Avinhão, cidade onde os papas viviam desde há mais de 70 anos, e apresentar-se diante do mesmo para o convencer a regressar a Roma, pois que tal seria fundamental para a unidade da Igreja e pacificação da Itália. Tendo obtido esse grande sucesso em 1378, voltou para sua cidade, onde adoeceu e faleceu em 29 de Abril de 1380, dia em que se comemora a sua memória litúrgica. Tal sucesso foi no entanto de pouca duração, pois que a eleição seguinte tornou a mergulhar a cristandade em nova divisão: o Grande Cisma do Ocidente.

Embora analfabeta, Catarina ditou mais de 300 cartas endereçadas a todo o tipo de pessoas, desde papas, aos reis e líderes, como também ao povo humilde, onde lutava pela unificação da Igreja e a pacificação dos Estados Papais. Uma das suas obras ditadas, Diálogo sobre a Divina Providência, é um livro ainda hoje considerado um dos maiores testemunhos do misticismo cristão e uma exposição clara de suas idéias teológicas e espiritualidade.

Em 1970, o Papa Paulo VI declarou-a Doutora da Igreja, sendo a única leiga a obter esta distinção. O Papa João Paulo II declarou-a co-padroeira da Europa, juntamente com Santa Brígida da Suécia e Santa Teresa Benedita da Cruz.


Deus Pai Fala à Seus filhos: Revelações à Santa Catarina de Sena


Introdução

Santa Catarina, por sua vida exemplar e pelo conhecimento adquirido de Deus e da Sua "visão" para com o mundo e a humanidade, constituiu-se em sua época em formidável instrumento da Providência Divina, para iluminar o mundo e a Igreja, tendo nesta desfrutado de enorme autoridade.

Teve um intensa vida mística iniciada aos 6 anos de idade quando desfrutou de uma extraordinária visão de Jesus.

Em 1370, aos 23 anos, passou por sua experiência mística mais importante, quando chegou a parecer morta por várias horas em um êxtase profundo no que foi acompanhada por diversas pessoas inclusive vários padres. Neste, conta o seu primeiro biografo e diretor espiritual, Frei Raimundo da Cápua, que ela posteriormente lhe teria revelado que sua alma havia sido retirada do seu corpo e levada à conhecer os mistérios divinos, e como se mostrasse contrariada em retornar ao corpo, o Senhor lhe disse: "Vês de quanta glória estão privados e com que tormentos sãs punidos aqueles que Me ofendem? Retoma, pois, a vida e faze-os compreender seu erro e perigo da condenação. A salvação dos homens exige que retornes à vida. Mas não viverás mais, como até agora. O pequeno quarto não será mais tua costumeira moradia; pelo contrário, para a salvação das almas deverás sair de tua cidade. Estarei sempre contigo na ida e na volta. Levarás o louvor do Meu nome e a Minha mensagem a pequenos e grandes, a leigos, clérigos e religiosos. Colocarei em tua boca uma sabedoria à qual ninguém poderá resistir. Conduzir-te-ei diante de Papas, Bispos e Governantes do povo cristão, a fim de que por meio dos fracos, como é do Meu feitio, Eu, humilhe a soberba dos fortes."

Após este fato, conhecido como sua morte mística, Santa Catarina projetou-se numa intensa e importantíssima ação doutrinária e pacificadora na Igreja, conforme a profecia do Senhor.

Ela foi canonizada em 1461 e declarada Doutora da Igreja em 1970, pelo Papa Paulo VI.
Para avaliar a importância de seus escritos consta que em 1950 publicou-se uma lista de livros e estudos a seu respeito e já eram 1044.

A reflexão sobre estes extraordinários ensinamentos nos possibilitam compreender nitidamente o porque de nossa peregrinação terrena e assim constituir-se em forte ponto de apoio ao difícil processo de mudança interior na direção de Deus, que chamamos conversão.


Parte I
Início das Mensagens
DEUS PAI

Todos os sofrimentos que o homem suporta ou pode nesta vida são insuficientes para satisfazer pela menor culpa. Sendo Eu um bem infinito, a ofensa cometida contra Mim pede satisfação infinita. Desejo que o compreendas os males desta existência não são punições, mas correção a filho que ofende. Assim, a satisfação se dá pelo amor, pelo arrependimento e pelo desprezo do pecado. Esse arrependimento é aceito em lugar da culpa e do reato *, não pela virtude dos sofrimentos padecidos, mas pela infinitude do amor. Foi quando ensinou Paulo, ao afirmar: "Se eu falasse a língua dos anjos, adivinhasse o futuro, partilhasse os meus bens com os pobres, e entregasse meu corpo às chamas, mas não tivesse a caridade, tudo isso nada valeria". (1 Cor. 3,3). O glorioso apóstolo faz ver que os gestos finitos são insuficientes para punir ou satisfazer, sem a força da caridade. Como percebes, as mortificações são coisas finitas e como tais hão de ser praticadas. São meios, não finalidades.
Filha, fiz-te ver que a culpa não é reparada neste mundo pelo sofrimento, suportados unicamente como sofrimento, mas sim pelos sofrimentos aceitos com amor, com desejo, com interna contrição.

Não basta a força da mortificação; ocorre o anseio da alma. O mesmo acontece aliás com a caridade e qualquer outra virtude, que somente possuem valor e produzem a vida em Meu Filho Jesus Cristo crucificado, isto é, na medida em que a pessoa, d'Ele recebe o amor e virtuosamente segue as suas pegadas. Somente assim adquirem valor. As mortificações satisfazem pela culpa na feliz comunhão do amor, adquirindo na contemplação da Minha bondade. Satisfazem graças à dor e à contrição quando praticadas no autoconhecimento e na consciência das culpas pessoais. Este conhecimento de si gera desprezo pelo mal, pela sensualidade, induz o homem a julgar-se merecedor de castigos e indigno de recompensa. Assim, é pela contrição interior, pelo amor paciente e pela humildade, considerando-se merecedora de castigos e não de prêmios, que a pessoa oferece reparação.
Reato* - Pena devida a culpa do pecado.

O caminho para atingir o conhecimento verdadeiro e a experiência do Meu Ser - Vida eterna que Sou - é este: nunca abandone o auto-conhecimento! Ao desceres para o vale da humildade, reconhecer-Me-ás em ti, e de tal conhecimento receberás tudo aquilo de que necessitas.

Nenhuma virtude tem valor sem a caridade, no entanto é a humildade que forma e nutre a caridade. Conhecendo-te, tu te humilharás ao perceber que, por ti mesma, nada és. Verás que o teu ser procede de Mim, que vos amei, a ti e aos outros, antes de virdes à existência.

Além disso, quando quis recriar-vos na graça, com inefável amor, Eu vos lavei e vos concedi uma vida nova no Sangue do Meu Filho Unigênito; n'Aquele Sangue derramado num grande incêndio de amor. Para quem destrói em si o egoísmo, é no autoconhecimento que tal Sangue manifesta a Verdade. Não existe outro meio. Por meio dele, o homem em inexpremível amor conhece-Me e sofre. Não com um sofrimento angustiante, aflitivo e árido, mas com uma dor que alimenta interiormente. Ao conhecer a verdade, a alma sofrerá terrivelmente, pois toma consciência dos próprios pecados e vê a cega ingratidão humana. Nenhuma dor sofreria, se não amasse.
Logo que tu e Meus servidores conhecer-des a Minha verdade, através daquele caminho, tereis que sofrer tribulações, ofensas e desprezos por palavras e ações, até a morte. Tudo isto, para glória e louvor do Meu nome. Sim, padecerás, sofrerás, tu e Meus servidores; portanto, armai-vos de muita paciência, arrependimento de vossos pecados e de amor à virtude, para glória e louvor de Meu nome. Agindo assim, aceitarei a reparação das culpas tuas e dos demais servidores. Pela força do amor e caridade, vossos sofrimentos serão suficientes para satisfação e reparação por vós mesmos e pelos demais.

Pessoalmente, recebereis o fruto da vida; serão canceladas as manchas dos vossos pecados; já não Me recordarei de que Me ofendestes. Quando aos outros, graças ao vosso amor, concederei o perdão em conformidade com as suas disposições.
Por consideração aos pedidos dos Meus servidores, terei paciência com eles, iluminá-los-ei, suscitarei o remorso, farei que sintam o gosto pela virtude, que provem prazer na amizade de Meus servidores. Algumas vezes, permitirei que o mundo lhes mostre a sua face e experimentarão numerosas e diferentes impressões. Quero que percebam a instabilidade do mundo e elevem os seus desejos em direção à pátria eterna. Assim e com outros expedientes invisíveis aos olhos, inenarráveis para a língua e imperceptíveis ao coração - pois são inúmeros os caminhos e recursos que Me sirvo, únicamente por amor, Eu os convido à graça, desejoso que Minha verdade se realize neles.

A tais pessoas, porém, não é dada a remissão do reato*. Elas não se encontram pessoalmente dispostas a acolher, mediante uma caridade perfeita, o Meu amor e o amor dos Meus servidores. Eles não sentem dor nem contrição perfeita dos pecados cometidos; sua caridade e contrição são imperfeitas. Eis o motivo porque não alcançam a remissão da pena, como daqueles que falei antes, mas somente o perdão da culpa.

Todos os pecados são cometidos através do próximo, no sentido de que eles são a ausência da caridade, que é a forma de todas as virtudes. No mesmo sentido, o egoísmo, que é a negação do amor pelo próximo, constitue-se razão e fundamento do todo mal. Ele é a raiz dos escândalos, do ódio, da maldade, dos prejuízos causados aos outros.

Diante disto, o cristão luta e se opõe a sensualidade, com empenho a submete à razão e procura descobrir em si mesmo a grandeza de Minha bondade. Inúmeros são os favores que lhe faço. Ao reconhecer que gratuitamente o retirei das trevas e o transferi para a verdadeira sabedoria, no autoconhecimento ele se humilha. Assim consciente da Minha benevolência, o homem Me ama direta e indiretamente. Diretamente, não pensando em si mesmo ou em interesses pessoais; indiretamente através da prática da virtude.
Toda virtude é concebida no íntimo do homem por amor a Mim; fora do ódio ao pecado e do amor à virtude, não existe maneira de Me agradar e de se chegar até Mim. Depois de Ter concebido interiormente a virtude, a pessoa a pratica no próximo.

Aliás, tal modo de agir é a única prova de que alguém possui realmente uma virtude. Quem Me ama, procura ser útil ao próximo. Nem poderia ser de outra maneira, dado que o amor por Mim, e pelo próximo são uma só coisa. Tanto alguém ama o próximo, quanto Me ama, pois de Mim se origina o amor do outro.

O próximo, eis o meio que vos dei, para praticar-des e manifestar-des a virtude que existe em vós. Como nada podeis fazer de útil para Mim, deveis ser de utilidade ao homem.

Muitos são os dons, graças, virtudes e favores espirituais ou corporais, que concedi aos homens. Corporais, são aqueles necessários à vida humana. Dei-os diversificadamente, isto é, não os coloquei todos em cada pessoa, para que fôsseis obrigados a vos auxiliar mutuamente. Poderia Ter criado os indivíduos, dotanto-os de todo o necessário, seja na alma como no corpo; mas preferí que um necessitasse do outro, que fôsseis administradores.

Remissão do reato* - Cancelamento da pena devida ao pecado no purgatório.
Meus no uso das graças e benefícios recebidos. Desta forma, querendo ou não, o homem haveria de praticar a caridade, muito embora não seja meritória a benevolência não realizada por Meu amor. Como vês, a fim de que os homens exercitassem o amor, fí-los Meus administradores e os coloquei em diferentes estados de vida, em diferentes posições. Isto vos mostra como existem muitas mansões em Minha casa, e como nada mais desejo que o amor. O amor por Mim se consuma no amor pelo próximo; quem ama o próximo já observou a Lei. Quem Me ama, pratica todo o bem possível, em seu estado de vida para o benefício dos outros.

Qual árvore de muitos galhos, a caridade possui numerosos filhos. Como as árvores recebem a vida de suas raízes enterradas no solo, assim a caridade se nutre da humildade, e o discernimento é um dos filhos ou rebentos da caridade. Não existindo esse solo da humildade, o discernimento não seria verdadeiramente uma virtude nem produziria frutos de vida. A humildade brota do autoconhecimento e o discernimento, consiste num real conhecimento de si e de Mim, que faz o homem dar a cada um o que lhe pertence. O discernimento é uma luz que dissolve a escuridão, afasta a ignorância e alimenta as virtudes, bem como as ações externas que conduzem à virtude. O discernimento enfim, ao fundamentar-se no humilde autoconhecimento, conduz à luta contra os pecados pessoais.

... A alma é uma árvore nascida para o amor; sem ele não vive. Privada do amor divino da caridade, não produz fruto de vida, mas de morte. O cerne* dessa árvore é a paciência. Esta virtude constituí o sinal externo de que Eu estou numa alma e ela em Mim...

... O que desejo do homem, como frutos de ação, é que prove suas virtudes na hora oportuna. "Sou Aquele que gosta de poucas palavras e de muitas ações". Só o amor produz e revela a virtude! ...

... Do pecado original, que contraís através do pai e da mãe na concepção, restou-vos somente uma cicatriz. Ela é apagada, embora não completamente, pelo batismo, ao qual o Sangue de Cristo concedeu a virtude de infundir a vida da graça.
Quando alguém é batizado, imediatamente cancela-se o pecado original e infundi-se a graça; a inclinação para o pecado, descrita antes como uma cicatriz, fica enfraquecida e submetida ao controle da pessoa.

É assim, que pelo batismo o homem dispõe-se a receber e aumentar a graça de si mesmo. O resultado, para mais ou para menos, depende do seu esforço em servir-Me com amor e anseio.

Embora possuindo a graça batismal, a pessoa pode encaminhar-se livremente para o bem ou para o mal. É ao atingir o uso da razão que praticará o bem ou o mal, conforme ao livre arbítrio de sua vontade.

Aliás, tão grande é a liberdade humana, e de tal modo ficou fortalecida pelo precioso Sangue de Cristo, que demônio ou criatura alguma, pode obrigar alguém à menor culpa, contra o seu parecer. Acabou-se a escravidão; o homem ficou livre. Agora, ele pode dominar a sensualidade, e chegar à meta para qual foi criado...

Parte II
DEUS PAI

Muito já Me devia a humanidade. Dera-lhe o ser, ao criar o homem a Minha imagem e semelhança. Então ele possuía a obrigação de dar-Me glória. Recusou-se a fazê-lo, glorificou-se a si mesmo, não aceitou a obediência por Mim imposta, tornou-se Meu inimigo.

Então, com humilhação destruí sua soberba. Humilhei-Me (em Cristo), assumi vossa natureza, libertei-vos da escravidão do demônio, tornei-vos livre. O tesouro do Sangue, pelo qual a humanidade foi recriada, ficou sendo uma dívida. Entendes pois, como depois da Redenção, o homem tem maior obrigação para Comigo. Devem-Me glória e louvor. Uma dívida de amor para Comigo e o próximo, que é paga quando as pessoas seguem as pegadas do Meu Filho Unigênito, Palavra Encarnada, mediante as práticas das virtudes interiores...

... Ninguém escapará de Minhas Mãos. "Sou aquele que Sou" (Ex 3.14) e vós, vós não possuís a razão do próprio ser. Sois aquele que Eu fiz. Criei tudo o que participa do ser; somente o pecado não procede de Mim, porque é negação.

Por não estar em Mim, o pecado não merece amor. Quem o faz, ofende toda criação e odeia-Me . O homem tem obrigações de Me querer bem. Sou imensamente bom, dei-lhe o ser, numa chama de caridade. Todavia, os maus fogem de Mim. Mas, por justiça ou misericórdia, ninguém escapa das Minhas Mãos.

... Eis Meu plano: criara o homem à Minha imagem e semelhança para que alcançasse a vida eterna, participasse do Meu Ser, experimentasse Minha suma, eterna e doce bondade.

O pecado veio impedir-lhe de atingir essa meta. O homem deixava de realizar o Meu plano, pois a culpa lhe fechara o Céu e a porta da Minha misericórdia.
O pecado fez germinar na humanidade espinhos e sofrimentos, tribulações* numerosas, rebelião interna.

Ao revoltar-se contra Mim o homem criava a rebelião dentro de si. Em conseqüência da perda do estado de inocência, a carne se revoltou contra o espírito... Imediatamente brotou um rio tempestuoso, cujas ondas continuam a açoitar a humanidade. São as misérias e males provenientes do próprio homem, do demônio e do mundo. Nele todos se afogavam; ninguém mais, graças a virtudes pessoais, atingia a vida eterna.

Para remediar tantos males, construí a Ponte no Meu Filho, que permitiria a travessia do rio sem perigo de afogar-se. O rio é o proceloso* mar desta tenebrosa* vida...

... Quero que contemples a Ponte de Meu Filho, que vejas sua grandiosidade. Ela se estende do céu à terra, pois nela a "terra" da vossa natureza humana está unida à divindade sublime, graças à encarnação que realizei no homem. Todos vós deveis passar por esta Ponte, louvando-Me através do trabalho pela salvação dos homens e tolerando muitas dificuldades, a exemplo do Meu doce e amoroso Verbo Encarnado. Não há outro modo de chegar até Mim.

... Cada pessoa tem uma vinha, a vinha d a própria alma. Nela trabalha com a vontade pessoal, livre, durante o tempo desta vida. Acabado este tempo nenhum outro trabalho será realizado, seja para o bem, seja para o mal.

... Começareis por purificar-vos com a contrição interior, desapegando- vos e desejando a virtude. Sem esta predisposição, exigida na medida de vossas possibilidades como ramos unidos à Videira, que é Meu Filho (Jo 15,1). nada recebereis.

Dizia Meu Filho: "Éu sou a videira verdadeira e vós os ramos; Meu Pai é o agricultor" (Jo 15,5). Sim, Eu Sou o agricultor, de Mim se originam todos os seres. Tenho um poder incalculável, pelo qual governo o universo; nada Me escapa. Fui Eu o agricultor que plantou a verdadeira vinha, Cristo, no chão da humanidade, para que vós, unidos a Ele, possais frutificar. Quem não produzir ações santas e boas, será cortado da videira; e secará. Separado, perderá a vida da graça e irá para o fogo eterno...
Sabes que os mandamentos da Lei se reduzem a dois sem eles, nenhum outro é observado. São: amar-Me sobre todas as coisas e amar o próximo como a ti mesma. Eis o começo, o meio e o fim dos mandamentos da lei.
Tribulações *- aflições, tormentos.
Tenebrosa * - envolvida de trevas.
Proceloso* - tempestuoso.
Iniquidade* - injustiça.
Todavia esses "dois" não se "reúnem" em Mim sem os "três", isto é, sem a unificação das três faculdades da alma: A memória a inteligência e a vontade. A memória há de recordar-se dos Meus beneficies e da Minha bondade; a inteligência pensará no amor inefável* revelado em Cristo, pois Ele se oferece como objeto de reflexão, para manifestar a chama do Meu amor; a vontade unindo-se às faculdades anteriores, Me amará e desejará como seu fim.
O coração humano, ao ser atraído pelo amor, leva consigo todas as faculdades da alma: Quando são harmonizadas e reunidas tais faculdades, todas as ações humanas - corporais ou espirituais - ficam-Me agradáveis, pois unem-se a Mim na caridade.
Foi exatamente para isso que Meu Filho se elevou na cruz, trilhando o caminho do amor cruciante. Ao dizer, "Quando Eu for elevado, atrairei a Mim todas as coisas", ele queria significar: quando o coração humano e as faculdades forem atraídas, todas as demais faculdades e suas ações o serão...
É muita estreita a união dessas três faculdades. Quando uma delas Me ofende, as outras também o fazem. Como disse, uma apresenta à outra o bem ou o mal, conforme agrada ao livre arbítrio.
O livre arbítrio, se acha na vontade e a move como quer, em conformidade ou não com a razão.
Possuis a razão *, sempre unida a Mim, a menos que o livre arbítrio a afaste mediante o amor desordenado, e tende em vós uma lei perversa, que luta contra o espírito. Ensinou o apostolo Paulo em sua carta, C1 3,5, a mortificar o corpo e a destruir a vontade própria, ou seja, refrear o corpo mortificando a carne, quando ela se opõe ao espírito. Tendes, então, duas partes em vós mesmos: a sensualidade e a razão. A sensualidade foi dada como servidora, a fim de que as virtudes sejam exercidas e provadas através do corpo. O homem é livre, já que Meu Filho o libertou com Seu Sangue. Ninguém pode dominar a pessoa humana quanto a vontade, pois ela possui o livre arbítrio. Este se identifica com a vontade, concorda com ela. Fica, pois, o livre arbítrio entre a sensualidade, e a razão, e inclina-se ora de um lado ora de outro, conforme preferir...
Quando a pessoa tenta livremente reunir as três faculdades, memória, inteligência e vontade, em Mim, na maneira explicada, todas as atividades espirituais e corporais humanas ficam unificadas. O livre arbítrio se afasta da sensualidade, tende para o lado da razão.
Inefável* - encantador.
Ninguém pode vir a Mim, senão Por meio de Cristo. Esta a razão pela qual fiz d'Ele uma Ponte de três degraus. Esses três degraus representam os três estados espirituais do homem. O pavimento desta ponte é feito de pedras, a fim de que a chuva (da justiça divina) não retenha o caminhante. "Pedras" são as virtudes verdadeiras e reais. Antes da Paixão do Meu Filho, elas ainda não tinham sido assentadas, motivo pelo qual os antigos não atingiam o céu, mesmo que vivessem piedosamente. O Paraíso ainda não fora aberto com a chave do Sangue, e a chuva da justiça divina impedia a caminhada.
Quando aquelas pedras foram assentadas no Corpo do Meu Filho - por Mim comparado a uma ponte - foram embebidas, amalgamadas *, e assentadas com sangue. Em outras palavras: o sangue (humano) foi misturado com a cal da divindade e fortemente queimado no calor da caridade.
Tais pedras foram postas em Cristo por Mim, mas é n'Ele que toda virtude é comprovada e vivificada. Fora de Jesus ninguém possui a vida da graça. Ocorre estar n'Ele, trilhar suas estradas, viver Sua mensagem. Somente Ele faz crescer as virtudes, somente Ele as constrói como pedras vivas, cimentando-as com o próprio Sangue.
Nele, todos os fiéis caminham na liberdade, sem o medo da justiça divina, pois vão cobertos pela misericórdia, descida do céu no dia da encarnação.
Foi a chave do Sangue de Cristo que abriu o céu. Portanto, esta ponte é ladrilhada; e seu telhado é a misericórdia.
Possui também uma despensa, constituída pela hierarquia da Santa Igreja, que conserva e distribui o Pão da Vida e o Sangue. Assim, Minhas criaturas, viandantes* e peregrinas, não fraguejam de cansaço na viagem. Para isto ordenei que vos fosse dado o Corpo e o Sangue do Meu Filho, Homem Deus...
...Disse Jesus: "Eu sou o caminho, a verdade, e a vida; quem vai por Mim não caminha nas trevas, mas na luz" (Jo, 8,12)... Quem vai por tal caminho é filho da verdade, atravessa a ponte e chega até Mim, verdade eterna, oceano de paz. Quem não trilha esse caminho, vai pela estrada inferior, no rio do pecado. É uma estrada sem pedras, feita somente de água, inconsistente; por sobre ela ninguém vai sem afundar. É o caminho dos prazeres e das altas posições, daqueles cujo amor não repousa em Mim e nas virtudes, mas no apego desordenado ao que é humano e passageiro. Tais pessoas são como a água sempre a escorrer. À semelhança daquelas realidades, vão passando.
Amalgamadas* - ligadas.
Viandantes* - viajantes.
Eles acham que são as coisas criadas, objeto de seu amor, que se vão; na realidade, também eles caminham continuamente em direção à morte. Bem que gostariam de deter-se, reter na vida as coisas que amam. Seriam felizes se as coisas não passassem. Perdem-nas todavia, seja por causa da morte, seja pelos acontecimentos com que faço, escapar-lhes das mão, os bens deste mundo...
... Com o retorno de Meu Filho ao céu, enviei o Mestre, o Espírito Santo. Ele veio no Meu poder, na sabedoria do Filho, e na própria clemência. É uma só coisa Comigo e o Filho. Por sua vinda fortaleceu o Caminho - Mensagem deixado no mundo por Jesus. O Espírito Santo é qual mãe a nutrir no Divino Amor. Ele liberta o homem, torna-o dono de si, isento da escravidão e do egoísmo. A chama da Minha caridade (o Espírito Santo) não sobrevive junto ao egoísmo....
... Assim, todos os homens, recebem luzes para conhecer a verdade. Basta que cada um o queira, que não destrua a luz da razão, pelo egoísmo desordenado.
A mensagem de Jesus é verdadeira e ficou no mundo qual pequena barca para retirar os pecadores do rio do pecado e conduzi-os ao porto da salvação.
Primeiro, coloquei Meu Filho como Ponte - Pessoa, a conviver com os homens; após Sua morte, ficou a Ponte - Mensagem possuindo ela Meu poder, a sabedoria do Filho e o amor do Espírito. O poder fortifica os caminhantes, a sabedoria ilumina e ajuda a reconhecer a Verdade, o Espírito Santo infunde o amor que aperfeiçoa, que destrói o egoísmo e conserva no homem o apego ao bem...
O Verbo encarnado, Meu Filho único e ponte de glória, deu aos homens vida e grandeza. Eram escravos do demônio e Ele os libertou.
Para que cumprisse tal missão, tornei-O servo; para cobrir a desobediência de Adão exigi que obedecesse; para confundir o orgulho, humilhou-se até a morte na cruz. Por Sua morte, destruiu o pecado. No intuito de livrar a humanidade da morte eterna, fez do Seu Corpo uma bigorna *.
No entanto os pecadores desprezam Seu Sangue, pisoteiam-No com um amor desordenado. Esta é a injustiça, este o julgamento falso a respeito do qual o mundo é e será repreendido até o dia do juízo final. Tal repreensão começou quando enviei o Espírito Santo sobre os apóstolos. São três as repreensões: a voz da Igreja, o Juízo Particular e o Juízo Final...
Bigorna* - peça onde se moldam por "malhação", os metais.

Parte III
DEUS PAI
No JUÍZO PARTICUIAR, no instante final, quando a pessoa compreende que não pode fugir das Minhas Mãos recupera a visão que a atormenta interiormente fazendo-a ver que por própria culpa chegou a tão triste situação. Se o pecador se deixar iluminar e se arrepender, não por medo dos castigos infernais, mas por ter ofendido a Suma e Eterna Bondade, AINDA SERÁ PERDOADO. Mas, se ultrapassar o momento da morte nas trevas, no remorso, sem esperança no Sangue, ou então, lamentando-se apenas pela infelicidade em que se acha - e não por ter Me ofendido - irá para a perdição.
Sobrevirá pois, a repreensão pela injustiça e falso julgamento. Em primeiro lugar a repreensão da injustiça e do julgamento falso em geral, praticados no conjunto de suas ações, durante a vida; depois, em particular, do último instante quando o pecador considera seu pecado maior que a Minha misericórdia.
Este (Mt, 12,32) é o pecado que não será perdoado, nem aqui nem no além. O desprezo voluntário da Minha misericórdia constitui pecado mais grave que todos os anteriores...
... Filha, tua linguagem é incapaz de descrever os sofrimentos desses infelizes condenados. Sendo três os seus vícios principais - egoísmo, medo de perder a boa fama e orgulho - aos quais se acrescentam a injustiça, a maldade e impureza, no INFERNO os pecadores padecem de quatro tormentos principais.
O primeiro é a ausência da Minha visão. Um sofrimento tão grande que os condenados, se fosse possível, prefeririam sofrer o fogo vendo-Me, que ficar de fora dele sem Me ver.
O segundo, como conseqüência, é o remorso que corrói o pecador privado de Mim, longe da conversação dos anjos, a conviver com os demônios.
Aliás, a visão do diabo constitui o terceiro tormento. Ao vê-lo duplica-se o sofrer. Nestes (demônios), eles se conhecem melhor, entendendo que por própria culpa mereceram o castigo. Assim o remorso os martiriza e jamais cessará o ardor da consciência. Muito grande é este tormento, porque o diabo é visto do próprio ser; tão horrível é a sua fealdade, que a mente humana não consegue imaginar. Se ainda o recordas, já te mostrei o demônio assim como ele é; foi por um átimo* de tempo . Quando retornastes ao sentido, preferias caminhar por uma estrada de fogo até o juízo final que tornar a vê-lo. No entanto, apesar do que viste ignoras a sua fealdade, especialmente porque, segundo a justiça divina, ele é visto mais ou menos horrível pelos condenados, segundo a gravidade desculpas.
Átimo* - fiação mínima.
O quarto é o fogo. Um fogo que arde sem consumir, sem destruir o ser humano. É algo de imaterial, que não destrói a alma incorpórea.
Na Minha justiça permito que tal fogo queime, faça padecer, aflija; mas não destrua. É ardente e fere de modo crudelíssimo em muitas maneiras, conforme a diversidade das culpas. A uns mais, a outros menos, segundo a gravidade dos pecados. Destes quatro tormentos derivam os demais: o frio, o calor, o ranger de dentes (Mt, 22,13) ...
Grande é o ódio dos condenados, pois já não amam o bem. Blasfemam continuamente contra Mim!
Queres saber por que já não podem desejar o bem? É porque, no fim desta vida, vincula-se o livre arbítrio. Com o cessar do tempo, já não se merece mais. Quem termina esta existência em pecado mortal, por direito divino fica para sempre apegado ao ódio, obstinado no mal, a roer-se interiormente. Seus sofrimentos irão aumentando sempre, especialmente por causa das demais pessoas que por sua causa irão para a condenação.
O homem justo (no mesmo JUÍZO) ao encerrar sua vida terrena no amor, já não poderá progredir na virtude. Para sempre continuará a amar no grau de caridade que atingiu até Mim. Também será julgado na proporção do amor. Continuamente Me deseja, continuamente Me possuí; suas aspirações não caem no vazio. Ao desejar, será saciado; ao saciar-se, sentirá ainda fome; distanciando-se assim, do fastio da saciedade e do sofrimento da fome. Os bem-aventurados gozam da Minha eterna visão. Cada um no seu grau, de acordo com a caridade em que vieram participar de tudo o que possuo. Desfrutam na alegria e gozo - dos bens pessoais e comuns que mereceram. Colocados entre os anjos e santos com eles se rejubilam na proporção do bem praticado na terra. Entre si congraçados na caridade os bem-aventurados de modo especial comunicam-se com aqueles que amaram no mundo.
Não penses que a felicidade celeste seja apenas individual. Não! Ela é participada por todos os cidadãos da pátria, homens e anjos. Quando chega alguém à vida eterna, todos sentem sua felicidade da mesma forma como ele participa do prazer de todos.
Em seus anseios os eleitos clamam continuamente diante de Mim em favor do mundo inteiro. Suas vidas haviam terminado no amor fraterno; continuam no mesmo amor. Aliás, foi exatamente por tal caridade que passaram pela porta que é Meu Filho ...
Por ocasião do JUÍZO FINAL, o Verbo encarnado virá com divina majestade para repreender o mundo. Não mais se apresentará pobrezinho na forma como nasceu da Virgem, na estrebaria, entre animais, para morrer depois no meio de ladrões. Naquela ocasião, ocultei n'Ele o Meu poder e permiti que suportasse penas e dores como homem. A natureza divina se unira a humana e foi enquanto homem que sofreu para reparar as vossas culpas. No juízo final, não será assim, pois virá com poder a fim de julgar. As criaturas humanas estremecerão e Ele a cada um dará sentença conforme merecimento. Tua língua não conseguirá exprimir o que se sucederá aos condenados. Para os bons, Jesus será motivo de temor santo e alegria imensa.
Os bem-aventurados continuam no CÉU, eternamente, aquele mesmo amor com que encerraram a vida terrena. Eles em nada se distanciam de Mim. Seus desejos estão saciados. Anseiam em ver-Me glorificado por vós viandantes e peregrinos que sois em direção à morte. Aspirando por Minha honra, querem vossa salvação e sempre rogam por vós; de Minha parte, escuto os seus pedidos naquilo em que vós, por maldade, não opondes resistência à Minha bondade.
Os bem-aventurados desejam recuperar os seus corpos; todavia não sofrem por sua ausência. Até se alegram, na certeza de que tal aspiração será realizada. A ausência do corpo não lhes diminui o prazer, não é angustiante, não faz sofrer. Nem julgues que a satisfação de ter o corpo após a ressurreição lhes traga maior bem-aventurança. Se isso fosse verdade, seria sinal que a felicidade anterior era imperfeita, enquanto não o reouvessem, e isso não pode ser. De fato, nenhuma perfeição lhes falta. Não é o corpo que faz feliz a alma, mas o contrário.
Quando esta recupera o corpo no dia do juízo, participará ele da plenitude e da perfeição da alma. Naquele dia, esta se fixará para sempre em Mim, e o corpo em tal união, ficará imortal, sutil, leve. Deves saber que o corpo ressuscitado pode atravessar uma parede, que o fogo e a água não o ofendem. Tal propriedade lhe advém, não de uma virtude própria, mas por uma força que gratuitamente concedo à alma, que foi criada à Minha imagem e semelhança num inefável ato de amor.
Tua inteligência não dispõe da capacidade necessária para entender, nem teus ouvidos para escutar, a língua para narrar e o coração para sentir qual é a felicidade dos santos.
Ocupei-Me da felicidade dos santos para que entendesses melhor a infelicidade dos condenados ao inferno. Aliás, outro tormento destes últimos, é ver quanto os bem-aventurados são felizes. Tal conhecimento acresce-lhes a pena, da mesma forma como a condenação dos maus leva os justos a glorificar Minha bondade. A luz é mais evidente na escuridão, e a escuridão na luz. Conhecer a alegria dos santos é dor para os réus do inferno.
Os condenados aguardam com temor o dia do juízo final. Sabem que então seus sofrimentos aumentarão. As escutar o terrível convite: "Surgite, mortui, venite ad judicium", a alma retornará ao corpo. Para os bem-aventurados será um corpo de glória; para os réus um corpo para sempre obscurecido. Diante do Meu Filho, sentirão grande vergonha. Também diante dos santos. O remorso martirizará a profundidade do seu ser, quero dizer, a alma; mas também o corpo.
Acusá-los-ão: o Sangue de Cristo, por eles derramado; as obras de misericórdia, espirituais e corporais, do Meu Filho, o bem que eles mesmos deveriam ter praticado em benefício dos outros, segundo o evangelho. Terá seu castigo a maldade com que trataram os irmãos, pois Eu mesmo, compassivo, perdoara-lhes (Mt 18,33). Serão repreendidos pelo orgulho, egoísmo, impureza, ganância; e tudo isso reavivará seus padecimentos.
No instante da morte, somente a alma é repreendida; no juízo final também o corpo, por ter sido instrumento da alma na prática do bem e do mal conforme a orientação da vontade. Todo bem e todo mal é feito através do corpo por este motivo, Minha filha, os justos terão no corpo glorificado uma luz e um amor infinitos; já os réus do inferno sofrerão pena eterna em, seus corpos, usados para o pecado. Ao recuperar o corpo diante de Jesus ressuscitado, os réus sentirão tormento renovado e acrescido: a sensualidade sofrerá na sua impureza, vendo a natureza humana unida à divindade, contemplando este barro adâmico - vossa natureza - colocada acima de todos os côros angélicos, enquanto eles, os maus, estarão no mais profundo abismo.
Os condenados verão brilhar sobre os eleitos a liberalidade e a misericórdia, quais frutos do Sangue de Cristo; saberão das dificuldades suportadas pelos bons e que agora se mostram em seus corpos como frisos de adornos para as vestes. O valor de tais sofrimentos físicos não provém do corpo mas da riqueza da alma; é ela que dá o corpo o merecimento da luta como companheira da prática das virtudes. Tal exteriorização se verifica porque o corpo manifesta o resultado das batalhas das alma, como o espelho reflete a face do homem.
Ao se verem privados de tamanha beleza, os habitantes das trevas verão surgir nos próprios corpos os sinais dos pecados e terão maiores tormentos e confusão. E ao soar aquela terrível sentença: "Ide, malditos, para o fogo eterno". (Mt, 25,41), suas almas e corpos encaminhar-se-ão para a companhia de demônios, sem mais remédios nem esperança.
Cada um a seu modo, se envolverá na podridão que viveu na terra, de acordo com as ações que praticou: o avarento arderá na sua ganância dos bens que desordenadamente amou; o maldoso, na sua ruindade; o impuro na imunda e infeliz concupiscência; o injusto nas suas iniqüidades; o rancoroso no seu ódio pelos outros. Quanto ao egoísmo fonte de todos os males arderá como princípio causador de tudo em sofrimentos insuportáveis. O orgulho terá igual sorte. Assim, corpo e alma serão punidos em todos os vícios.
... Sirvo-Me do demônio qual instrumento da Minha justiça para atormentar os que Me ofendem. Nesta vida o coloquei qual tentador, molestando os homens. Não para que estes sejam vencidos, mas para que conquistem a vitória e o prêmio pela comprovação das virtudes. Ninguém deve temer as possíveis lutas e tentações do demônio. Fortaleci os homens, dei-lhes energia para vontade, no Sangue de Cristo. Demônio ou criatura alguma conseguem dobrar a vontade. Ela vos pertence, é livre. Vós é que escolheis o querer ou não querer alguma coisa...
... Eu disse que o demônio convida os homens para a água-morta, a única que lhe pertence, cegando-os com prazeres e satisfações do mundo. Usa o anzol do prazer e fisga-os mediante a aparência de bem. Sabe ele que por outros caminhos nada conseguiria; sem o vislumbre* de um bem ou satisfação, os homens não se deixam aprisionar; por sua própria natureza, a alma humana tende ao bem. Infelizmente, devido à cegueira do egoísmo, o homem não consegue discernir qual é o bem verdadeiro, realmente útil ao corpo e à alma. Percebendo isto, o demônio, maldoso, apresenta-lhe numerosos atrativos maus, disfarçados porém sob alguma utilidade ou prazer...
... A certeza da Minha presença em suas vidas, é o conhecimento da Minha verdade. Tal conhecimento se realiza na inteligência que é, o olho da alma; pupila de tal olho é a fé. Pela iluminação da fé, eles distinguem, conhecem e seguem a estrada mensagem do Verbo Encarnado. Sem a fé ninguém reconhece tal estrada, à semelhança daquele que possuísse o olho, mas coberto por um pano. Sim, a pupila desse olhar é a fé; nada verá quem cobrir sua inteligência com o pano da infelicidade, por causa do egoísmo. Tal pessoa terá a inteligência, mas não a luz para conhecer...
... Como afirmei antes, ninguém consegue seguir o caminho da verdade sem a luz da razão - recebida de Mim com a inteligência - e sem a luz da fé, infundida na hora do santo batismo, supondo que não destruais esta última com vossos pecados.
Vislumbre* - sinal de possibilidade.

Parte IV
DEUS PAI
No batismo a luz da fé vos é dada na força do Sangue do Meu Filho. Associada à luz da razão ela vos alcança a vida para a verdade.
Esta iluminação revela ao homem a transitoriedade das realidades terrenas, que passam como o vento. Tal atitude supõe todavia, que tenhais consciência da própria fraqueza, tão inclinada a rebelar-se, já que existe nos vossos membros uma lei perversa (Rm 7,23), que vos leva a revoltar-vos contra Mim, vosso Criador. Tal "lei" não obriga ninguém a pecar contra sua vontade, todavia combate contra o espírito. Permiti semelhante lei, não para serdes vencidos, mas a fim de provar vossas virtudes. É nas situações adversas que às virtudes são experimentadas.
A sensualidade opõe-se ao espírito; é através dela que o homem comprova seu amor por Mim, o Criador, opondo-se às suas tendências derrotando-as. Quis Eu ainda essa perversa lei para que o homem fosse humilde.
De si mesma, a sensualidade não conduz ninguém ao pecado, mas induz ao reconhecimento do próprio nada; revela a fragilidade do que é terreno.
É preciso que a inteligência humana, sob a luz da fé, reconheça tal coisa; trata-se justamente daquela "iluminação geral" de que falei, indispensável para todos os que desejam participar da vida da graça aproveitando os efeitos da morte do Cordeiro Imolado. Ela é necessária para todos, qualquer que seja o estado de vida; é a iluminação da "caridade comum", universal. Todos (os cristãos) devem possuí-Ia sob pena de serem condenados; quem não a tem não está na graça divina; desconhece o pecado e suas causas...
... Toda obra boa será remunerada, como todo mal terá seu prêmio. Quando praticada no estado de graça, a boa obra merece o céu; quando feita em pecado, embora sem merecimento, terá sua paga de várias maneiras: umas vezes, concedo vida mais longa ou inspiro a Meus servidores contínuas orações em favor, com as quais tais pessoas se convertem; outras vezes, em lugar de vida mais longa e das orações, concedo bens materiais ...
... O cristão que possui BENS, deve fazê-lo na Humildade, sem orgulho, como coisa emprestada, não própria . Dou-vos os bens para o uso. Tanto possuis, quanto concedo; tanto conservais, quanto permito; e tanto permito, quanto julgo útil à vossa salvação. Tal há de ser a vossa atitude quanto ao uso dos bens materiais. Assim fazendo, o cristão obedece aos mandamentos - amando-Me sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo - e conserva o coração desapegado das riquezas, afetivamente, como nada possuindo. Não se apega aos bens, não os possui em oposição aos Meus desígnios.
Possui externamente, ao passo que seu íntimo é pobre. Tais pessoas, como disse, eliminam o veneno do egoísmo. São os cristãos da "caridade comum".
Os bens materiais são bons em si mesmo; foram criados por Mim, bondade infinita. Os homens hão de usá-los como lhes aprouver, mas no temor e no amor autênticos.
Os cristãos não devem virar escravos dos prazeres sensíveis. Se querem ter posses façam-no; mas como dominadores dela, não como dominados. O afeto do coração deve estar em Mim, não nas coisas externas; elas não pertencem aos homens, são dadas em empréstimo. Não tenho preferência por pessoas ou posição social, somente pelos desejos do coração.
Quem afastar de si o apego desregrado e se orientar para Mim na caridade e no santo temor, tal pessoa poderá escolher o estado de vida que quiser. Em qualquer um deles alcançará a vida eterna. Suponhamos que seja mais perfeito e mais agradável a Mim que o homem viva interior e exteriormente despojado dos bens materiais. Se uma pessoa não sentir a coragem de abraçar tal perfeição devido a alguma fraqueza pessoal, que permaneça "na caridade comum"* qualquer que seja seu estado de vida. Em Minha bondade dispus que assim fosse para que nenhuma pessoa viesse a desculpar-se por pecados cometidos em determinadas situações. Ninguém poderá dar desculpa, Sou condescendente com as tendências e fraquezas humanas. Se as pessoas desejam viver no mundo, possuir bens, ocupar altas posições sociais, casar-se, ter filhos, trabalhar por eles, façam-no. É lícito viver em qualquer posição social; contanto que se evite o veneno da sensualidade, o qual pode conduzir à morte perpétua.
Se prestares atenção verás que quase todos os males procedem do desordenado apego e ganância da riqueza. Disto nasce o orgulho de quem pretende ser maior que os outros, a injustiça para consigo mesmo e o próximo.
A riqueza empobrece e destrói a vida da alma, torna o homem cruel consigo mesmo, prejudica sua dignidade espiritual infinita, faz amar as coisas transitórias. Todos têm obrigação de amar-Me, bem infinito. Com a riqueza o homem perde o gosto pela virtude, o amor da pobreza, o domínio sobre si, torna-se escravo dos bens materiais. Ao amar realidades inferiores a si, torna-se insaciável. Só a Mim deve o homem servir; Sou seu fim último.
Quantos perigos enfrenta o homem, por terra e por mar, a fim de adquirir riqueza e poder voltar a sua cidade natal entre satisfações e honras; já para ,conseguir a virtude, é incapaz do menor esforço, não aceita dificuldade alguma! E dizer que as virtudes são a riqueza da alma.
Caridade comum* - os que seguem a Cristo obedecendo os mandamentos.
Diz Meu Filho no Evangelho que "é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha* que o rico entrar na vida eterna". (Mt. 19,24) referia-se àqueles que possuem ou desejam possuir riquezas com desordenado e pecaminoso apego à elas. Afirmei também existirem pobres, que se pudessem possuíam com desordenado apego o mundo inteiro. Também eles não passarão pela porta estreita e baixa (agulha). Se não se abaixarem até o chão, se não dominarem o próprio apego, se não dobrarem humildemente a cabeça, como poderão atravessá-la? Outra porta não existe que conduza à vida eterna. Pelo contrário, é larga aquela que conduz à eterna condenação. (Mt. 7,13).
As realidades terrenas são menores que o homem, para ele foram criadas, não vice-versa. Por tal motivo os bens materiais não o satisfazem; somente Eu sou capaz de saciar o homem. Já os infelizes pecadores, como cegos, afadigam-se continuamente, à procura de uma felicidade fora de Mim, e sofrem...
Querem saber como sofrem? Quando alguém perde algo com que se identificara seu apego faz sofrer. É o que acontece com os pecadores, identificados por vários modos, com os bens materiais. Eles se materializam. Uns se identificam com a riqueza, outros com a posição social, outros com os filhos; uns se afastam de Mim por apego a uma pessoa; outros transformam o próprio corpo em animal imundo e impuro. Todos eles assim se nutrem de bens terrenos. Gostariam que tais realidades fossem duradouras, mas não o são. Passam como o vento. São perdidas por ocasião da morte e de outros acontecimentos por Mim dispostos. Diante de tais perdas, os pecadores entram em sofrimento atroz, pois a dor da separação se compara a desordenada afeição à posse.
Todos estes se carregam com a cruz do diabo e experimentam nesta vida a certeza da condenação. Vivem doentes e se não se corrigirem, vão para a morte eterna. São homens feridos pelos espinhos das contradições a torturarem-se interna e externamente. E por cima, sem merecimento algum! Sofrem na alma e no corpo, nada merecem; é sem paciência que padecem estes males. Vivem revoltados, apegando-se aos bens materiais com desordenado amor.
É preciso encher a alma de virtudes, sob o alicerce da caridade.
Agulhas* - portas secundárias das cidades antigas cercadas de muros a fim de evitarem invasões. Essas portas baixas e estreitas serviam apenas para circulação de pessoas. Quando alguma caravana chegava fora de horário, os camelos para entrarem na cidade tinham que ser descarregados e ainda pelo impedimento da altura, entravam ajoelhados.
Em matéria de virtudes necessita-se da perseverança . Quem não persevera, jamais realiza seus desejos, levando a termo o que começou ...
... O Meu Filho como Ponte possui três degraus. No primeiro degrau o cristão se afasta da afeição terrena, despoja-se dos vícios, no segundo, adquire as virtudes; no terceiro, goza a paz. No primeiro o (homem) se comporta como servo assalariado, no segundo como servo fiel, no terceiro como filho, ou seja como pessoa que Me ama sem interesses pessoais.
São três estados que podem acontecer em diversas pessoas ou sucessivamente numa única pessoa. Acontecem ou podem acontecer numa mesma pessoa quando ela progride esforçadamente, aproveitando o tempo, e passa do estado servil ao liberal e do liberal ao filial. Temos assim o amor servil, o amor Interesseiro e o amor amizade...
Relativamente ao. modo como se chega ao amor amizade e filial dá-se da seguinte maneira: inicialmente imperfeito, o homem vive no temor servil;* com perseverança e esforço, chega ao amor interesseiro das consolações (espirituais) no qual se compráz* olhando-Me como algo útil para si mesmo. Tal é o roteiro de quem deseja chegar ao amor amizade e filial. Este último é o amor perfeito com ele alcança-se a herança do reino. O amor filial inclui o amor amizade; nesse sentido se passa do amor amizade ao amor filial.
Mas qual é a estrada? Vou dizê-lo. Toda perfeição e virtude procede da caridade; a caridade alimenta-se da humildade; a humildade nasce do auto- conhecimento e da vitória sobre o egoísmo da sensualidade. Para se atingir o amor filial é necessário, pois perseverar na cela do auto-conhecimento. Nesta ceia o homem conhecerá o Meu perdão através do Sangue de Cristo, atrairá sobre si pelo amor, a Minha caridade, procurará destruir em si toda má vontade espiritual e temporal...
... A fé viva consiste na prática perseverante das virtudes, em não voltar atrás por motivo algum, em não deixar a oração jamais - exceto por obediência ou caridade - pois nenhuma outra razão existe.
É na oração contínua, fiel e perseverante que todas as virtudes são adquiridas. Mas é preciso perseverar, nunca a deixar: nem por ilusão do diabo, nem por fraqueza pessoal, qual sejam os pensamentos e impulsos íntimos, nem Por conselhos "alheios". Como é agradável ao orante e a Mim a prece feita na cela do auto-conhecimento.
Compráz* - sentir prazer.
Temor servil* - medo dos castigos infernais.
Ali o homem crê e ama na abundância do Meu amor, que em Meu Filho tornou-se visível e provado no Sangue. Sangue que inebria a alma, reveste-a com as chamas do Amor Divino, Eucaristicamente a alimenta.
Foi na despensa da hierarquia eclesiástica que Eu guardei o Corpo e Sangue do Meu Filho, perfeito homem e perfeito Deus, pois ENTREGUEI AOS SACERDOTES, A CHAVE DO SANGUE, A FIM DE QUE O DISTRIBUÍSSEM.
Tal Alimento fortifica de acordo com o amor de quem o recebe, seja sacramentalmente, seja espiritualmente. Sacramentalmente, na comunhão Eucarística; espiritualmente, ao se comungar pelo desejo da Eucaristia ou meditando-se a Paixão de Cristo crucificado. Em qualquer oração a pessoa deve começar pela vocal, passando depois à mental. Faça-o logo que sentir o espírito bem disposto. Tal maneira de agir conduzirá o orante à perfeição do amor.
Quanto mais o homem desvencilhar sua afeição e prendê-la a Mim, mais Me conhecerá, mais Me amará, mais Me experimentará.
Como vês, não é pela quantidade de palavras que se chega à oração perfeita, mas pelo amor e conhecimento de Mim e de si mesmo, cada um desses conhecimentos completando o outro...
... Nas orações concedo consolações de diversas maneiras: uma vez será contentamento; outra vez arrependimento que agita interiormente; vezes há que Me torno presente na alma sem que ela o perceba, pois faço estar no espírito a pessoa de Meu Filho em vários modos: ora sentirá na profundidade da alma grandíssimo prazer, ora nem O perceberá, como se poderia esperar.
Sabes o que faço para tirar o homem da imperfeição? Costumo permitir- lhe pensamentos molestos e aridez espiritual, deixando-o como que abandonado por Mim, sem nenhuma consolação. A pessoa já não se sente do mundo, que de fato abandonou, nem lhe parece que está vivendo em Mim. Uma única fonte de paz lhe resta: a certeza de não querer ofender-Me.
Quanto à vontade que constitui como que a porta de entrada da alma, não permito que se abra ante os inimigos; seja os demônios como os demais adversários poderão penetrar por outros setores, mas não pela vontade, que é a porta principal da cidade da alma. Como defensor está o livre-arbítrio. Só ele pode deixar ou não que alguém passe.
As portas que dão ingresso ao interior do homem são muitas. As principais são três: a memória, a inteligência e a vontade. Delas, somente uma abre quando quer e serve de defesa para as outras, é a vontade. Com sua permissão o primeiro inimigo a entrar é o egoísmo.
Os outros vêm depois: a inteligência se obscurece; a memória dá acolhida ao ódio, e faz lembrar as ofensas recebidas e se opõe a caridade pelo próximo; a memória recorda, também, os prazeres ilícitos.
Depois de abertas essas portas, escancaram-se os portões dos sentidos, que refletem em si o amor desordenado e as más ações. O olho ocupa-se em ver coisas que não devem; por sua volubilidade, vaidade, desonestidade, capta a morte para a própria pessoa e para os demais. Óh, olho infeliz! Eu te fiz para ver o céu, as belezas da criação, Meus mistérios, e tu te fixas na lama, na baixeza, à procura da morte! O ouvido compraz-se em assuntos desonestos ou fica à espreita de notícias, a fim de se emitir julgamento, no entanto, Eu o dei ao homem, para escutar Minha palavra e tomar conhecimento das necessidades alheias. Quanto à língua, criei-a para anunciar Minha palavra, confessar as culpas e promover a salvação dos homens; mas dela serve-se a pessoa para reclamar de Mim, seu Criador, e para prejudicar o próximo. Murmura contra ele, diz que suas ações são más, blasfema, dá falso testemunho, põe em perigo a si mesmo e os demais com palavras desonestas, diz frases ofensivas que, como punhais, ferem os corações, provocando raiva. Como são numerosos os pecados - homicídios, desonestidades, rancores, ódios, perda de tempo - provocados pela língua. O olfato também peca por desordenado prazer de sentir perfumes; se for cheiro de alimento, dá origem a gula, e a insaciável procura de comida, seja pela quantidade, seja pela qualidade, a fim de satisfazer o estômago. Quem abre este portão da alma, infelizmente não percebe que a gula incentiva a sensualidade e conduz a corrupção. As mãos foram feitas para prestar serviço ao próximo e socorrê-lo com esmolas, mas são usadas para furtar e praticar ações desonestas. Os pés têm a função de conduzir o homem a lugares santos e úteis, seja para si, como para os outros, com vistas a Minha glória e louvor; no entanto são usados para ir-se a lugares escusos, onde conversas e divagações corrompem as pessoas.

Parte V
DEUS PAI
Recordei tudo isto, filha querida, para que possas chorar ao ver a cidade da alma em tão grave situação, a fim de que sintas o mal que entra no homem pela porta principal da vontade. Entretanto, como disse antes, não permito que os males entrem livremente no homem pela vontade, mas podem fazê-lo pelas outras faculdades.
Assim consinto que a inteligência seja invadida por pensamentos ruins, que a memória pareça esquecer de Mim, que todos os sentidos se vejam sacudidos por lutas diversas. Tudo isto, porém, não produz morte à alma. De Minha parte não quero tal morte; só mesmo se a pessoa a quiser, livremente. Todas essas sensações ficam na periferia da cidade da alma, não penetram em seu interior. A menos, repito, que a pessoa o queira.
Qual é o motivo que deixo o homem cercado por tantos inimigos? Certamente, não para que perca a graça; mas para que veja quanto Sou misericordioso. Quero que confie em Mim, não em si mesmo; que se refugie em Mim e não seja negligente. Sou seu defensor, o Pai bondoso que deseja a sua salvação. Quero recordar-lhe: de Mim recebeu o ser e os demais benefícios. Sou a sua vida.
Como reconhece a pessoa tal situação e Minha providência nessas dificuldades? Aguardando a grande libertação, pois não a deixo permanentemente em tal estado; as dificuldades vão e voltam conforme julgo necessário.
As vezes quando a alma pensa estar no inferno, repentinamente vê-se livre, como que no paraíso, sem nada Ter feito pessoalmente, sente-se na paz; tudo que vê fala-lhe de Deus; inflama-se de amor ao tomar consciência do que realizei, retirando-a da tempestade sem nenhum esforço seu. A iluminação foi repentina devendo-se unicamente ao Meu inestimável amor. Providenciei as suas necessidades no momento certo quando já não aguentava mais. Mas por que não interviera Eu antes, libertando a alma das dificuldades, nos momentos em que se dedicava à oração e aos outros exercícios? Porque, sendo imperfeita, iria atribuir aos seus esforços pessoais o que não lhe pertencia.
Como percebes, é através de muitos combates que o homem imperfeito tende à perfeição. Neles a alma experimentará Minha providência, percebendo concretamente realidades em que antes somente acreditava. Dou-lhe a certeza da experiência, graças a qual adquire o amor perfeito e supera o amor imperfeito.
Costumo também, dar a Meus servidores júbilo espiritual e visões. Se alguém unicamente se preocupar na obtenção de tais favores, acabará por cair na amargura e no tédio no momento que notar sua ausência progressiva; cada vez que Eu não os der, julgarão que perderam a graça. Já afirmei que costumo visitar e ausentar-Me do homem no tocante às consolações - sem prejuízo do estado de graça - a fim de levar à pessoa a perfeição. Em tais circunstâncias, muitos mergulham na tristeza e sentem-se no inferno, porque não mais experimentam os prazeres da mente, substituídos pelos tormentos das tentações.
Nesta situação pode o demônio se apresentar em forma de luz. Costuma ele tentar os homens de acordo com as disposições espirituais que neles encontra. Por tal motivo, ninguém deve desejar satisfações e visões espirituais; aspire-se somente pela virtude. Na humildade, cada um se julgue indigno de tais coisas; se as receber, comporte-se segundo a caridade. O diabo é capaz de mostrar-se numa figura de luz, por vários modos, na alma de quem gulosamente sonha com visões. Dessa maneira ele usa o anzol do prazer espiritual para atrair a alma, e prendê-la em suas mãos.
Se Me perguntares: "Qual o sinal que nos indica que "a visita" é do diabo e não Minha?"
Respondo: "Se for o demônio em forma de luz, sua presença inicialmente produzirá alegria, mas pouco esta irá desaparecendo, até transformar-se em tédio, trevas e remorso de consciência. Ao contrário, se for uma "visita" Minha, no começo a pessoa sentirá temor, um temor santo que depois lhe dará alegria, segurança e uma feliz prudência que, refletindo, não duvida.
Realizo todas essas coisas por amor; quero que o homem progrida na humildade, na perseverança; quero ensinar-lhe a não ditar regras (ao Espírito Santo), a não considerar as consolações com uma finalidade. Quero que alicerce em Mim a sua virtude; que aceite os acontecimentos e Meus dons com humildade. Quero que acreditem no seguinte: que concedo as consolações espirituais de acordo com as necessidades da sua santificação e aperfeiçoamento...
Quero que além de ti, muitas outras pessoas, - como servidores Meus - ao ouvir tais coisas sejam levados a orar obrigando-Me a usar de misericórdia para com o mundo e para com a hierarquia da Santa Igreja pelo qual tanto suplicas. Como deves recordar, afirmei que escutaria vossos pedidos, confortar-vos-ia nas lutas, faria frutificar vossos desejos, enviando pastores bons e santos para a reforma da Santa Igreja. Disse que não é pela guerra, pela espada e pela crueldade que isto acontecerá, mas com a paz, a tranqüilidade, as lágrimas e suores dos Meus servidores. Eis a razão por que vos coloquei a trabalhar por vós mesmos, pelos demais cristãos e hierarquia da Santa Igreja.
Não cesseis de oferecer-Me o incenso perfumado de vossas preces pela salvação da humanidade! Quero perdoar o mundo, quero lavar a face da Santa Igreja com vossas orações, suores e lágrimas.
... Costuma o homem cair em pecado mortal embora nenhuma força externa, graças à sua liberdade, o possa obrigar, incluindo a própria fraqueza. Pelo pecado mortal a pessoa perde a graça batismal; como remédio, o Pai deixou a penitência (confissão), que constitui um perene batismo no Sangue. Ela é recebida mediante a contrição e confissão dos pecados aos ministros; possuindo a chave do Sangue, eles, pela absolvição O derramam na face da alma.
Sendo impossível a confissão, basta a contrição interior, pois com ela o Meu Espírito vos dá o Meu perdão. Mas se a confissão for possível quero que a façais; não recebe o perdão aquele que podendo fazê-lo, não a procura...
... Paciência, fortaleza, perseverança - eis as três virtudes, alicerçadas na caridade, e iluminadas pela fé, que fazem o homem andar na verdade, sem trevas.
O desejo santo eleva os perfeitos; já ninguém os consegue destruir: nem os demônios com suas tentações, nem os homens com seus ataques. O mundo, ao persegui-los na realidade os teme. Os perfeitos tornaram-se pequeninos pela humildade; costumo permitir dificuldades para fortalecê-los e engrandecê-los diante de Mim e do mundo. Podes comprová-lo em Meus santos: como se fizeram pequeninos por Minha causa, Eu os engrandeci em Mim e na Igreja, sendo seus nomes sempre lembrados; escrevi seus nomes no Livro da Vida. (Cf. Ap 21,27)...
.... Uma coisa é certa: ninguém entra na vida eterna se não for obediente (Mt. 19,17). A obediência foi a chave que abriu a porta do céu, da mesma forma como a desobediência de Adão a fechara. O sinal indicador de que possuis a obediência é a virtude da paciência; se não a tens a impaciência o dirá.
Impelido pela Minha grande caridade, tomei nas Mãos a chave da obediência e a entreguei a Meu Filho. Desempenhando a função de porteiro; Ele reabriu a porta do céu. Sem tal chave e tal Porteiro, ninguém ali conseguiria entrar.
Cada um tem consigo a obediência de Cristo. Embora tenha Ele aberto a porta do céu ocorre que cada um, pela fé e pelo amor, use tal chave para destrancar aquela porta. Criei-vos sem vossa colaboração; não pedistes para existir; mas sem vossa participação não vos salvarei. É de vosso interesse caminhar pela obediência na mensagem do Meu Filho sem interrupções, sem amar os bens passageiros.
"Param" aqueles que seguem o homem velho, o primeiro Adão, que jogou na lama do pecado a chave da obediência, que a quebrou pela soberba, que a arruinou com o egoísmo. Depois veio Meu Filho, tomou-a nas mãos, retirou-a da lama, purificou-a na chama do amor, lavou-a com Seu Sangue, endireitou-a e com ela destruiu os vossos pecados no próprio Corpo. Da mesma forma como o homem destruíra a obediência pela sua liberdade, Cristo livremente a reformou pela graça.
Óh homem cego, estragaste a chave de obediência e não te preocupas em restaurá-la. Achas que a desobediência conseguirá abrir a porta do céu; bem ela que o fechou! Julgas que o orgulho é capaz de conduzir-te ao céu, bem ele que de lá caiu! Imaginas ir às núpcias ligado pelas correntes do pecado?
Ou crês possível abrir a porta celeste sem chave alguma? Não creias; estaria enganada a tua imaginação! É preciso que te libertes; livra-te do pecado pela confissão, contrição, propósito de não mais pecar. Somente assim atirarás num canto a roupa suja e com a fé e a obediência abrirás aquela porta. Amarra à sua cintura tal chave com o cordão da humilhação e do desprezo por ti mesmo e pelo mundo, a fim de que não a percas. Dependura-a no cinturão que é Minha vontade de que deves estar cingido.
Todos são postos a trabalhar na vinha da obediência, cada um a seu modo; todos terão a sua paga não pelo que fez ou pelo tempo de serviço, mas na proporção do quanto amou. Quem começou primeiro não receberá mais que o companheiro que veio depois, assim como mostra o Evangelho (Mt. 20,1-16), na passagem em que Jesus narra a parábola dos operários ociosos, enviados pelo Senhor ao trabalho de sua vinha. O patrão deu o mesmo salário aos que haviam começado na aurora e aos demais que se apresentaram às seis, nove, doze, quinze horas e ao entardecer. Meu Filho quis revelar que não sereis premiados de acordo com a duração e o tempo de trabalho, mas de acordo com o amor.
... Desde o início do mundo até agora Minha providência cuida e continuará a cuidar das necessidades e salvação dos homens. Realiza tal obra por formas diversas, conforme parecer melhor a Mim, médico verdadeiro e justo, ante vossas enfermidades. Para quem a acolhe, Minha providência jamais faltará...
... Não reconheço os que Me imploram sem a prática da virtude, sem a vivência da justiça... Ao confiar em Mim e ao servir-Me, necessariamente o homem tem que renunciar a si e ao mundo, tem de não apoiar-se na própria fraqueza. A esperança humana é mais ou menos perfeita conforme o amor da pessoa; será igualmente nessa medida que cada um terá a experiência da Minha providência. Aqueles que Me servem e só em Mim confiam, experimentá-la-ão mais profundamente do que as almas cuja esperança se fundamenta em interesses e compensações...
... A pessoa insensata não percebe que vivo em contínuos cuidados pelo mundo, em geral, e por cada homem em particular, de acordo com as suas necessidades.
Aos homens em particular, ajo conforme quero: acontecerá a vida ou a morte, a fome ou a sede, mudanças de posição social, nudez e calor, injurias, caçoadas e traições. Permito que as pessoas digam e façam tudo isso. Não procede de Mim a malícia da vontade, presente naqueles que praticam o mal e injuriam; mas de Mim recebem o ser e a existência.
Sem dúvida, não lhes dou o ser para que pequem contra Mim e o próximo; dou-o para o serviço e o amor. Permito o mal a fim de que o ofendido prove a sua paciência ou a adquira...
... Também não deixo, de proteger bondosamente as pessoas. Faço a terra produzir frutos, tanto para o pecador como para o justo (Mt. 5,45), propiciando o sol e a chuva para as lavouras. Algumas vezes o pecador recebe até mais do que o justo. Ajo assim, para dar maiores riquezas espirituais ao justo, que por Meu amor se despojou de bens materiais e mesmo da vontade própria...
... Diretamente para a alma, deixei na Santa Igreja os sacramentos. Eles são o alimento da alma; a alma é incorpórea e vive da Minha Palavra, ao passo que o pão material destina-se ao sustento do corpo; neste sentido afirmou Meu Filho no Evangelho, "não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai de Mim" (Mt. 4,4). "Vive" a alma, quando segue por intenção íntima a mensagem da Minha Palavra encarnada. É essa palavra que dá a vida no Sangue através do sacramentos; enquanto espirituais, eles se destinam à alma.
Quando são recebidos apenas materialmente, não produzem a vida da graça. Os sacramentos supõem que o homem os receba com disposições espirituais de desejo santo. Ora, este não provém do corpo mas da alma. Em tal sentido afirmei que os sacramentos são "espirituais" e destinam-se à alma, que é incorpórea. Embora ministrados através do corpo, quem os recebe é o desejo da alma.
... Enquanto estás no mundo, sempre vos é possível progredir e merecer. Para isso Eu vos purifico quanto ao egoísmo espiritual e sensível, podando-vos com sofrimentos para que produzais frutos. O sofrimento é ainda um sinal, serve de prova, nele o homem revela o grau de perfeição ou imperfeição em que está.
Filha querida, tal é Minha providência em favor dos homens, atuada em situações infinitas e por admiráveis modos. Os maus não a percebem, por que as trevas não Me compreendem (Jo. 1,5); mas é percebida por quem tem a fé, perfeita ou imperfeita que seja, de acordo com a iluminação que recebeu.
Após Ter recebido a precedente iluminação geral, o cristão não deve-se dar por satisfeito. Enquanto viveis neste mundo, podeis, e deveis progredir. Se alguém estaciona, por isto mesmo retrocede. É necessário crescer naquela iluminação recebida com a graça, ou superar o que é imperfeito para atingir a perfeição. De fato, existe uma Segunda iluminação para quem aspira à perfeita. Ela é dupla para aqueles que se elevaram do comum comportamento do mundo.
Cada pessoa recebe tal luz conforme suas aptidões e disposições. Respeito as pessoas. Como acréscimo à luz da razão, a inteligência é iluminada por uma luz infusa* proveniente da graça. Foi com esta Segunda luz infusa e sobrenatural que os Doutores da Igreja e demais Santos conheceram a verdade, transformando a escuridão em claridade.
Luz infusa* - iluminação complementar dada por Deus àqueles que se situam em avançado estado de perfeição, propiciando-lhes um perfeito discernimento.
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Nos ensina o catecismo da Igreja Católica nº 67: No decurso dos séculos houve revelações denominadas "privadas", e algumas delas têm sido reconhecidas pela autoridade da Igreja. Elas não pertencem, contudo ao depósito da fé. A função delas não é melhorar ou completar a revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a viver dela com mais plenitude em uma determinada época da história. Guiado pelo Magistério da Igreja o senso dos fiéis sabe discernir e acolher o que nessas revelações constitui um apelo autêntico de Cristo ou de seus santos, à Igreja. ESTA É A VERDADEIRA DOUTRINA DA IGREJA.


Túmulo com uma laje tumular e uma escultura da Santa em mármore deitada sobre a laje ao estilo medieval. Na lateral estão as suas inscrições gravadas. Envolvendo o túmulo, uma construção em madeira ricamente decorada e pintada composta por vários pilares.

LOCAL: Igreja Santa Catarina de Siena, Roma,Itália.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Liturgia das Horas (Ofício Divino): Ofício das Leituras.


Das Conferências de Santo Tomás de Aquino, presbítero



(Colatio 6 super Credoin Deum)



(Séc.XIII)



Na cruz não falta nenhum exemplo de virtude

Que necessidade havia para que o Filho de Deus sofresse por nós? Uma necessidade

grande e, por assim dizer, dupla: para ser remédio contra o pecado e para exemplo do

que devemos praticar.


Foi em primeiro lugar um remédio, porque na paixão de Cristo encontramos remédio

contra todos os males que nos sobrevêm por causa dos nossos pecados.


Mas não é menor a utilidade em relação ao exemplo. Na verdade, a paixão de Cristo é

suficiente para orientar nossa vida inteira. Quem quiser viver na perfeição, nada

mais tema fazer do que desprezar aquilo que Cristo desprezou na cruz e desejar o que

ele desejou. Na cruz, pois, não falta nenhum exemplo de virtude.


Se procuras um exemplo de caridade: Ninguém tem amor maior do que aquele que dá

sua vida pelos amigos (Jo 15,13). Assim fez Cristo na cruz. E se ele deu sua vida por

nós, não devemos considerar penoso qualquer mal que tenhamos de sofrer por causa

dele.


Se procuras um exemplo de paciência, encontras na cruz o mais excelente! Podemos

reconhecer uma grande paciência em duas circunstâncias: quando alguém suporta com

serenidade grandes sofrimentos, ou quando pode evitar os sofrimentos e não os evita.

Ora, Cristo suportou na cruz grandes sofrimentos, e com grande serenidade, porque

atormentado, não ameaçava (1Pd 2,23); foi levado como ovelha ao matadouro e não

abriu a boca (cf. Is 53,7; At 8,32).


É grande, portanto, a paciência de Cristo na cruz. Corramos com paciência ao combate

que nos é proposto, com os olhos fixos em Jesus, que em nós começa e completa a obra

da fé. Em vista da alegria que lhe foi proposta, suportou a cruz, não se importando

com a infâmia (cf. Hb 12,1-2).


Se procuras um exemplo de humildade, contempla o crucificado: Deus quis ser julgado

sob Pôncio Pilatos e morrer.


Se procuras um exemplo de obediência, segue aquele que se fez obediente ao Pai até à

morte: Como pela desobediência de um só homem, isto é, de Adão, a humanidade toda

foi estabelecida numa condição de pecado, assim também pela obediência de um só,

toda a humanidade passará para uma situação de justiça (Rm 5,19).


Se procuras um exemplo de desprezo pelas coisas da terra, segue aquele que é Rei dos

reis e Senhor dos senhores, no qual estão encerrados todos os tesouros da sabedoria e

da ciência (Cl 2,3), e que na cruz está despojado de suas vestes, escarnecido, cuspido,

espancado, coroado de espinhos e, por fim, tendo vinagre e fel como bebida para matar

a sede.


Não te preocupes com as vestes e riquezas, porque repartiram entre si as minhas vestes

(Jo 19,24); nem com honras, porque fui ultrajado e flagelado; nem com a dignidade,

porque tecendo uma coroa de espinhos, puseram-na em minha cabeça (cf. Mc 15,17);

nem com os prazeres, porque em minha sede ofereceram-me vinagre (Sl 68,22).

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Sinopse: erros do Vaticano II.


SINOPSE DOS ERROS IMPUTADOS AO VATICANO II

Índice

I- Introdução

II- Natureza ambígua do último concílio

III- Erros no discurso de inauguração e na mensagem para o mundo

IV- Exemplos de ambigüidades e contradições nos textos do concílio

V- Omissões importantes

VI- Sinopse dos erros imputados ao Vaticano II:

Erros doutrinais:

1- noção de Tradição e de verdade católica

2- Santa Igreja e a Beatíssima Virgem

3- missa e a liturgia sagrada

4- o sacerdócio

5- a encarnação, a redenção, o conceito do homem

6- o reino de Deus

7- o matrimônio e a condição da mulher

8- os heréticos e cismáticos (denominados “irmãos separados”)

9- a descrição errada e falaciosa das religiões não cristãs

10- erros concernentes à política, à comunidade política, às relações entre Igreja e Estado

11- erros sobre a liberdade religiosa e o papel da consciência moral

Erros pastorais:

12- erros na interpretação da significação do mundo contemporâneo

13- a reforma da sagrada liturgia

14- o estudo e o ensinamento da doutrina

15- a formação dos religiosos e seminaristas, o ministério dos bispos e sacerdotes

16- a formação dos missionários e diretrizes para seu apostolado

17- as diretrizes para o apostolado dos leigos

18- a modernização da educação

VII- Conclusão

Retornar à doutrina ou perecer.

I- Introdução

Geralmente atribui-se ao Vaticano II (1962-1965) uma mentalidade pouco ou nada católica, devido ao antropocentrismo, tanto inexplicável quanto inegável, que transparece em todos seus documentos, à simpatia manifesta pelo “mundo” e seus enganosos valores. Mais concretamente, atribuem-se-lhe ambigüidades notáveis, contradições patentes, omissões significativas, e sobretudo, erros graves de doutrina e pastoral.

II- Natureza jurídica ambígua do último Concílio

Deve-se recordar, a título preliminar, que a ambigüidade se insinua até na natureza jurídica efetiva do concílio: tal natureza não é clara e parece indeterminada, porque o Vaticano II declarou-se simples concílio pastoral, razão pela qual não pretendeu definir dogmas, nem condenar erros (cf. o discurso de inauguração pronunciado por João XXIII em 11 de outubro de 1962 e a Notificatio lida em 5 de novembro de 1965). Portanto, as duas constituições conciliares consideradas “dogmáticas” têm esse nome num sentido puramente descritivo, ou seja, por tratarem de assunto referente ao dogma da fé. (Dei Verbum, sobre a revelação divina, e a Lumen Gentium, sobre a Igreja).

O concílio define-se apertis verbis, “magistério ordinário supremo e manifestamente autêntico” (Paulo VI), figura insólita e inadequada para um concílio ecumênico. De fato, o concílio é um exercício extraordinário do magistério que ocorre no momento em que o Papa decide exercer excepcionalmente junto com todos os bispos reunidos por ele, a summa potestas, sobre toda a Igreja que lhe compete por direito divino. A referência ao caráter “autêntico” do magistério é pouco esclarecedora, porque por isso se entende normalmente um magistério “autorizado” em razão da autoridade da pessoa, não em razão de sua infalibilidade. O magistério mere authenticum não é infalível, ao contrário do “magistério ordinário infalível” (v. si si no no , 31 de março de 2001, ed. italiana, págs. 4 ss.). A infalibilidade do magistério ordinário não apresenta as mesmas características, as mesmas notas que o magistério extraordinário; portanto não pode ser aplicada ao concílio. Basta lembrar que os bispos concorrem ao magistério ordinário infalível por estarem dispersos por todo o globo (ensinando a mesma doutrina, apesar de geograficamente dispersos), não quando se encontram reunidos em concílio.



Seja qual for a natureza jurídica efetiva do Vaticano II, está claro que esta não se quis impor um ensinamento marcado pela nota da infalibilidade. O próprio Paulo VI disse que os fiéis deviam acolher os ensinamentos conciliares “com docilidade e sinceridade”, isto é, com “assentimento religioso interno” (requerido para os documentos pastorais, por ex.).

Tal assentimento é obrigatório com a condição de que não haja razões graves e suficientes para não concedê-lo. E que razão seria mais grave do que a alteração do depósito de fé? Durante o tormentoso desenrolar do concílio, cardeais, bispos e teólogos fiéis ao dogma já tinham estigmatizado repetidamente as ambigüidades e os erros que se infiltravam naqueles textos, erros que hoje, depois de quarenta anos de reflexão e de estudo qualificado, estamos aptos a detectar com maior precisão ainda.

III- Erros no discurso de inauguração e na mensagem ao mundo

Não pretendemos que esta sinopse seja completa. Parece-nos entretanto, Ter identificado um número suficiente de erros importantes, começando pelos que estão contidos na alocução de abertura e na mensagem do concílio ao mundo de 20 de outubro de 1962.

Esses dois textos, apesar de não pertencerem ao concílio, o orientam no sentido desejado pela ala progressista, isto é, pelos inovadores neo-modernistas.

Alocução de abertura

O célebre discurso de João XXIII contém três verdadeiros erros doutrinais, além de profecias gritantemente desmentidas pelos fatos: “a Providência está nos conduzindo em direção a uma nova ordem de relações humanas que ... se dirigem à realização de desígnios superiores e inesperados ”.

1o Erro: uma concepção mutilada do magistério

Este erro encontra-se na incrível afirmação, reformada por Paulo VI no discurso de inauguração da segunda seção do concílio, em 29 de setembro de 1963, segundo a qual a santa Igreja renuncia a condenar os erros: “A Igreja sempre se opôs a estes erros ( as opiniões falsas dos homens, n. da red.). Freqüentemente os condenou com a maior severidade. Em nosso tempo, entretanto, a Esposa de Cristo prefere usar a medicina da misericórdia mais que a da severidade. Ela estima que, em vez de condenar, ela responde melhor às necessidades de nossa época realçando as riquezas de sua doutrina”. Renunciando ao exercício de sua autoridade, que procede de Deus, o papa Roncalli faltava com seus deveres de vigário de Cristo. A condenação do erro é essencial para a preservação do depósito da fé (que constitui o primeiro dever do Pontífice), pois confirma a fortiori a sã doutrina, demonstrando sua eficácia com uma aplicação concreta. Além disso, a condenação do erro é necessária desde o ponto de vista pastoral, porque sustenta os fiéis, tanto os cultos quanto os menos cultos, com a autoridade inigualável do magistério, com a qual passam a contar para defender-se do erro, cuja “lógica” é sempre mais astuta e mais sutil do que a deles. E não e só isso: a condenação do erro pode induzir o que erra a refletir, colocando-o frente à verdadeira substância de seu próprio pensamento. Como sempre se repetiu, a condenação do erro é obre misericordiosa ex sese.

Sustentar que esta condenação já não tem mais razão de ser, por um lado, dá impulso a uma concepção mutilada do magistério da Igreja, por outro, substitui o diálogo com o homem que erra, (que a Igreja sempre procurou) pelo diálogo com o erro. Tudo isso configura um erro de doutrina, que se manifesta no final do texto de João XXIII. Aqui aparece a idéia de que a demonstração da “validade da doutrina” é incompatível com a “renovação das condenações”, como se tal validade tivesse que impor-se unicamente graças à força de sua própria lógica interna. Se fosse assim, a fé não seria mais um dom de Deus, ela não teria mais necessidade nem da graça para existir e se fortificar, nem do exercício do princípio de autoridade, personificado pela Igreja Católica, para se sustentar. Este é o erro, em seu sentido próprio, escondido na frase de João XXIII: uma forma de pelagianismo, típico de toda concepção racionalista da fé, muitas vezes condenado pelo Magistério.

Além disso, as condenações fulminam não só as heresias e os erros teológicos no sentido estrito e de maneira implacável, mas toda concepção de mundo que não seja cristã (não somente as contrárias à fé, mas também as distintas dela, religiosas ou não, porque segundo Nosso Senhor, “quem não colhe amigo, dispersa” Mt, 12,30).

A posição heterodoxa de João XXIII, mantida pelo concílio e pelo pós-concílio até hoje, derrubou por terra - nota-se isso nos textos conciliares - a inflexível armadura conceitual da Igreja, apreciada outrora até por seus inimigos: “O selo intelectual da Igreja é, na sua essência, o rigor inflexível com o qual os conceitos e os juízos de valor são estabelecidos, como aeterni” (Nietzche).

2o erro: a contaminação da doutrina pelo “pensamento moderno”, intrinsecamente

anti-católico.

A essa renúncia proclamada de combater o erro, a essa inaudita abdicação, está ligada outra célebre e gravíssima afirmação de João XXIII, retomada por ele na alocução aos cardeais, de 13 de janeiro de 1963, segundo a qual a “penetração doutrinal” devia ser feita “em correspondência com a mais perfeita fidelidade à autêntica doutrina”. Essa doutrina, no entanto, devia ser “estudada e exposta através das formas de investigação e da formulação literária do pensamento moderno, já que uma coisa é a substância do depositum fidei, isto é, das verdades que a nossa venerada doutrina contém. Outra coisa é a forma pela qual essas verdades são enunciadas e isso deve ser levado muito em conta, atendendo-se às normas e exigências de um magistério de caráter sobretudo pastoral”.

Este conceitos foram expressamente retomados pelo concílio no decreto Unitatis Redintegratio sobre o ecumenismo, art. 6 (cf. infra).

O princípio liberal e modernista de que a doutrina perene devia revestir-se de uma forma nova tirada do “pensamento moderno”, já tinha sido expressamente condenado por S. Pio X (Pascendi 1907, par. II, c.; decreto Lammetabili, nn. 63 e 64; Denzinger 2064-5/3464-5) e por Pio XII (Humani Generis, AAS 1950, 565-566). Portanto o Papa Roncalli propôs uma doutrina já condenada formalmente como herética (modernista) pelos seus predecessores.

De fato, não é possível aplicar à doutrina católica as categorias do “pensamento moderno”, que nega a priori, em todas suas formas, a existência de uma verdade absoluta, cujo único valor absoluto é o homem que tudo a ele relaciona e o diviniza em todas suas manifestações (desde o instinto à “consciência de si”). Trata-se pois, de um pensamento intrinsecamente oposto a todas as verdades fundamentais do cristianismo, desde a idéia de um Deus criador, de um Deus vivo, que se revelou e incarnou, até o modo de entender a ética e a política. Ao propor tamanha contaminação, João XXIII agiu como discípulo do “método” da “Nouvelle Théologie” neo-modernista, já condenada pelo magistério. Se o concílio se preocupasse verdadeiramente com as necessidades dos tempos, que é a missão salvífica da Igreja Católica, deveria ter aprofundado as condenações do pensamento moderno que os Papas tinham formulado no passado (desde Pio IX até Pio XII), em vez de deixar que se fizesse o “estudo” e a “expressão” da doutrina “autêntica” e “antiga” em função de tal tipo de pensamento.

3o erro: a finalidade da igreja é a unidade do gênero humano

O terceiro erro se apoia na consideração de que a unidade do gênero humano é fim próprio da Igreja: “Eis a que se propõe o II Concílio Ecumênico do Vaticano...ele de certo modo prepara e abre o caminho que leva à unidade do gênero humano, fundamento necessário para que a Cidade terrestre se organize à semelhança da Cidade celeste na qual, segundo S. Agostinho, a verdade é o rei, a caridade é a lei e cujas fronteiras são a eternidade (cf. S. Agostinho, Epíst. 138, 3).”

Considera-se aqui que o fundamento necessário (reflitam no adjetivo “necessário”) para que a “cidade terrestre” se assemelhe cada vez mais à “celeste” seja a unidade do gênero humano. Entretanto, nunca se ensinou no passado que a expansão da Igreja neste mundo necessitasse de tal fundamento. Além do mais, a unidade do gênero humano – unidade afirmada simpliciter pelo papa – é uma idéia mestra da filosofia da história elaborada pelo pensamento laicista a partir do século XVIII, uma componente essencial da religião da Humanidade, não da religião católica.

O erro consiste aqui em misturar a visão católica com um pensamento alheio a ela, que nega e contradiz ex sese a doutrina tradicional. Os não católicos não visam a estender o reino de Deus (quer dizer, a parte deste reino visível na Terra ou a Igreja militante), mas desejam suplantar a própria Igreja pela Humanidade, convencidos como estão da dignidade do homem enquanto homem (porque não crêem no dogma do pecado original) e de seus presumidos “direitos”.

Os efeitos deletérios da recusa de condenar os erros do século se fizeram sentir também, como uma espécie de némesis, no discurso pronunciado, visto que este contém no mínimo um desses erros além de pelo menos outros dois, mais propriamente teológicos.



Erros na mensagem dos

Padres conciliares ao mundo

A mensagem ao mundo transmitida na inauguração do concílio ( Monsenhor Lefebvre foi um dos poucos a criticá-la), contém em miniatura a pastoral que se estenderia ad abundantiam na Gaudium et Spes, uma pastoral que reserva o lugar de honra para os “bens humanos”, a “dignidade do homem” enquanto homem e a “paz entre os povos” (invocada para não ter que convertê-los a Cristo). “Confiamos que a partir dos trabalhos do concílio a luz da fé resplandeça com mais clareza e intensidade. Esperamos também uma renovação espiritual, que impulsione e fomente os bens humanos, tais como os inventos científicos, os progressos técnicos e uma maior difusão da cultura.”

Os “bens humanos” estão representados aqui pelo progresso da ciência, da arte, da técnica, da cultura (entendida à maneira do século, segundo se infere na Gaudium et Spes, art. 60 a 62, cf. infra).O concílio devia se preocupar disso? Deveria desejar a incrementação de tais “bens”, meramente terrenos, caducos, freqüentemente falazes, em vez de promover os bens eternos, fundados em valores perenes, ensinados pela Igreja durante os séculos? Como espantar-se com a grave crise que ainda perdura em conseqüência desse gênero de pastoral? E o que se verificou em vez de um novo esplendor?

O erro teológico no sentido próprio manifesta-se depois, na conclusão da mensagem: “Por isso, humildemente e ardentemente, convidamos todos, não só nossos irmãos, a quem servimos como pastores, mas também todos os irmãos que crêem em Cristo e todos os homens de boa vontade [abstraindo sua religião pessoal], a que colaborem conosco para instaurar no mundo uma sociedade humana mais reta e mais fraterna, visto que “o desígnio divino é que, pela caridade, brilhe de algum modo o reino de Deus como dádiva do reino eterno”. Esta não é a doutrina católica, para a qual “a dádiva do reino eterno” neste mundo é exclusivamente a Igreja Católica, a Igreja visível, docente e discente, membros terrenos do corpo místico de Cristo, que cresce (lentamente, mais cresce) apesar da oposição do “príncipe deste mundo”: a Igreja, não é a união de “todos os homens de boa vontade”, de todo o gênero humano, sob o estandarte do “progresso”.

IV- Exemplos de ambigüidades e contradições nos textos conciliares

Ambigüidades

Limitemo-nos a recordar um exemplo que já se tornou clássico.

Na constituição dogmática Dei Verbum sobre a revelação divina (dogmática porque se ocupa de verdades inerentes ao dogma), as verdades de fé sobre as duas fontes paritárias da revelação (Sagrada Escritura e Tradição), sobre a inerrância absoluta das Escrituras e sobre a historicidade plena e total dos Evangelhos são expostas de maneira insuficiente e pouco clara (nos artgs. 9, 11, 19 de DV). A terminologia num caso (art. 11) se presta a interpretações opostas entre si, uma das quais pode reduzir a inerrância à “verdade consignada na Escritura visando a nossa salvação” (o que equivale a uma heresia, porque a inerrância absoluta da Sagrada Escritura, inclusive a dos fatos ali contidos é uma verdade de fé sempre mantida e ensinada pela Igreja).

Contradições

Como exemplo de contradição patente, recordemos o artigo 2 do decreto Perfectae Caritatis sobre a renovação da vida religiosa, onde se diz que “a renovação adequada (accommodata) da vida religiosa abarca por um lado a volta às fontes de toda vida cristã e à primitiva inspiração dos institutos, e por outro, uma adaptação (adaptationem) dos mesmos às diversas condições dos tempos”.

A contradição salta aos olhos, porque o próprio da vida religiosa (segundo os três votos de pobreza, castidade e obediência), tem sido a antítese perfeita em relação ao mundo, corrompido pelo pecado original, cuja figura é caduca e passageira. Como é possível, então , que “a volta às fontes”, à “primitiva inspiração dos Institutos”, se verifique juntamente com sua “adaptação às diversas condições dos tempos”, ou melhor, “mediante tal adaptação”? A adaptação a tais “condições”, que são hoje as do mundo moderno secularizado, da cultura leiga, etc., impede por si mesmo “a volta às fontes”.

Outro exemplo de contradição: no art. 79 da Gaudium et Spes se admite o direito dos governos à “legítima defesa” para “defender-se com justiça” (ut populi iuste defendatur). Parece substancialmente conforme o ensinamento tradicional da Igreja, que sempre admitiu, na hora de defender-se contra um ataque tanto externo quanto interno, um tipo de “guerra justa”, conforme os princípios do direito natural. Não obstante, no art. 82 da mesma Gaudium et Spes há, uma “proibição absoluta da guerra” (De bello omnimo interdicendo) e consequentemente, de todo tipo de guerra, sem excetuar expressamente a guerra defensiva, justificada três artigos acima.

Um último exemplo: a conservação do latim como língua litúrgica. De fato, o concílio ordena que seja conservado (servetur) “o uso do latim nos ritos latinos” (Sacrossantur Concilium, 36,1), mas ao mesmo tempo, concede “maior espaço” na liturgia à língua vulgar, segundo as normas e os casos fixados pelo próprio concílio (SC 36,2). Mas as normas de caráter geral estabelecidas pelo concílio atribuem às conferências episcopais, graças à faculdade de experimentar novas formas litúrgicas (!) que lhes foi concedida, uma competência praticamente ilimitada no que concerne à introdução da língua vernácula no culto (SC 22, 2; 40-54). Além disso, abundam os casos em que o concílio autoriza o uso – parcial ou total – da língua nacional: na administração dos sacramentos, dos sacramentais e nos ritos particulares (SC 63); nos ritos do batismo nos países de missão (SC 65); na ordenação dos sacerdotes (SC 76); no matrimônio (SC 77 e 78); na recitação do Ofício Divino (SC 101) e na solene liturgia da missa (SC 113). Mais do que manter o uso do latim, o concílio parece ter-se preocupado em abrir o maior número possível de brechas à língua vulgar, determinando assim as premícias de sua vitória definitiva no pós-concílio.

V- Omissões importantes

Entre as omissões do concílio, limitemo-nos a recordar as mais importantes.

No plano dogmático:

1-Ausência de condenação dos erros do século

2-Ausência do conceito do sobrenatural e, correlativamente, de toda menção do paraíso

3- Ausência de um estudo específico sobre o inferno, que se menciona só uma vez, levemente (cf. Lumen Gentium, art. 58 [no espanhol e no francês, 48])

4-Ausência de qualquer menção do dogma da transubstanciação na definição da santa missa exposta no artigo 47 da SC. Esta ausência repete-se por exemplo, no art. 106 da mesma constituição e em outros lugares (cf. infra, 30)

5-Tampouco se mencionam os “pobres de espírito” (pior ainda: falta até seu conceito)

No plano espiritual:

1- Em geral, percebe-se a omissão de qualquer traço especificamente católico em conceitos chaves da pastoral, concernentes às relações entre a Igreja e o Estado, o tipo ideal do indivíduo, a família, a cultura, etc. (Gaudium et Spes, 53, 74, 76, etc.; cf. infra)

2- Não se condena o comunismo (fato cobre o qual correram rios de tinta). Tal lacuna aparece na passagem da Gaudium et Spes, que condena genericamente o “totalitarismo”, colocando-o no mesmo plano que a “ditadura”: “De qualquer maneira, é inumano que a autoridade política caia em formas totalitárias ou em formas ditatoriais que lesam gravemente os direitos da pessoa ou dos grupos sociais” (Gaudium et Spes, 75).

Idêntica lacuna nota-se também no artigo 79 da mesma constituição na qual se condenam métodos abomináveis como “aqueles com os que metodicamente se extermina totalmente um povo, raça ou minoria étnica... Isso tem que ser condenado veementemente como crime hediondo”. Tais “métodos” foram aplicados várias vezes no século XX, por ex., contra os armênios cristãos, exterminados pelos turcos muçulmanos nos anos que precederam à primeira guerra mundial, e, por parte do nazismo neopagão, contra os judeus, cujas vastas e florescentes comunidades da Europa centro-oriental foram aniquiladas. Mas também foram aplicados pelos comunistas, com a eliminação física sistemática dos supostos “inimigos da classe”, quer dizer, milhões de indivíduos cujo único erro era pertencer a uma classe social determinada: aristocracia, burguesia, camponeses, todas as classe a serem extirpadas em nome da sociedade sem classes, fim utópico do comunismo. Seria então preciso que esse art. 79 da Gaudium et Spes acrescentasse aos diferentes tipos de exterminação o “de uma classe social, etc.”. Mas a ala “progressista” que se impôs no concílio tratou de evitá-lo. Ela era em grande parte orientada politicamente para a esquerda, e não queria que se falasse do marxismo como doutrina nem do comunismo como sua realização prática.

3- Ausência de condenação da corrupção dos costumes, do hedonismo, que já começava a difundir-se na sociedade ocidental.



VI- Sinopse dos erros imputados ao Vaticano II

Dividiremos tais erros em doutrinais e pastorais, mesmo sabendo que a distinção entre ambos nem sempre é fácil.

Os erros doutrinais:



Os erros doutrinais se encontram nas proposições que contradizem, inteira ou parcialmente, o que a Igreja sempre ensinou, ou obscurecem, ou reduzem ou alteram de algum modo a doutrina católica. Esses erros abundam em todos os textos nos quais o Concílio quis expor sua própria doutrina, sua “perscrutação” da tradição sagrada e dos ensinamentos da Igreja: “este Concílio Vaticano perscruta (scrutatur) a tradição sagrada e a doutrina da Igreja, das quais trás à luz coisas novas (nova) sempre coerentes (congruentia) com as antigas” (Dignitatis Humanae). O leitor que nos acompanha na presente sinopse julgará em que medida corresponde à realidade a afirmação anterior.

Os erros na doutrina atingem:

1- a noção de Tradição e de verdade católica

2- a santa Igreja e a beatíssima Virgem

3- a santa missa e a sagrada liturgia

4- o sacerdócio

5- a encarnação, a redenção, o conceito do homem

6- o reino de Deus

7- o matrimônio e a condição da mulher

8- os sectários, hereges e cismáticos (denominados “irmãos separados”)

9- as religiões não cristãs

10- a política, a comunidade política, as relações entre Igreja e Estado

11- a liberdade religiosa e o papel da consciência individual

Os erros pastorais:

Em simbiose permanente com

hereges e cismáticos

Os erros na Pastoral consistem essencialmente em propor uma pastoral desviada, porque põe em prática os erros doutrinais do Concílio, ou se opõe de alguma maneira, total ou parcialmente, à pastoral tradicional da Igreja, ou a altera, ou acaba contradizendo-a intrinsecamente.

De um ponto de vista geral, toda a Pastoral proposta pelo Vaticano II está corrompida, porque se apóia na adaptação (aggiornamento), ou seja, no princípio do diálogo com o erro, em vez de dialogar com o que erra para convertê-lo, como foi dito mais acima.

Vamos expor os erros pastorais da seguinte maneira: primeiro faremos (na seção 1.2) uma análise sucinta das apresentações fantasiosas relativas ao homem e ao mundo, alheias a qualquer referência efetiva ao ensinamento da Igreja e ao pensamento católico, desenvolvidas principalmente na Gaudim et Spes, que constituem como o fundamento teórico de grande parte da Pastoral conciliar; depois daremos alguns exemplos dos desvios da Pastoral proposta, quando seguirmos o plano geral da Gaudium et Spes e dos documentos doutrinais. Graças a tais exemplos, veremos (na sec. 1.3 e seguintes) que a Pastoral do Vaticano II se articula sempre em função de duas diretrizes fundamentais, vinculadas entre si:

1-a “adaptação” do clero, sem poupar nenhum de seus integrantes, à cultura moderna e contemporânea em todas suas formas: humanísticas, científicas, técnicas, artísticas.

2- a “colaboração ecumênica” de sacerdotes e fiéis com os chamados “irmãos separados”, com os seguidores das religiões não cristãs, com todos os homens; mas não para convertê-los à fé única e verdadeira, e sim para colaborar com eles para o progresso e a unidade do gênero humano.

Além disso, no art. 24 Unitatis Redintegratio proclama-se que o ecumenismo é o “princípio geral” verdadeiro e próprio da Pastoral, entendido, obviamente, no sentido do art. 8 da Lumen Gentium e dos artgs. 1 a 4 da Unitatis Redintegratio: Este concílio deseja ardentemente (instanter exoptat) que os projetos (incepta) dos fiéis católicos progridam em união (coniuncta progrediantur) com os projetos dos “irmãos separados”

como era de se esperar, aceitou-se e pôs-se em prática este convite à simbiose permanente com os hereges e os cismáticos, o que nos autoriza afirmar que as degenerações ecumênicas na celebração do culto e na pastoral, tão difundidas hoje, têm suas raízes no Concílio (e não no chamado “pós-concílio”).

Os erros na Pastoral dizem respeito a:

12- interpretação do significado do mundo contemporâneo

13- reforma da sagrada liturgia

14-o estudo e o ensinamento da doutrina

15-formação dos religiosos e seminaristas, o ministério dos bispos e dos sacerdotes

16- formação dos missionários e diretrizes para seu apostolado

17- diretrizes para o apostolado dos leigos

18-a modernização da educação

ERROS DOUTRINAIS

1-Erros concernentes à noção de Tradição e de verdade católica

1.0 Um conceito errôneo da sagrada tradição, entendida como conjunto de ensinamentos graças aos quais a Igreja “tende constantemente, no decorrer dos séculos, à plenitude da verdade divina (ad plenitudinem divinae veritatis iugiter tendit), até que nelas se cumpram as palavras de Deus.’’(DE Verbum, 8). Como se a tradição, que guarda o depósito da fé desde o tempo da pregação apostólica, não possuísse a plenitude da verdade divina! Como se pudesse haver algo a ser acrescentado ou modificado nela!

Esta noção de um movimento “incessante” da Igreja em direção à “plenitude da verdade”, contradiz claramente a do “depósito da fé”(I Tim. 6.20), e se vincula ao subjetivismo característico do pensamento moderno, professado pela “Nouvelle Théologie”, para a qual tudo está sempre em movimento, em progresso contínuo e não existe uma verdade absoluta, mas somente o movimento incessante do sujeito em direção à verdade que, afinal, ele mesmo produz.

1.1 A incrível afirmação, contrária ao bom senso e à toda a tradição, segundo a qual “Cristo chama a Igreja peregrina a uma reforma perene, da qual a própria Igreja, enquanto instituição humana e terrena, tem sempre necessidade (vocatur in Christo ad hanc perenem reformationem quae ipsa ... perpetuio indiget)”; reforma que deve conter também “a maneira de expor a doutrina, que deve distinguir-se cuidadosamente do mesmo depósito da fé (qui ab ipso deposito fidei sedulo distingui debet)”(Unitatis Redintegratio,6; também Gaudium et Spes, 62). Este princípio já tinha sido proclamado nas versões em língua vernácula do discurso de inauguração de João XXIII de 11/10/62, e confirmado depois ao pé da letra por este próprio Papa (um princípio, entretanto, já condenado por S. Pio X (Pascendi,11,c; Lamentabili, 63 e 64: Denzinger, 2064-5) e Pio XII (Humane Generis, AAS 1950, 565-566) (cf. supra).

1.2 “A verdade só se deve impor pela força da própria verdade (nisi vi ipsius veritatis), que penetra suave e fortemente nas almas” (Dignitatis Humanae 1),é uma proposição do concílio para justificar a liberdade religiosa. Ela é absolutamente falsa. As verdades do catolicismo, enquanto verdades divinitus reveladas, estão acima da capacidade de nossa inteligência e não se pode crer nelas sem a ajuda da graça (por isso sempre se ensinou que a fé é um dom de Deus). Além disso, tal afirmação nega de fato as conseqüências do pecado original sobre a inteligência e a vontade, feridas e debilitadas e, consequentemente inclinadas ao erro e fascinadas por ele.

2- Erros concernentes à Santa Igreja e à Beatíssima Virgem



2.0 Uma idéia equivocada sobre a Santa Igreja (conhecida como o erro do subsistit in): a Igreja não é mais concebida como a Igreja única verdadeira de Cristo (conforme sempre foi ensinado), já que se ousa escrever que a “Igreja de Cristo” (...) “subsiste na Igreja Católica”, assim como subsistem “fora dela muitos elementos de santificação e de verdade”, a título de “dons próprios da Igreja de Cristo” (Lumen Gentium 8; também: Dignitatis Humanae 1; Unitatis Redingratio 3). Isso equivale a sustentar, contra o dogma da fé, que as almas se salvam também fora da Igreja católica – a qual, já não constitui o único “meio de salvação”. Assim também as comunidades heréticas e cismáticas são “meios de salvação” (UR 3), apesar de suas “deficiências”, porque o “Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como meios de salvação, cuja virtude deriva da plenitude de graça e de verdade que se confiou à Igreja católica” (UR 3 cit.)

Ainda deixa-se à Igreja católica “a plenitude total dos meios de salvação”, “auxílio geral da salvação (generale auxilium salutis)” (ibid). Mas assim a Igreja passa de meio único de salvação, a mero “auxílio geral” (expressão obscura), que possui “a plenitude total dos meios de salvação” (ainda que, só a plenitude deles, não a unicidade dos mesmos, como antes). O que significa que, in mente concilii, há meios menos plenos de salvação, capazes de conferi-la (quanto à salvação, ela só pode ser plena, pois é impossível conceber uma salvação pela metade); meios que se acham também, como parece, nos chamados “irmãos separados”, visto que estes gozam da assistência do Espírito Santo,não como indivíduos, mas cabalmente como comunidades heréticas e cismáticas.

Estamos perante um erro teológico manifesto, já que as comunidades “separadas” o são precisamente porque recusaram a assistência do Espírito Santo para correrem atrás dos próprios erros que as conduziram à separação. Esta nova doutrina do concílio acaba sendo, além disso, inconsistente no plano lógico porque não se entende como meios de salvação “deficientes” e menos plenos que os da Igreja católica possam alcançar a mesma salvação conferida por esta última: a meios desiguais deveriam corresponder resultados desiguais e não um resultado idêntico.

Nota sobre a declaração “Dominus Iesus”

Muitos católicos se alegraram com a Declaratio Dominus Iesus (A.D 2001), que reafirmou o subsistit da Igreja de Cristo na Igreja católica, assim como o princípio segundo o qual a Igreja católica é a única a gozar da “plenitude” dos meios de salvação. No entanto, para estar conforme ao depósito da fé, a Declaratio deveria dizer que a Igreja de Cristo subsiste somente na Igreja católica, em vez de dizer – em sintonia perfeita com Lumen Gentium e Unitatis Redintegratio – que a “Igreja de Cristo”, apesar das divisões dos cristãos, continua existindo plenamente só na Igreja católica”(DI, 16). O advérbio “plenamente” não está adequado, pois deixa entender que a Igreja de Cristo continuou e continua existindo, mesmo não plenamente, em “elementos” que, apesar de se acharem fora da Igreja católica, conferem salvação. É precisamente este conceito que contradiz o dogma bilimenar Extra Ecclesiam nulla salus. Com efeito, a verdade proclamada neste dogma (nulla salus: nenhuma salvação) é a seguinte: fora da Igreja católica, Igreja única e legítima de Cristo pelos séculos dos séculos, não há nem pode haver “meios” de salvação, sejam mais plenos ou menos, isto é, “meios” que possam obter a salvação através de “igrejas” ou “comunidades” heréticas e cismáticas enquanto tais. Fora da Igreja não há outra coisa além da possibilidade de uma salvação individual do herege ou cismático material de boa fé, que compartilha as doutrinas de sua seita por ignorância inculpável da doutrina católica, e que busca sinceramente cumprir em tudo a vontade de Deus. Esta é a doutrina do batismo de desejo implícito, que se aplica também aos não cristãos: se o infiel ou herege de espírito piedoso e devoto tivesse conhecido a Igreja ou sua autêntica doutrina, teria aderido a elas. Extra Ecclesiam (visível) não existe, pois, nada além da possibilidade de uma salvação individual, que pode ocorrer por obra do Espírito Santo, apesar da pertinência material do herege, do cismático, do infiel, a sua seita, comunidade ou religião.

Portanto, tal salvação não ocorre porque a seita ou comunidade represente um elemento da Igreja de Cristo. A “mesma plenitude de graça e de verdade que se confiou à Igreja católica” (Unitatis Redintegratio cit.) não age ali, mesmo que fosse de modo imperfeito, como pretendem os documentos conciliares.

E isso não é tudo. Tanto o Vaticano II quanto a Dominus Iesus tendem a aplicar este gravíssimo erro doutrinal a todas as religiões não cristãs, às pagãs inclusive. Segundo sua falsa doutrina, “as sementes do verbo” [semina verbi] (da verdade revelada) apareceram de algum modo naquelas religiões e ali permanecem. Compare-se Lumen Gentium, 17, Gaudium et Spes, 36, Ad gentis,11 e 18, e Nosti a Aetate,2 com DI, 12 13 e 14. Os “elementos” de verdade e santificação que existem supostamente nas comunidades dos heréticos e cismáticos têm seu paralelo nas “sementes do verbo” que se imaginam presentes no paganismo antigo e moderno e nas religiões que se auto-proclamam reveladas.

A falsa doutrina das semina Verbi deriva de uma manipulação do pensamento dos Padres da Igreja, São Justino e Clemente de Alexandria. Eles tinham visto “algo como uma semente do Verbo Divino” nas intuições de certas verdades especulativas e éticas, próximas à ordem estabelecida no mundo e no homem pelo Deus verdadeiro, que alguns filósofos chegaram a alcançar (Platão, Aristóteles e poetas gregos). Este conhecimento se limitava às intuições de filósofos e poetas, sem se estender à religião pagã, que os Padres nunca deixaram de considerar, em harmonia com a escritura, “culto ao demônio” (Salmo 95; I Cor. 10,20). Foi a neo-teologia que incluiu arbitrariamente a religião pagã no testemunho dos padres (cf. si si no no, ed. italiana, 1997,(XXIII) 9, págs. 1-4; Le sel de la Terre n. 38, outono de 2001, págs. 1-4).

O erro do Vaticano II permanece, pois, na Dominus Iesus.Continuam a ensinar que as comunidades heréticas e cismáticas fazem parte da “Igreja de Cristo’’, apesar de possuírem ex sese de (supostos) meios de salvação “deficientes” e menos plenos. Ainda que se encontrem por tal motivo numa posição de inferioridade em relação à Igreja Católica, esta é uma inferioridade meramente teórica, sem conseqüências para a salvação.

Tudo isso é absurdo e incoerente, e constitui a negação da verdade de fé divina, segundo a qual só a Igreja Católica é a única e verdadeira Igreja de Cristo, imutável e fiel através dos séculos. Tanto assim, que fora dela não há salvação (Denz., 802, 3866-3872).

2.1 A obscura noção da “Igreja de Cristo” como “mistério trinitário”, a não menos obscura eclesiologia trinitária, segundo a qual à Igreja do Pai sucede a do Filho, e a esta, a do Espírito Santo (Lumen Gentium 2-4). Tal idéia é desconhecida do depósito da fé, e [através dela, deturpando] um texto de Santo Irineu (Adversus Haereses III, 24,1), se professa abertamente um rejuvenescimento e uma renovação da Igreja por obra do Espírito Santo, como se estivéssemos na terceira e última idade da própria Igreja (LG 4). Tal perspectiva parece um eco dos erros de Joaquim de Floris, condenados no IV Concílio de Latrão (o duodécimo na série dos concílios ecumênicos, ano 1215) (Denz. 431-3/ 803-807).

2.2 Uma idéia equivocada de colegialidade, juridicamente anormal por comportar, contra a Tradição e a constituição da Igreja, dois sujeitos titulares do poder supremo de jurisdição: o Sumo Pontífice e o colégio episcopal (com o papa como cabeça), sendo que somente o primeiro pode exercê-lo livremente (Lumen Gentium 22 e a nota praevia). Tal idéia de colegialidade engendra o desaparecimento da responsabilidade pessoal de cada bispo no governo de sua diocese, substituindo-a pela responsabilidade coletiva das conferências episcopais (cujas decisões são tomadas por votos - Christus Dominus, 37). As conferências gozam agora também de poderes legislativos (CD 38-40), e têm ampla autonomia em muitos setores reservados tradicionalmente à competência exclusiva da Santa Sé (v. infra, 3.4, 13.6, 14.0, 15.9)

2.3 Uma interpretação gravemente errônea e ambígua da definição tradicional da Igreja como “corpo místico de Cristo” no art. 7 da Lumen Gentium. Lemos aí que “o filho de Deus, encarnado na natureza humana, redimiu o homem e o transformou em uma nova criatura (hominem redemit et in novam creaturem trasformavit) (cf. Gal. 6,15; II Cor. 5,17), superando a morte com sua morte e ressurreição”(Lumen Gentium, 7).Parece que a redenção já se efetuou para o homem, pois o transformou “em nova criatura”. Não por ter acreditado em Cristo, ter se convertido ou ter se feito cristão com a ajuda do Espírito Santo, nem devido à sua fé e suas obras sustentadas pela graça (claro em Gal 6,15 e II Cor. 5,17, citados impropriamente pelo concílio). Mas sim pela própria encarnação de Cristo, seu sacrifício e sua redenção. Estas “novas criaturas”, constituem o “corpo místico”: é o erro da chamada redenção objetiva ou anônima, autêntico cavalo de batalha da “Nouvelle Théologie” (cf. nn. 5.0, 5.1 da presente sinopse), que prescinde por completo, do livre arbítrio, da fé e das obras para obter a salvação. É evidente que se quis assimilar sic et simpliciter a noção de “corpo místico de Cristo” com a do gênero humano (cf. Lumen Gentium,1).

2.4 Outra idéia errônea sobre a Igreja é concebê-la como “povo de Deus”, em vez de “corpo místico de Cristo”. ( Lumen Gentium, 9-13). É uma definição que toma a parte pelo todo, isto é, toma o “povo de Deus” (mencionado em I Pedro 2,10) pela totalidade de Igreja (essa expressão era apenas um louvor de S. Pedro aos conversos procedentes do paganismo: “Vós que outrora não éreis povo, agora sois povo de Deus”). Essa definição implica numa visão “democrática” e “comunitária”, da própria Igreja, completamente alheia à tradição católica, e próxima ao sentimento dos hereges protestantes. Além disso, também inclui na noção de “povo” (e, portanto, numa perspectiva “comunitária” inusitada e insustentável) ao considerar seus integrantes como “membros” do “povo de Deus” (Lumen Gentium, 13). Parece que o clero participa do corpo místico de Cristo só como “membro”, em companhia do resto do “povo”. Esta noção bastarda do “povo de Deus” se superpõe à ortodoxia do “corpo místico”, do qual se participa agora em função da participação do coletivo representado pelo “povo de Deus”. Nesta ótica, o sacerdote perde seu significado autêntico porque se converte em mera função do “povo de Deus”, desempenhada sob duas formas: a do “sacerdócio comum dos fiéis” e a do sacerdócio “ministerial” ou “hierárquico” (o sacerdócio verdadeiro e próprio, o dos padres; cf. infra, nn.4.1 e 4.3).

2.5 O obscurecimento da noção da santidade da Igreja, que pertence ao depósito da fé. “A Igreja [de Cristo; n. da red.], recebendo em seu próprio seio os pecadores, santa ao mesmo tempo que necessitada de purificação constante, busca sem cessar a penitência e renovação” (Lumen Gentium, 8, cit.). Isso constitui um erro teológico evidente. Quem necessita de purificação é o pecador, não a Igreja, dado que o pecador obtém a purificação graças à ela. A santidade e perfeição pertencem à Igreja (católica) enquanto corpo místico de Cristo, fundado por Ele e governado pelo Espírito Santo. O depósito da fé e os sacramentos, cuja protetora é a Igreja, também possuem a mesma santidade e perfeição. Elas têm para nós um valor religioso, metafísico e teológico que não pode ser mesclado, ex definitione, pelas culpas dos eclesiásticos ou dos fiéis. É portanto completamente errado escrever que aqueles que se confessam “se reconciliam com a Igreja”, à qual, pecando, infligiram uma ferida (quam peccando vulneraverunt)” (Lumen Gentium, 11). Também não se pode dizer que a Igreja “de se reveste de uma verdadeira santidade , apesar imperfeita” por causa do pecado (Lumen Gentium 48), que a fere continuamente. Está errado porque o pecado ofende a Deus, mas fere unicamente quem o comete e causa dano só a ele (a pena devida ao pecado se aplica exclusivamente ao pecador: o juízo é individual). A Igreja católica, enquanto tal, não pode ser ferida pelo pecado de nenhum de seus membros; menos ainda pode ser atingido o depósito da fé.

2.6 Um desvio antropocêntrico na noção de pecado. No final do art.13 da Gaudium et Spes, lê-se que “o pecado rebaixa o homem, impedindo-o de alcançar sua própria plenitude (a plenitude consequande cum repellens)”, em vez de impedi-lo de alcançar sua própria salvação. Como se a plenitude do homem e a ausência de contradição consigo mesmo, fossem o valor principal (e o constitutivo, além disso!) da noção de pecado, que é, ao contrário, uma ofensa a Deus pela qual merecemos ser castigados (inclusive com a condenação eterna: verdade de fé, nunca recordada pelo Concílio em nenhum de seus textos).

2.7 A atribuição à santa Igreja de uma nova missão que não corresponde a nada do que sempre foi ensinado: realizar a unidade do gênero humano (cf. supra, sobre o discurso de inauguração de João XXIII). A Lumen Gentium afirma que a “Igreja de Cristo” é “um sinal e um meio de operar a união íntima com Deus e a unidade de todo o gênero humano ( LG, 1).

De acordo com essa perspectiva, cabe à Igreja o dever de contribuir para o processo de unificação do mundo, fazendo-o alcançar “a plena unidade em Cristo”(ibid). Isso nada tem de surpreendente, visto que “a promoção da unidade (do gênero humano) corresponde à missão íntima da Igreja” (Gaudium et Spes, 42). Mas está claro que não se trata de uma unidade em função da salvação das almas (que se conseguiria, naturalmente, mediante a conversão ao catolicismo). Visa-se à “união íntima com Deus” de todo o gênero humano enquanto tal. E esta idéia se introduz no texto do concílio graças a uma reinterpretação heterodoxa, característica da “Nouvelle Théologie”, dos dogmas da incarnação e da redenção – denominada “objetiva”. Nesta linha se concretiza a salvação em todos os homens devido à encarnação, independentemente de sua consciência e vontade, como se fossem cristãos “anônimos” (v. supra, sobre o discurso de inauguração de João XXIII, e também infra, sec.5).

A “missão íntima da Igreja”, entretanto, é aquela indicada por Nosso Senhor ressuscitado: “Ide, pois, ensinai a todos os povos , batizando-os ....” (Mt. 28,19): quer dizer, converter a Cristo o maior número possível de almas antes da Parusia, sem se preocupar com a realização da unidade do gênero humano, ideal importado da filosofia iluminista e professado com devoção particular pela maçonaria, quimérico e anticristão até a medula, porque constitui uma forma de divinização do homem, que se enaltece a si próprio e se contempla na unidade.

2.8 O conceito segundo o qual “também a Bem Aventurada Virgem progrediu na peregrinação da fé” (Lumen Gentium, 58) como se ela não soubesse desde a Anunciação que Jesus era o Filho de Deus, da mesma substância que o Pai, o Messias profetizado.

2.9 Uma outra idéia sobre a Igreja, gravemente deficiente porque a reduz a uma dimensão sociológica, descritiva: mera “sociedade dos homens (societas hominum) que têm direito a viver na sociedade civil segundo as normas da fé cristã” (Dignitatis Humanae, 13). Sua natureza de societas genere et iure perfecta em função de sua instituição divina e do fim supremo a que tende é esquecida “de modo que sua potestas é muito superior a todas as outras, não podendo ser considerada inferior ao poder civil, nem submetida a ele de modo algum (Leão XIII, Immortale Dei,1885, Denz, 1865 e 3167). O Vaticano II tratou cuidadosamente de não ratificar esta doutrina tradicional do primado e da potestade indireta da Igreja sobre a sociedade civil e sobre o Estado.

3- Erros concernentes à Santa Missa

e à Sagrada Liturgia

3.0 A adoção da obscura noção “mistério pascal”, cavalo de batalha da nova teologia.

Cristo realizou a redenção principalmente pelo mistério pascal de sua bem-aventurada paixão, ressurreição dentre os mortos e gloriosa ascensão (Sacossantum Concilium, 5); donde se conclui que não foi principalmente pelo valor de sua crucifixão como sacrifício expiatório que se satisfez a justiça divina. Além disso, o concílio identifica a santa missa com o “mistério pascal”, visto que afirma ter a Igreja sempre se reunido, desde o princípio, para celebrar o mistério pascal (S.C, 6) e declara que “celebra o mistério pascal a cada oito dias” (S.C, 106).

Também afirma que “pelo batismo os homens são enxertados no mistério pascal de Jesus Cristo” (S.C., 6) e não, como outrora, que o batismo os faz entrar na santa Igreja, como se o mistério pascal fosse a mesma coisa que Igreja, corpo místico de Cristo. Trata-se de uma noção ambígua, indeterminada, irracional, que permite alterar o significado da redenção e da missa, ocultando a natureza sacrifical e expiatória desta última, dando prioridade à ressurreição, à ascensão, ao Cristo glorioso, contrariando o dogma de fé definido em Trento.

3.1 A definição, reticente e incompleta da santa missa como “banquete pascal no qual se recebe a Cristo”, e como memorial da morte e ressurreição do Senhor, (morte e ressurreição postos no mesmo plano), sem a menor menção ao dogma da transubstanciação nem ao caráter de sacrifício propiciatório da missa ( S.C., 47,109), é uma definição que “omite inteiramente a conversão de toda a substância do pão no corpo de Cristo e de toda a substância do vinho em seu sangue, artigo de fé do concílio de Trento, solenemente contido na profissão de fé”. Tal definição cai no caso da solene condenação lançada por Sua Santidade Pio VI em 1794: “ela é perniciosa, obscurece a exposição da verdade católica sobre o dogma da transubstanciação e favorece os hereges.Com tamanha omissão (a da transubstanciação), imprudente e temerária, esconde-se a verdade sobre um artigo de fé e cala-se uma voz consagrada pela Igreja, tendendo-se assim ao esquecimento desta, tratando-se o assunto como questão meramente escolástica” (Cost. Apost. Auctorem Fidei; Denz., 1529, 2629).

Além disso, essa definição introduz uma concepção errônea da Santa Missa, que é fundamento da nova liturgia conciliar, através da qual os erros da Nouvelle Théologie chegaram até os fiéis.

A índole protestante desta definição da santa missa deixa-se ver com ainda mais clareza no art. 106 do Sacossantum Concilium: “A Igreja celebra o mistério pascal a cada oito dias, no dia que é chamado com razão o dia do senhor, o Domingo. Neste dia os fiéis devem reunir-se em assembléia a fim de que, escutando a palavra de Deus e participando da Eucaristia, recordem a paixão, a ressurreição e a glória do Senhor Jesus e dêem graças a Deus, etc.”. O texto latino mostra, sem a menor sombra de dúvida, que o fim da santa missa constitui, para Jesus Cristo, memorial e louvor: christifidelis in unum convenire debent ut verbum Dei audientes et Eucharistiam participantes, memores sint (...) et gratias agant, etc. Cf. também, como prova adicional, Ad Gentes, 14: os catecúmenos participam da Santa Missa, ou seja, “assistem com todo o povo de Deus ao memorial da morte e ressurreição do Senhor” (aqui a Santa Missa é simpliciter o memorial da morte e ressurreição do Cristo, celebrado por todo o povo cristão: nem a mínima alusão ao sacrifício renovado de maneira incruenta para a expiação e o perdão de nossos pecados).

Nota:

Nos artigos citados já se encontra latente a definição da missa fornecida mais tarde pelo funesto artigo 7 do Institutio Novi Missalis Romani (1969), ainda vigente: “a ceia do Senhor, ou missa, é a Santa assembléia ou encontro do povo de Deus que se reúne sob a presidência do sacerdote para celebrar o memorial do Senhor”; uma definição que suscitou, na época, por seu evidente cunho herético, os protestos, tão angustiados quanto inúteis, de muitos fiéis e sacerdotes, assim como a famosa tomada de posição dos Cardeais Ottaviani e Bacci. Compare-se esta definição com a ortodoxa, contida no catecismo de S. Pio X: “O que é a Santa Missa? A Santa Missa é o sacrifício do corpo e do sangue de Jesus Cristo, que se oferece em nossos altares sob as espécies de pão e de vinho em memória do sacrifício da cruz. O sacrifício da missa é o mesmo que o sacrifício da cruz? O sacrifício da missa é substancialmente o mesmo que o sacrifício da cruz.”

3.2 A errônea promoção da assembléia eucarística, presidida pelo sacerdote, a centro da Igreja visível: “É, pois, a assembléia eucarística ( Eucharistica Synaxis) o centro da congregação dos fiéis, presidida pelo presbítero. Os presbíteros ensinam os fiéis a oferecer ao Pai a Vítima divina no sacrifício da missa e com ela a oferecer a própria vida” (Presbyterorum Ordinis, 5).

Assim, pois, a função dos sacerdotes na santa missa se reduz, ao que parece, à de “ensinar” (edocent) os fiéis a oferecer a vítima divina “em união” consigo próprios (mas o que significa, num tal contexto, “ensinar a oferecer a vítima divina?)”. Acrescente-se o silêncio completo sobre uma série de fatos: quem faz o oferecimento é antes de todos o sacerdote in personna Christi; trata-se de um oferecimento de homens pecadores; tal oferecimento se faz em expiação de nossos pecados e há de ser aceito por Deus. Por outro lado, manifesta-se também aqui a idéia de concelebração do sacerdote e do povo, condenada expressamente pelo magistério pré-conciliar (v. infra 3.3); uma idéia que se fundamenta na concepção protestante de que os fiéis são todos sacerdotes, em conseqüência do batismo. Não se pode fazer uma distinção autêntica entre “sacerdócio dos fiéis” e “sacerdócio hierárquico” (v. infra 4.3). Com relação a isto, convém dizer que a Igreja sempre condenou a exaltação indevida da “sagrada sinaxis”( última condenação na Mediator Dei: AAS 39 (1947) 562: Denz., 2300/3854).

3.3 O singular alcance que se atribui à “Liturgia da Palavra”, alcance que já não é mais limitado à homília, ao sermão, mas é considerado capaz de realizar ex sese a presença de Cristo na santa missa (!): “[Cristo] está presente com sua palavra, pois é ele quem fala quando se lê na Igreja a Sagrada Escritura”. (Sacrossantum Concilium, 7). A palavra é um dos sinais sensíveis “pelos quais a santificação é significada e realizada (!), de um modo particular para cada um”(S.C.,7; também S.C.,10).

A necessidade da pregação “se aplica especialmente à liturgia da palavra na celebração da Missa, na qual o anúncio da morte e da ressurreição do Senhor e a resposta do povo que escuta unem-se inseparavelmente (inseparabiliter uniuntur) com a oblação em que Cristo confirmou em seu sangue a Nova Aliança; oblação à qual unem-se os fiéis ou pelo desejo ou pela recepção do sacramento”(Presbyteroum Ordinis, 4).

Através desta passagem bastante tortuosa e de outras já citadas, constata-se com clareza que “a Escritura assim considerada não tem mais por fim próprio a instrução na fé, da qual deriva a experiência mística como conseqüência, mas tem como fim direto esta experiência mística, considerada capaz de produzir o alimento cognoscitivo da fé” (Fraternidade Sacerdotal S. Pio X, O problema da reforma Litúrgica. A missa do Vaticano II e de Paulo VI, Editora Permanência, 2001). Trata-se de uma concepção irracional e de origem protestante, sem conformidade com o depósito da fé, pois induz a considerar a santa missa como simples alimento espiritual dos fiéis.

3.4 A introdução da idéia equivocada de que o sacerdote e o povo concelebram a santa missa. Insinuação da noção luterana do “sacerdócio comum”: “[os fiéis] fortaleçam-se na mesa do Senhor, dêem graças a Deus, aprendam a oferecerem-se a si mesmo ao oferecerem a hóstia imaculada, não só pelas mãos do sacerdote, mas juntamente com ele, etc. ...”(SC,48, e infra, 43).

O texto citado parece reproduzir, confusamente, uma passagem da Mediator Dei onde lemos que “[os fiéis] oferecem o sacrifício, não só pelas mãos do sacerdote, mas de certo modo [quodamodo] também junto com ele.” O SC porém, omitiu a locução adverbial “de certo modo”, inserida na Mediator Dei precisamente para evitar interpretações equívocas. (cf. Si Si No No , (ed. italiana) de 30/09/2000, pág.2).

3.5 A desvalorização da denominada “missa privada”, sempre admitida pela Santa Igreja, que se celebra sem a presença e sem a participação ativa dos fiéis, “de maneira individual ou quase privada”; desvalorização reprovada expressamente por Pio XII na Mediator Dei (AAS,3 (1947), 556, 557; Denz., 2300/3853).

A desvalorização em questão verifica-se na exortação conciliar segundo a qual “sempre que os ritos, cada qual segundo sua natureza própria, admitam uma celebração comunitária, com a assistência e a participação ativa dos fiéis, deve-se inculcar sua preferência, na medida do possível, a uma celebração individual e quase privada.”(SC, 27) (Lutero mostrou-se particularmente hostil à “missa privada” e, fato estranho, atribuiu ao diabo a inspiração que recebeu para combatê-la.

3.6 A adaptação do rito à cultura profana (à índole e tradição dos povos, à sua língua, música e arte) mediante a criatividade e experiência litúrgicas (SC, 37, 38, 39, 40, 90, 119) e pela simplificação sistemática do próprio rito (SC, 21, 34) ( que vai de encontro ao ensino constante do magistério; segundo o qual a cultura dos povos é que se deve adaptar às exigências dos moldes católicos, nunca se fazendo concessões à criatividade, nem à experiência, nem a nenhum modo de sentir do homem secular).

3.7 A competência, nova e inaudita, concedida às conferências episcopais em matéria litúrgica, que compreende amplas faculdades de experimentar novas formas de culto (SC, 22, e 2, 39, 49). Isso é contrário ao ensino constante do magistério, que reservou sempre ao Sumo Pontífice toda a competência em tal matéria e foi sempre hostil a qualquer inovação no campo litúrgico; cf. Gregório XVI, Inter gravissimas, 3 de fevereiro de 1832, em A Liturgia, ed. Paoline, n.130.

4- Erros concernentes ao sacerdócio

4.0 Uma concepção errônea do sacerdote, rebaixado a uma função do “povo de Deus’’ com a qual se quer, arbitrariamente, identificar a Igreja (cf. supra, n. 2.4).

Com efeito, diz a Lumen Gentium que “... o povo de Deus não só reúne as gentes de diversos povos, mas também está integrado em si mesmo por funções distintas (ex variis ordinibus confletur). Isto porque há uma diversidade em seus membros (membra), seja segundo os ofícios(oficia), pois alguns desempenham o ministério sagrado(sacro ministério)para o bem de seus irmãos; seja segundo a condição e modo de vida, pois muitos no estado religioso, tendendo à santidade pelo caminho mais árduo, estimulam a seus irmãos com seu exemplo.” ( LG , 13)

O “ministério sagrado” é concebido como uma ordo do “Povo de Deus”, termo que expressa, literalmente, a idéia de uma classe, ordem ou estado, no seio de uma entidade mais vasta, constituindo não apenas uma de suas partes (segundo a mens que se impôs no concílio), mas também se identificando com uma de suas funções (termo sem equivalente em latim). A “função” de outrora, ao contrário, é desempenhada mediante oficia ou munera diferentes (Presbit. Ord., 2, 4 )

Trata-se de officium (ofício) e, por conseguinte, de munus (função), e não de potestas (poder, potestade) (este conceito é mencionado em várias passagens, porém fica ausente a noção específica de “função” sacerdotal). Na nova concepção, o padre já não é mais o sacerdote de Deus; em vez disto, tornou-se sacerdote do povo de Deus, que o legitima na qualidade de “função” sua. Isso contraria toda a Tradição e a constituição divina da Igreja (cf. S. E. Mons. Bernad Fellay, La crisi del sacerdozio, bilancio del Concilio Vaticano II ( A crise do sacerdócio, balanço do Concílio Vaticano II ) : conferência feita no IV Congresso Internacional de Si Si No No, Roma, 3-5 de agosto, 2000. ) .

4.1 A afirmação, contrária à verdade histórica testemunhada pela Tradição e pelo Novo Testamento, segundo os quais Nosso Senhor elegeu como ministros, no princípio, alguns dentre os fiéis: “Mas o próprio Senhor, querendo fazer dos cristãos um só corpo, no qual todos os membros não exercem a mesma função (Rom. 12, 4) ..., constituiu alguns deles ministros, e estes, (inter fideles... quosdam instituit ministros) receberam o poder sagrado da ordem, para oferecer o sacrifício e perdoar os pecados, e desempenharam publicamente, em nome de Cristo, a função sacerdotal em favor dos homens (PO, 2 cit.).

Pelo texto citado a transmissão do “poder da ordem” se legitima pela exigência de unidade da sociedade dos fiéis; pretende fazê-la depender de uma presumida “comunidade” ou “povo de Deus”. Mas Nosso Senhor não tirou seus ministros da “sociedade dos fiéis”; ao contrário, escolheu primeiro seus ministros (os apóstolos) e em seguida os formou para que eles formassem os fiéis. Elegeu seus ministros antes mesmo que existisse uma “sociedade de fiéis”. Não começou a formar a milícia cristã recrutando os soldados rasos: começou pelos oficiais, a fim de que formassem os soldados (como convém a todo exército bem organizado).

4.2 A equiparação ilegítima do sacerdócio propriamente dito (chamado “ministerial” ou “hierárquico” com o “sacerdócio comum dos fiéis”, no art. 10 da Lumen Gentium.

Este documento afirma que “o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico ordenam-se um ao outro [ad invicem ordinantur], ainda que cada um participe de forma particular ao Sacerdócio único de Cristo. Sua diferença é essencial [essentia], não só gradual...” (LG, 10 e também 62). Desta maneira põe-se no mesmo plano as duas formas do “sacerdócio único de Cristo”. Não se fala de “subordinação”, mas de “ordenação recíproca”: trata-se de duas funções evidentemente paritárias do “sacerdócio único de Cristo”. Tal equiparação, contrária ao depósito da fé, parece esconder uma subordinação do sacerdócio hierárquico aos dos fiéis que, para o concílio, constitui o “povo de Deus” no sentido próprio do termo. Por fim, nunca se explica a diferença entre “essencial” e “gradual” dos dois sacerdócios: ela permanece como simples enunciado verbal.

4.3 A insuficiente definição do sacerdote, do padre. Contempla-se principalmente a qualificação dos presbíteros (presbyteri) como “cooperadores do bispo” (PO,4): “O ministério [officium] dos presbíteros, por estar unido à ordem episcopal, participa à autoridade [autoritatem] com que Cristo mesmo forma, santifica e rege seu corpo” (PO, 2; v. também LG, 28).

O Vaticano II parece querer “embutir”, permitam-nos a expressão, a figura do sacerdote no denominado “povo de Deus”, suprimindo o mais possível, toda a diferença entre ele e os fiéis e, considerando-o sobretudo como cooperador subordinado ao bispo.

4.4 A afirmação errônea, contrária a toda a tradição e à sentença explícita do Concílio de Trento (Ses. XXIII, cap. I; Denz., 957/1764), segundo a qual o primeiro lugar entre as “funções” sacerdotais cabe à pregação, e não à celebração da Santa Missa: “... os presbíteros, como cooperadores dos bispos, têm como obrigação principal [primum habent officium] a de anunciar a todos o evangelho de Cristo” (PO, 4).

O catolicismo, ao contrário, define o sacerdócio primeiramente pelo “poder de consagrar, oferecer e administrar o corpo e o sangue do Senhor”, e, em segundo lugar, pelo poder de “perdoar ou reter os pecados” (Trento, cit.). A pregação não é necessária para a definição do sacerdote. Pensemos nos grandes santos que se dedicaram principalmente ao ministério da confissão, por ex. São Leonardo de Pádua, ou também o Santo Pe. Pio de Pietralcina: quantos sermões puderam eles pronunciar durante a vida? Poucos, na verdade.

4.5 A desvalorização do celibato eclesiástico em PO, 16, onde está escrito que “a continência perfeita e perpétua para o reino dos céus, recomendada por Nosso Senhor (cf. Mt. 19,12) ... sempre foi tida em alta estima pela Igreja, especialmente para a vida sacerdotal ... Mas não é exigida pela natureza do sacerdócio [non exigitur quidem sacerdocio supte natura], como vemos na prática da Igreja primitiva” (seguem as referências, em nota de pé de pág., a I Timóteo 3,2-5 e a Tit 1,6).

Que a natureza do sacerdócio não exija o celibato eclesiástico é falso por ser contrário a toda a Tradição, que interpretou sempre neste sentido a “recomendação” de Cristo em Mt. 19,12. Tal era a opinião da Igreja primitiva, evidente também em São Paulo, que exalta o celibato virtuoso, considerando-o o melhor estado para “se dedicar às coisas do Senhor”, tanto para os homens como para as mulheres (I Cor. 7,1; 29 ss.; 32 ss.). Que o celibato não seja necessário para a natureza do sacerdócio significa somente que um homem casado pode ser ordenado Sacerdote, mantendo o estado jurídico matrimonial, mas não o seu uso, separando-se de sua mulher. Não significa de maneira alguma que os padres podem casar-se, ter mulher e filhos, como os ministro heréticos e cismáticos. As passagens de I Timóteo 3,2 e Tito 1,6, em que São Paulo escreve que se alguém deseja o episcopado deve ser, entre outras coisas, “marido de uma só mulher”, foram interpretadas no sentido de que estabeleceram o requisito, para bispos e padres, de não serem viúvos casados em segundas núpcias.

4.6 A designação repetida do sacerdócio como “presidente de assembléia”, como se semelhante nota fosse a essencial para definir a função do sacerdote na Santa Missa: cf. Sacrosantum Concilium, 33; Lumen Gentium, 26 (“presidência sagrada do bispo”); Presbyterorum Ordinis,2 (o presbítero “convoca e congrega o povo de Deus” na Santa Missa para que os fiéis possam “oferecer-se a si próprios a Deus”); Presbyterorum Ordinis, 5.

5- Erros concernentes à Encarnação, à Redenção, ao conceito do homem

5.0 Um conceito falso da encarnação.

Afirma-se que o “filho de Deus por sua encarnação uniu-se de certo modo com todo homem [cum omni homine quodammodo se univit]” (Gaudium et Spes, 22), como se a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, ao encarnar-se num homem concreto, num indivíduo que possui existência histórica, tivesse se unido a todos os demais homens, e como se cada homem, pelo simples fato de ter nascido, se achasse unido a Cristo, mesmo sem sabê-lo.

Desta maneira, se deforma a noção da Santa Igreja, que não é mais o “Corpo místico do Cristo” e portanto daqueles que crêem em Cristo, dos batizados: o “povo de Deus”, que é a Igreja (do “Cristo”), tende a coincidir, sic et simpliciter, com a humanidade.

5.1 Um falso conceito de Redenção.

Escreve-se, com efeito, que “o Filho de Deus, encarnado na natureza humana, redimiu o homem e transformou-o em nova criatura (cf. Gal 6, 15; II Cor 15,17), superando a morte com sua morte e ressurreição.”(Lumen Gentium, 7).

A Redenção aqui não se apresenta corretamente, isto é, como uma possibilidade oferecida a cada homem pela encarnação e o sacrifício na cruz de Nosso Senhor, possibilidade que se perde para sempre caso o homem não se torne cristão de verdade (ou não queira tornar-se), excetuando-se os invencivelmente ignorantes, cujo número só Deus conhece, e nos quais a graça age mediante o batismo de desejo implícito. Pretende-se afirmar aqui, ao contrário, que todo homem já foi redimido, visto que o homem transformou-se em “nova criatura” (não porque tenha-se feito cristão com a ajuda do Espírito Santo e sob a moção da graça atual, mas simplesmente pelo advento da encarnação do Verbo, assim como da “morte e ressurreição de Cristo). Trata-se da conhecidíssima teoria dos cristãos anônimos, ensinada outrora por Blondel, desenvolvida mais tarde por de Lubac e sobretudo por Karl Rahner (v. supra, discurso de João XXIII e parágrafo 2.3 do presente resumo). Constitui um erro doutrinal gravíssimo, pois prega que a justificação pessoal, subjetiva e individual, verificou-se no passado, sem participação alguma da vontade do justificado, de seu livre arbítrio e, por conseguinte, sem necessidade da conversão, nem da fé, nem do batismo ou das obras. Uma redenção garantida a todos, como se a graça estivesse ontologicamente presente em todos os homens enquanto tais. Nem Lutero chegou a tanto!

Esta falsa doutrina nega na verdade o pecado original, pois o dogma de fé nos ensina que os homens não possuem a graça ao nascer (por terem herdado o pecado original, com o qual vêm ao mundo).

5.2 A conseqüente e indevida exaltação do homem enquanto tal, incompatível com a fé católica. Afirma-se que Cristo ao encarnar-se “manifesta plenamente o homem ao próprio homem e descobre-lhe a sublimidade de sua vocação”, elevando a “natureza humana” a uma “dignidade sem igual” (GS,22), como se Nosso Senhor não tivesse vindo salvar-nos do pecado e da condenação eterna, mas só para nos manifestar plenamente nossa “dignidade sem igual”, inerente ao homem por natureza.

Esta declaração conciliar contradiz abertamente o ensino constante da Igreja, segundo o qual Jesus veio ao mundo para salvar o homem, e não para exaltá-lo; veio “manifestar-lhe plenamente” que é pecador e que será condenado eternamente por sua soberba se não se arrepender e se converter a Ele. Justamente o contrário de “uma dignidade sublime” a ser redescoberta!

5.3 O manifesto erro teológico contido no artigo 24 da Gaudium et Spes onde se lê que o homem é a “única criatura terrestre à qual Deus amou por si mesma [hominem, qui in terris sola creatura est quam Deus propter seipsam voluerit]”, como se o homem possuísse um valor tal que tivesse induzido Deus a criá-lo (Romano Amerio, Iota Unum, Salamanca, 1994).

A virada antopocêntrica do Vaticano II torna-se palpável aqui. Trata-se de uma asserção nitidamente absurda e incompatível com a própria noção da criação divina a partir do nada, que é dogma de fé. Deus, justiça infinita, criou todas as coisas, o homem inclusive, “para si mesmo”, como sempre se ensinou. Criou tudo para sua própria glória, e não por causa de algum valor intrínseco que possuíam as criaturas, independentemente de Deus. Tamanho desvio doutrinal altera também o significado exato que se deve atribuir à criação. Altera, além do mais, o significado verdadeiro que se deve atribuir aos mandamentos cristãos de amar o próximo como a si mesmo e de nos considerarmos todos irmãos. Tais mandamentos já não estão mais sendo justificados pelo amor de Deus, que quer de nós esta caridade para com o próximo (dado que somos todos pecadores), nem pela descendência comum d’Ele, Deus Pai, mas pela proclamação de uma dignidade superior do homem enquanto homem.

A Igreja nunca negou a dignidade superior do homem com relação às criaturas inferiores a ele, dignidade que deriva de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus. Mas essa dignidade perdeu seu “sublime” caráter primitivo, derivado da semelhança originária com Deus, por causa do pecado original, que despojou o homem de tal semelhança e da graça santificante que o torna capaz de conhecer e amar sobrenaturalmente a Deus e, portanto, de gozar da visão beatífica. No sentido católico, a dignidade do homem não pode ser considerada uma característica ontológica, que obrigue a respeitar qualquer decisão humana (esta é a concepção laicista), porque tal dignidade depende da vontade reta, orientada para o Bem, e constitui, consequentemente, um valor relativo e não absoluto.

5.4 Um conceito errôneo da igualdade entre os homens.

Fundado na falsa concepção de redenção, afirma que sendo todos os homens redimidos por Cristo, gozam da mesma vocação e destino divinos; é necessário, por isso, reconhecer cada vez mais a igualdade fundamental de todos. (fundamentalis aequalitas inter omnes magis magisque agnoscenda est) (GS, 29).

A Igreja, ao contrário, sempre ensinou que os homens são todos iguais perante Deus, mas (certamente) nunca acreditou que todos os homens estivessem objetivamente redimidos, salvos pela encarnação!

Essa igualdade concebida de modo tão pouco ortodoxo tornou-se logo fundamento da “dignidade da pessoa”, em nome da qual o concílio defendeu uma liberdade religiosa de tipo protestante baseada na liberdade de consciência, isto é, na opinião individual em matéria de fé, e não no princípio católico de autoridade (v. infra, sessão 11).

5.5 A desvalorização e obscurecimento da noção de pecado original.

A Gaudium et Spes afirma, no artigo 22 cit., que Cristo “devolveu à descendência de Adão a semelhança divina, deformada pelo primeiro pecado [a primo peccato deformatam]”. Mas não é essa a doutrina católica, que sempre ensinou que a semelhança de outrora ficou perdida para Adão e sua descendência, como conseqüência do pecado original. Não se trata de simples deformação! Declarar que se conservou a semelhança, ainda que de maneira imperfeita, significa abrir caminho à concepção heterodoxa da encarnação que acabamos de ver (J. Dormann, Declaratio Dominus Iesus und die Religionem, in Theoligisches Katholische Menateschrift, nov-dic. d e 2000, parágrafos 445-460).

VI- Erros concernentes ao Reino de Deus.

6.0 Alteração da noção tradicional da “dilatação” ou “crescimento” do reino de Deus na terra por obra da Igreja visível.

Efetivamente, tal “dilatação” ou “extensão” se confia ao “povo de Deus, que é a Igreja”, a qual, “introduzindo [inducens] este reino, não subtrai a nenhum povo qualquer bem temporal [bonum temporale]. Ao contrário, favorece e assume [fovet et assumit] no que têm de bom, todas as riquezas, recursos e costumes, [facultates et copias moresque populorum]; ao recebê-los, purifica, fortalece e eleva-os” (Lumen Gentium, 13).

Aqui se introduz um elemento bastardo: o “bem temporal dos povos”, como parte constitutiva do “povo de Deus” (elevada e purificada) e, portanto, do reino de Deus que se realiza na terra.

Trata-se de uma noção ambígua e inaceitável, porque nesse “bem temporal” integram-se, não só os “costumes”, mas, além deles, as “riquezas” e os “recursos”, isto é, os bens materiais de um povo. Em outras palavras, os bens materiais, elevados e purificados (!?), passam a fazer parte do reino de Deus: conceito absurdo, que evidencia uma visão naturalista do reino de Cristo, contrária ao depósito da fé.

6.1 A correlativa e inconcebível interpretação coletivista do próprio reino.

Segue-se de LG 13 que a individualidade coletiva de cada povo, com seu ambíguo “bem temporal”, faz parte do “povo de Deus” (da Igreja), de maneira que pode ser “introduzida” no Reino que se realiza no mundo.

6.2 A mal compreendida contribuição dos leigos na “dilatação” do reino de Deus na terra.

Essa contribuição terá de se efetuar “de modo que o mundo fique imbuído (imbuatur) do espírito de Cristo” (LG 36) (note-se o termo “imbuir-se”: vago, muito distante da idéia de conversão).

Esta contribuição é entendida, inevitável e erroneamente, como contribuição para um progresso sobretudo material, sob a bandeira da cultura leiga ou “civil”, que deve fazer avançar a liberdade humana e cristã por todo o mundo: “Procurem, pois, seriamente (os seculares), que por sua competência ... os bens criados [bona creata] se estendam ao serviço de todos e de cada um dos homens e se distribuam melhor entre eles ... mediante o trabalho humano, a técnica e a cultura civil [humano labore, arte technica, civilique cultura]; e que a seu modo estes leigos conduzam os homens ao progresso universal na liberdade cristã e humana”(LG 36).

Aqui aparece outro elemento estranho do naturalismo evocado no parágrafo 6: o mito laicista do progresso, com sua exaltação característica do trabalho, da técnica, da cultura “civil”, do igualitarismo, da liberdade (“humana e cristã”, seja qual for o significado desta expressão).

6.3 A incrível afirmação segundo a qual Cristo ressuscitado “já opera pela virtude de seu espírito no coração do homem, não somente despertando a aspiração do século futuro, mas alentando, purificando e robustecendo também, através desse desejo [sed eo ipso], os generosos propósitos com os quais tentamos tornar a vida mais humana e submeter a terra a este fim” (Gaudium et Spes, 28).

O texto perece querer dizer que pelo próprio fato de nos inspirar o desejo da glória futura, o Espírito Santo nos inspira também desejos de felicidade terrestre, evocados pela expressão “tornar nossa vida mais humana” (!).

6.4 A afirmação incompreensível segundo a qual “o mistério pascal aperfeiçoa a atividade humana”.

Define-se a Santíssima Eucaristia como “aquele sacramento da fé no qual os elementos da natureza, cultivados pelo homem [naturae elementa, ab hominibus esculta], se convertem [convertuntur] no corpo e sangue gloriosos, num banquete [coena] de comunhão fraterna que é pregustação do banquete celestial” (GS, 38 cit.).

De acordo com seu estilo, o Vaticano II não menciona a transubstanciação, e insinua uma concepção protestante da santa missa. Mas, de que modo o “mistério pascal” aperfeiçoaria a atividade humana? Devido ao fato de que os que se convertem no corpo e sangue gloriosos são “elementos” da natureza, cultivados pelo homem”(!). Ao cultivar a terra, a atividade do homem produz o pão e o vinho, que se “convertem” depois no corpo e no sangue, etc.. Uma contribuição deste tipo torna perfeita a atividade do homem!

Há motivos mais do que suficientes para ficarmos estupefatos diante de um tal raciocínio que chega a parecer ridículo. Quando foi que o magistério ensinou algo semelhante? Quando buscaram os demônios conexões tão disparatadas e enganosas? Não obstante, tais disparates conduzem a um fim determinado: insinuar a falsa idéia de que a atividade do homem participa de algum modo na mudança (mais exatamente: transubstantiatio) do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo (mudança que, na realidade, é obra somente do sacerdote).

Tal idéia também se encontra na “liturgia eucarística” da missa do Novus Ordo: “Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, por este pão, fruto da terra e do trabalho do homem, que recebemos de vossa generosidade e agora vos apresentamos: ele será para nós pão de vida”.

6.5 O famoso artigo 39 da Gaudium et Spes, na conclusão do capítulo III dedicado à “atividade humana no mundo” (GS, 33-39), propõe aparentemente a visão tradicional sobre a “terra nova” e os “novos céus”. Mas o que ele nos oferece, na verdade, é a perversão da concepção do reino de Deus ensinada pela Igreja.

Há aqui um esboço da idéia de uma salvação coletiva da humanidade e até “de todas as criaturas” (cf. Rom 8, 19-21) que Deus criou pensando no homem” (GS ibid.). É uma insinuação de que todas as criaturas, sem distinção, poderão entrar no reino de Deus, inclusive os destinados ao serviço e à utilidade do homem, como os animais(!).

O artigo 39 afirma, a seguir, que a “nova terra” já está, figurada na “nossa terra” pois é aqui onde “cresce o corpo da nova família humana, que de certo modo vislumbra o século novo” (GS ibid.).

Nota-se que a prefiguração do reino não é feita pela Igreja militante, como ensina a ortodoxia católica, mas pelo “crescimento” do “corpo da família humana”: a humanidade que cresce graças ao progresso universal, à liberdade “humana e cristã”, etc. (LG, 13 e 36; GS, 30,34 e 38 cit.). O reino de Deus, que se realiza parcialmente neste mundo já não está constituído pela Igreja, mas pela humanidade(!). A humanidade (“nova”) é o sujeito que realiza o reino e que um dia nele entrará em bloco. E de fato, segundo conclui o artigo 39 da GS, voltaremos a encontrar no reino em questão, ainda que “limpos de toda mancha, iluminados e transfigurados”, os “bens”e os “frutos” que “tenhamos propagado pela terra no Espírito do Senhor e de acordo com seu mandato”; uns bens profanos até a medula (como “a dignidade humana, a união fraterna e a liberdade”), e além disso, “todos os frutos excelentes da natureza”.

Trata-se de uma visão naturalista, milenarista (que recorda a religião da humanidade), estranha por completo ao catolicismo, numa nítida antítese com a realidade exclusivamente sobrenatural do reino de Deus e de sua consumação no fim dos tempos (revelada por Nosso Senhor e sempre mantida pela Igreja).

Nota:

GS, 39 não vacila em afirmar que “o progresso temporal é de grande interesse para o reino de Deus”, e remete à uma nota em pé de página à encíclica Quadragesimo anno de Pio XI (AAS 23 [1931], 207), como se o presumido valor salvífico do “progresso temporal” tivesse sido proclamado por esse papa. Mas nem no parágrafo 207, nem em nenhuma outra parte da encíclica se constata a existência de uma afirmação de tal gênero.

VII- Erros concernentes ao matrimônio e à condição da mulher.

7.0 Uma variação na doutrina do matrimônio, contrária ao ensinamento constante da Igreja.

A instituição matrimonial se concebe agora principalmente como “comunhão íntima de vida e amor” dos esposos (GS 48), cujo fim próprio são os filhos. Por sua própria natureza, a instituição do matrimônio e o amor conjugal estão ordenados à procriação e à educação dos filhos, que constituem sua coroa [ iisque veluti suo fastigia coronantum] (GS cit.).

Note-se bem: o matrimônio e o amor conjugal não têm sua razão de ser na procriação e na educação da prole, que passam a ser apenas uma “coroa”. Deste modo, o auxílio mútuo, intrínseco ao matrimônio, passa de fim secundário a primário, enquanto que o autêntico fim primário a procriação, se vê relegado a segundo lugar porque se converte em conseqüência ou coroação do valor personalista do matrimônio.

7.1 Uma definição do amor conjugal, no artigo 49 da GS, que abre a porta ao erotismo no matrimônio, contra toda a tradição da Igreja.

O Concílio põe em relevo que “muitos contemporâneos nossos (?) exaltam também o amor autêntico entre marido e mulher...” (esta frase surpreende pela generalidade vaga, evidência e inutilidade). E prossegue: “este amor, por ser eminentemente humano [amor utpote eminenter humanus] – sendo voluntário, de pessoa para pessoa – abrange o bem da pessoa toda e, portanto, enriquece e valoriza com dignidade especial as manifestações do corpo e do espírito {ideoque corporis animique expressiones] e as enobrece como elementos e sinais específicos da amizade conjugal”. Em língua vernácula (em italiano, por ex.), lê-se “este amor, por ser um ato eminentemente humano”, em vez de “este amor, por ser eminentemente humano”, o que confere um significado equívoco a todo o trecho citado. Mas ainda que não se fale em “ato”, subsiste o fato de que tal amor, por ser “eminentemente humano”(o que significa isso?) “enriquece e dá valor às manifestações do corpo”, etc. A expressão “manifestações do corpo” só pode estar se referindo ao conjunto dos atos com que os cônjuges chegam ao “ato conjugal”. Ora, tais atos, tais “manifestações se justificam em bloco, exclusivamente enquanto expressões corpóreas e, por conseguinte, sensuais do amor conjugal, isto é, por seu valor erótico. A Igreja, ao contrário, tem ensinado sempre que os atos em questão são admitidos (e só dentro de seus justos limites) unicamente como atos que favorecem o abraço conjugal, entendido como ato natural, voltado para a procriação. São admitidos, pois, em relação ao fim primeiro do matrimônio, que é a procriação, e não para satisfazer em si o amor conjugal, que se inclui, a título de remedium concupiscenciae, no fim secundário do matrimônio, e por isso limitado pelo fim primário do mesmo (Castii Connubii DZ 2241 / 3718). Além disso, atribuir “dignidade especial” e “nobreza” aos atos das relações íntimas entre os cônjuges parece ridículo e chega até a ser inconveniente, mas, de qualquer modo, não está conforme o sentido católico do pudor.

7.1 As afirmações: “Deus não criou o homem solitário: desde o princípio os fez homem e mulher”(Ge. 1, 27) e “esta sociedade de homem e mulher é a primeira expressão da comunhão entre os humanos” (GS par. 12 e 50) estão formalmente corretas, mas são incompletas. Portanto dão margem ao erro doutrinal porque, ao omitir o que se diz no Gen. 2, 18 ss., geram a falsa impressão de que Deus criou o homem e a mulher ao mesmo tempo, tornando-os, por isso, completamente iguais. O Gênesis, no entanto, resumiu primeiro a obra de Deus (Gen 1, 27 cit.) e logo expôs detalhadamente como as coisas se sucederam na realidade (Gen. 2, 18 ss). Na exposição inicial, o hagiógrafo, inspirado pelo Espírito de Verdade, colocou o homem e a mulher no mesmo plano, para deixar claro que ambos foram criados por Deus à sua imagem e semelhança, e que portanto, são iguais perante o Criador. “E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, e os criou homem e mulher” (Gen. 1, 27 cit.); mas logo esclareceu que a mulher foi criada depois do homem, de uma de suas costelas, para ser sua companheira: “E disse Yaveh Deus: “não é bom que o homem esteja só. Façamo-lhe uma companheira semelhante a ele”(Gen. 2,18). Semelhante, mas não igual, como nos explica São Paulo, falando em nome do Senhor, na famosa passagem da I Cor. 11, 3 ss., nunca citada pelo Vaticano II e hoje relegada ao esquecimento: “Porém quero que saibais que Cristo é a cabeça do homem; e o homem é a cabeça da mulher; e Deus a cabeça de Cristo... O homem na verdade não deve cobrir sua cabeça, porque é a imagem e a glória de Deus, mas a mulher é a glória do homem [se bem que sendo sempre imagem de Deus, não do homem, porque, na sua diferença e sua subordinação, ela é ordenada a Deus e à salvação, não ao homem (n. do trad.). Porque o homem não foi feito da mulher, mas a mulher do homem. E o homem não foi criado por causa da mulher, e sim a mulher por causa do homem... Contudo, nem o homem existe sem a mulher, nem a mulher sem o homem, no Senhor. Porque assim como a mulher foi tirada do homem, também o homem é concebido pela mulher; mas todas as coisas vêm de Deus”.

Toda a pastoral do Vaticano II sobre o matrimônio (GS par. 47 –52) evita mencionar as diferenças naturais entre os sexos, estabelecidas por Deus, e se rege pela idéia não católica de uma igualdade natural e total entre os cônjuges, considerados como “pessoas” que se exprimem livremente na “comunidade do amor” matrimonial. O ensinamento de São Paulo e da Igreja ao longo dos séculos (segundo o qual é o homem o chefe natural da mulher e, por conseguinte, da família), é inteiramente ignorado, assim como o princípio de que a vocação fundamental da mulher é a de ser, in primis, esposa e mãe, ter filhos e educá-los cristãmente.

7.3 Abertura aos dogmas preliminares do feminismo , forma de subcultura contemporânea particularmente perversa, destinada, em nome da igualdade, à destruição do matrimônio e da família, à exaltação da libertinagem e do homossexualismo.

Essa abertura se manifesta no reconhecimento implícito da absurda aspiração das mulheres de nosso tempo à “igualdade de direito e de fato com o homem”(GS par. 9), no reconhecimento implícito do direito da mulher de abraçar o estado de vida que prefira, porque constitui um dos supostos “direitos fundamentais da pessoa”(GS par. 29), no reconhecimento de um pretenso direito de serem educadas numa “cultura humana e civil, conforme a dignidade da pessoa”(GS par. 60), na aceitação da suposta necessidade de uma “legítima promoção social da mulher”, (GS par. 52), e no desejo, por último, de uma “maior participação” das mulheres “nos campos do apostolado da Igreja ( Apostolicam Actuositatem 9), não por uma necessidade de caráter religioso, mas pelo mero fato de que “em nossos tempos as mulheres participam cada vez mais ativamente de toda a vida social” (id.). Participação mais ativa provocada, em grande parte, pelos falsos “dogmas” que acabamos de ver, condenados por Pio IX, na encíclica Quadragesimo anno como “desordem gravíssima a ser eliminada a todo custo” [pesimus vero... auferendus], porque subtrai às “mães de família” os deveres que lhe são próprios (AAS 23 (1931) 2001).

VIII- Erros concernentes aos heréticos e cismáticos (os chamados “irmãos separados”).

8.0 A tese doutrinalmente perniciosa e sem fundamento histórico, segundo a qual “não poucas comunidades [haud exugya]” se separaram da plena comunhão com a Igreja católica “às vezes por responsabilidade de ambas as partes” (Unitatis Redintegratio,3), ou seja: caíram na heresia e no cisma por causa dos eclesiásticos católicos.

8.1 A afirmação “mas os que agora nascem e se nutrem da fé de Jesus Cristo dentro dessas comunidades [heréticas e cismáticas ] não podem ser acusados de pecado de divisão” (UR, 3).

A afirmação é teologicamente errada, já que o “pecado de divisão” se consuma ainda hoje, quando o cismático e herético, que “vive” não da “fé em Cristo”, mas da doutrina de sua seita, adere a estas doutrinas conscientemente com sua inteligência e sua vontade. Assim, ao chegar à idade adulta, ele passa do estado de herético e cismático material, (aquele que está no erro de boa fé) ao estado de herético formal (aquele que se recusa por um ato positivo pessoal, a submeter-se à doutrina revelada por Cristo e à autoridade instituída por Ele).

8.2 “Os que crêem em Cristo e receberam validamente o batismo se acham em certa comunhão, ainda que imperfeita, com a Igreja Católica [quadam communione etsi non perfecta]” (UR, 3).Os hereges e cismáticos “estão verdadeiramente incorporados à Igreja Católica pelo batismo [batismate appositi], apesar de estarem separados de sua plena comunhão” (UR, 4).

Ambas afirmações contradizem a Tradição universal da Igreja, reafirmada por Pio XII na Mystici corporis: “entre os membros da Igreja só se hão de contar de fato os que receberam as águas regeneradoras do batismo e professam a verdadeira fé, e sem que se tenham separado miseravelmente deste corpo, nem tenham sido dele afastados devido a culpas gravíssimas pelas legítimas autoridades.” (Denz, 2286). E isto vale para todos os heréticos e cismáticos públicos, inclusive os de boa fé (heréticos e cismáticos materiais).

Estes últimos, no entanto, diferentemente dos heréticos e cismáticos formais, são, por sua disponibilidade de professar a verdadeira fé na verdadeira Igreja (votum Ecclesiae), “ordenados”, “por um certo desejo inconsciente, ao Corpo místico do Redentor” e, se bem que se encontrem fora de entidade visível deste corpo, podem pertencer-lhe de modo invisível e chegar assim à justificação e à salvação. Entretanto, ficam “privados desses numerosos dons e ajudas celestes às quais só se tem acesso na Igreja Católica.” Foi por isso que Pio XII, como seus predecessores, os convidaram “a favorecer os movimentos interiores da graça e saírem de seu estado, no qual não podem estar seguros de sua salvação” “Que entrem então na unidade católica” (AAS 35 (1943) 242-243; Denz., 2290/3821).

Note-se a falsidade da frase seguinte: “Não obstante, justificados pela fé no batismo (cf. Conc. Florentino, sec. 8 (1439), Decr. Exultate Deo: Mansi, 31, 1055 A), [os “irmãos separados”] ficam incorporados a Cristo e, podem receber a justo título o nome de cristãos” (UR, 3). Trata-se de uma insinuação de que os católicos “ficam incorporados a Cristo” em virtude do batismo, e podem ser contados entre os membros da Igreja independentemente da profissão da verdadeira fé e da obediência aos legítimos pastores. Tal frase é fruto da má interpretação de uma passagem do concílio de Florença (1439), à qual se faz referência, extraída do famoso decreto pro Armenis, que restabeleceu a unidade com a Igreja armeniana. Mas o decreto em questão esclarece como os católicos devem entender cada um dos sete sacramentos, sem fazer a menor referência ao batismo dos heréticos, nem a seu significado: “O primeiro lugar entre os sacramentos é ocupado pelo santo batismo, que é a porta da vida espiritual, pois por ele nos fazemos membros de Cristo e do corpo da Igreja [per ipsum enim membra Christi ac de corpore efficimur Ecclesiae]” (Denz., 696 e 1314). Os que ficam aqui “incorporados” a Cristo, à Igreja, são os católicos, não os heréticos nem os cismáticos.

8.3 A ilustração, em Lumen Gentium, 8 (v. supra 2.0), do falso conceito segundo o qual o patrimônio de valores dos “irmãos separados” compreende elementa plura sanctifiactionis et veritatis (“muitos elementos de santificação e de verdade”), e ainda que se encontre “fora do recinto visível da Igreja católica”, “pertence por direito à única Igreja da Cristo” (UR, 3).

Esses “elementos de santificação e de verdade” seriam: “a palavra de Deus escrita, a vida da graça, a fé, a esperança, e a caridade e alguns dons interiores do Espírito Santo” (ibid. 3).

É impossível compreender que a “vida da graça” e as três virtudes teologais (fé, esperança e caridade) se conservem em comunidades heréticas e cismáticas, rebeldes à autoridade da única e legítima Igreja de Cristo. Aqui se fala de “comunidades”, de organismos estranhos e opostos à única Igreja de Cristo, não de indivíduos (para os quais, cf. supra, 8.1 e 8.2). Além disso, gostaríamos de saber que possibilidades de “santificação” que “verdades” se encerram nas doutrinas e no modo de viver destas comunidades heréticas e cismáticas, hostis ao Pontífice romano e a tudo que é católico, em cujo seio muitos negam o próprio conceito de “santificação” e defendem uma noção absolutamente subjetiva da verdade (inclusive da verdade revelada).

8.4 A afirmação de que “os cristãos não católicos”(que são hereges formais ou ao menos materiais), gozam, enquanto tais, de “certa união com o Espírito Santo [immo vera quaedam in Spiritu Santo coniunctio], que também opera neles com sua virtude santificante por meios de dons e de graças, concedendo a alguns a fortaleza para a efusão do próprio sangue”(LG, 15).

Constitui uma afirmação doutrinária equivocada desde que os chamamos “irmãos separados” são separados precisamente por causa de sua rebeldia contra o Magistério da Igreja e resistência ao Espírito Santo. Assim, o Espírito Santo não pode unir-se a eles enquanto comunidades “separadas” e rebeldes, nem conferir a heréticos ou cismáticos, como tais, a graça do martírio pela fé verdadeira, que em vez de professarem, combatem. Os missionários protestantes assassinados por serem missionários não podem ser considerados mártires, quer dizer, testemunhas da verdadeira fé.

É verdade que um herético formal pode converter-se pela graça de Deus e morrer pela verdadeira fé; mas então morre como católico. Um herético material pertence invisivelmente à Igreja Católico pelo votum Ecclesiae, e se sofre o martírio, também ele morre como católico e não como herético ou cismático (o que pertence ao “segredo de Deus”, como adverte Pio IX).

Mas não é isso que os artigos citados querem dizer: eles afirmam claramente o contrário, que os “não católicos” seriam assistidos enquanto tais pelo Espírito de Verdade, a ponto de “derramarem seu sangue”, isto é, suportarem o martírio por sua fé, o que equivale dizer: por seus erros! Os textos se prestam à pior interpretação, que é a de fazer alusão aos heréticos obstinados, tenazes corruptores de almas, justamente condenados no passado pela Igreja (v. também, Dignitatis Humanae,12, condenando o uso da força para defender a fé, força que foi usada outrora pela Igreja).

8.5 O novo dever pastoral confiado à Igreja de oferecer “ao gênero humano a sincera colaboração [em vez de convertê-lo a Cristo] para lograr a fraternidade universal” (GS, 3), e a seguinte exortação feita aos católicos (na verdade, é uma intimação) para que colaborem com os heréticos e cismáticos (os “irmãos separados”) a fim de elaborar tradições ecumênicas da Sagrada Escritura (DV, 22); para que colaborem na obra do apostolado cristão, em nome do “patrimônio evangélico comum”, que comporta, segundo parece, “o dever comum [officium] do testemunho cristão” (Apostolicam Actuositatem, 27; UR, 24). “Reconheçam e apreciem em seu valor os tesouros verdadeiramente cristãos que, procedentes do patrimônio comum , se encontram em nossos irmãos separados” (UR, 4), e unam-se a eles na oração em certas circunstâncias especiais (UR,8).

Trata-se de uma pastoral totalmente nova, porque ensina exatamente o contrário do que os Apóstolos ordenaram a respeito da conduta com os heréticos: “Ao sectário, depois de uma ou outra admoestação, evita-o, considerando que está pervertido; ele peca, e, por seu pecado, se condena” (Tit 3, 10-11); “Se alguém vem a vós e não leva esta doutrina, não o recebeis em casa nem o saudeis, pois o que o saúda se associa a suas más obras” (II Jn 10-11).

O erro doutrinal em que se inspira a “nova” pastoral é evidente: não existe nem pode existir um “patrimônio evangélico comum” com os heréticos e cismáticos, assim como tampouco “valores” comuns. Os protestantes negam a tradição como fonte do dogma, assim como o magistério da Igreja, assistida pelo Espírito Santo, para “julgar o verdadeiro sentido e interpretação das Sagradas Escrituras” (Denz., 786 e 1507). Eles a deformam de mil modos, por confiarem no livre exame individual ao qual ousam submeter a aceitação desta ou daquela verdade revelada.

Lutero destruiu tudo o que pôde do dogma e da moral: negou o sacerdócio; corrompeu a Escritura; jogou por terra a própria noção de Igreja; reduziu os sacramentos de sete a dois, e mesmo estes dois são falseados; negou a transubstanciação e o caráter propiciatório do santo sacrifício; negou o purgatório, a virgindade de Maria Santíssima depois do parto; ridicularizou o princípio de santidade, da virgindade e da castidade; admitiu o divórcio; negou o livre arbítrio e o valor meritório das obras; fomentou o ódio entre os cristãos, incitando-os, além disso, à rebeldia contra o princípio de autoridade.

Os anglicanos conservaram seu episcopado, mas é como se não o tivessem, porque sua consagrações e ordenações são nulas do início ao fim: por defeito de forma e de intenção (assim declarou Leão XIII em 1896 por sentença dogmática: Denz., 1963,3315 ss; 3317 a -b).Eles constituem uma seita submetida ao poder político, uma “religião civil” com uma fachada cristã. Além disso, se difunde hoje entre os protestantes a presença das “sacerdotisas”, forma de neo-paganismo na qual caíram os heréticos, em virtude da propagação do feminismo. Aparentemente querem infiltrá-la também na Igreja católica, que se tornou “ecumênica” (sobre os “ortodoxos” cf. infra 8.6).

8.6 A terminologia ambígua “igrejas ou comunidades eclesiais”, ou então “igrejas ou comunidades separadas” aplicada às denominações não católicas: “em suas próprias igrejas ou comunidades eclesiais...” (LG, 15); “... as igrejas ou comunidades separadas...” (UR, 3).

Com evidente erro teológico, tal terminologia qualifica de “Igreja” as seitas heréticas e cismáticas. Impossível, visto que só a Igreja católica é a Igreja fundada por Cristo. As comunidades separadas desta Igreja única, cimentada por Cristo sobre a rocha de Pedro, não têm direito, nem todas juntas nem cada uma separadamente, de proclamar-se “a Igreja de Cristo”; nem tampouco de dizer que são membros ou parte dela porque se separaram visivelmente da unidade católica (a condição dos orientais cismáticos é idêntica, como confirmam todos os Pontífices romanos desde Pio XI até Pio XI, contra as pretensões do ecumenismo não católico).

8.7 A exortação aos teólogos católicos a que “ao confrontar suas doutrinas (católicas) com a dos “irmãos separados, não esqueçam que há uma ordem ou hierarquia das verdades na doutrina católica [veritatum doctrinae], em razão de suas diferentes conexões com o fundamento da fé cristã” (UR, 11).

Esta exortação contém a idéia errônea expressamente condenada por Pio XI na Mortalium animos (1929: Denz., 2199 e 1683), de que existem verdades reveladas e dogmas que se devem aceitar mais do que outros.

De fato, é a autoridade de Deus o que nos move a aceitar igualmente, com o mesmo grau de obrigatoriedade, todas as verdades contidas na revelação divina, dado que “repugna à razão que não se creia em Deus quando Ele fala, ainda que fosse num ponto só.” (Leão XIII, Statis Cognitum).

A exortação leva à conclusão absurda de que, no “diálogo ecumênico”, se podem discutir com os hereges as “verdades doutrinais” menos importantes na (pretensa) “hierarquia” de verdades. Chega-se assim ao princípio errôneo contido no final do artigo 11 que examinaremos no parágrafo seguinte.

8.8 O princípio segundo o qual, “ao confrontar” a doutrina da Igreja com a dos “irmão separados”, tendo presente a existência da “hierarquia” das verdades doutrinais, “se preparará o caminho por onde todos se estimulem fraternalmente a prosseguir na busca de um conhecimento mais profundo e uma exposição mais clara das insondáveis riquezas de Cristo (cf. Ef 3,8)” (UR, 11 cit.).

Princípio monstruoso, que beira a heresia, porque confia a tarefa de alcançar um “conhecimento mais profundo” e uma “exposição mais clara” das riquezas incalculáveis de Cristo à investigação teológica em comum com os hereges. Como se a fidelidade e a verdade revelada e definida com clareza não correspondesse ao magistério infalível, e como se a verdade católica e o erro dos heréticos e cismáticos pudessem caminhar juntos no caminho de um “estímulo fraterno” para nos fazer conhecer melhor as riquezas insondáveis de Nosso Senhor (!). São Paulo testemunha em Ef. 3,8 (citado sem fidelidade pelo concílio) que a ele “foi outorgada a graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo”, mas ele anunciava com a pregação da “sã doutrina” (II Tim 4, 2-3), não mediante o “diálogo” com os heréticos e os cismáticos, expressamente proibido por ele e por São João (e por todos os papas) (ver supra 8,5).

8.9 O obscurecimento, a diminuição, para agradar aos protestantes, do dogma definido pelo concilio de Trento, segundo o qual só a Santa Igreja pode “julgar o verdadeiro sentido e interpretação das Sagradas Escrituras” (Denz., 786 e 507). O obscurecimento deste dogma se dá na frase seguinte: “segundo a fé católica, o magistério autêntico tem um lugar especial [peculiarem locum] para expor e pregar a palavra de Deus escrita” (UR, 21).

“Lugar especial” para “expor” e “pregar” a “palavra de Deus escrita”? Compete à igreja muito mais do que isso, visto que o magistério goza de fundamento e assistência sobrenaturais; é o único juiz do “verdadeiro sentido e interpretação das Escrituras”.

8.10 A afirmação errônea de que os protestantes “querem, como nós, seguir a palavra de Cristo, utilizando-a como fonte de virtude cristã, etc.”. (UR, 23).

Tal idéia nos desvia da verdade porque os protestantes querem seguir “a palavra de Cristo” não como os católicos, isto é, não como ensina a Igreja católica, mas segundo o falso princípio do “livre exame”, que os permite “professar confiante livremente o que [lhes] parece verdadeiro (confidenter confidenti quidquid verum videtur). Este princípio foi condenado formalmente como herético por Leão X em 1520, na bula Exsurge Domine, que condenou as heresias de Lutero (Denz., 769 e 1479).

IX- A descrição errada e falaciosa

das religiões não cristãs

9.0 A falsa atribuição a todas as religiões não cristãs de uma fé no Deus criador, semelhante à nossa: “A criatura sem o criador se esvanece. Além disso, aqueles que crêem em Deus, seja qual for sua religião, [cuiscumque sint religiones], escutaram sempre a manifestação da voz de Deus na linguagem da criação” (Gaudium et Spes 36).

9.1 A atribuição paralela e inconcebível de uma patente de verdade e de santidade a todas as religiões não cristãs, apesar de carecerem da verdade revelada e de serem fruto do espírito humano, e consequentemente não poderem, como tais, nem redimir nem salvar ninguém: “A Igreja católica não rejeita nada do que há de santo e verdadeiro nessas religiões [vera et sancta]. Considera com sincero respeito os modos de agir e viver, os preceitos e doutrinas que, apesar de divergirem dos que Ela própria ensina e professa, muitas vezes refletem um lampejo da verdade que ilumina todos os homens” (Nostra Aetate 2).

Eis a contradição desta frase de teor abertamente deísta: se essas religiões “divergem” dos ensinamentos da Igreja católica, como é que refletem “muitas vezes” um “lampejo da Verdade que ilumina todos os homens”? Isso significa que para o Concílio, a “Verdade que ilumina todos os homens” pode refletir-se em doutrinas e preceitos que “divergem em muitos pontos” do ensinamento da Igreja (!). (Como um autêntico concílio ecumênico da Igreja católica pode ter inspirado tal idéia?)

9.2 A afirmação infundada segundo a qual as religiões pagãs, passadas e presentes, estão incluídas de algum modo na economia da salvação (o contrário da tradição e das Escrituras: Salmo 96 (Vulgata 95): “Pois todos os deuses dos gentios são demônios”; I Cor 10, 20).

O artigo 18 do decreto Ad Gentes (sobre a atividade missionária) exorta os “institutos religiosos” nos países de missão a esforçar-se para adaptar as “riquezas místicas que possuem” ao “caráter e à idiossincrasia de cada povo”, “considerando atentamente o modo de aplicar à vida religiosa cristã, as tradições ascéticas e contemplativas cuja semente [semina] tinha sido colocada por Deus nas antigas culturas (em geral e, consequentemente, também em suas religiões) antes da proclamação do Evangelho”. As “antigas culturas”, cujos deuses eram “demônios”, e cujos sacrifícios se ofereciam “aos demônios e não a Deus” (I Cor 10, 20), são agora indevidamente revalorizadas pelo concílio, que pretende reconhecer nelas uma presença das semina verbi, das “sementes da verdade revelada”. Isso vai contra uma verdade do depósito de fé. (O mesmo conceito é repetido na Lumen Gentium 17 e Ad Gentes 11, aplicado a todos os povos não cristãos contemporâneos, pagãos inclusive: os missionários devem descobrir, “com gozo e respeito, as sementes da Palavra que nelas estão contidas”; “nelas”, quer dizer, nas “tradições nacionais e religiosas” dos países de missão cuja evangelização lhes é confiada).

9.3 A falsa descrição do hinduísmo, onde “os homens investigam o mistério divino e o expressam mediante a inesgotável fecundidade dos mitos e com os penetrantes esforços da filosofia, e buscam a libertação das angústias de nossa condição, seja mediante as modalidades da vida ascética, seja através da profunda meditação, seja buscando refúgio em Deus com amor e confiança” (Nostra Aetate 2 cit.).

Descrição falsa, porque induz o católico a considerar válida a mitologia e a filosofia hindus, como se ela “investigasse” efetivamente “o mistério divino”, e como se a ascética e a meditação hindus realizassem algo semelhante à ascética cristã. Sabemos, pelo contrário, que a mistura de mitologia, magia e especulação que caracteriza a espiritualidade hindu desde a época dos Vedas (séc. XVI-X a.C.) é responsável por uma concepção completamente monista e panteísta da divindade e do mundo. Ao considerar Deus como uma força cósmica impessoal, os hindus ignoram o conceito de criação e, consequentemente, não distinguem entre realidade sensível e realidade sobrenatural, realidade material e realidade espiritual, entre o todo e os seres particulares, dissolvendo toda existência individual no Uno cósmico, de quem tudo procede e a quem tudo retorna sem cessar, enquanto que o eu individual, em si mesmo, seria pura aparência. Falta a esta filosofia, que o texto conciliar qualifica de “penetrante”, o conceito da alma individual (muito conhecido pelos gregos) e do que chamamos de vontade e livre arbítrio.

A isto acrescenta-se a doutrina da reencarnação, concepção particularmente perversa (condenada explicitamente no esquema de constituição dogmática, na fase preparatória do Concílio: De deposito fidei pura custodiendo, que João XXIII e os progressistas fizeram naufragar por seu caráter pouco “ecumênico”) e o fato de que a denominada “ascesis” hindu não é mais que uma forma de epicurismo para os brâmanes. É uma busca refinada e egoísta de uma indiferença espiritual em relação a qualquer desejo, ainda que seja bom, a qualquer responsabilidade. Indiferença que se justifica por considerarem todo sofrimento como expiação de culpas contraídas numa vida anterior, etc., etc.. Que podem os católicos aprender de bom numa tal concepção de mundo? Gostaríamos muito de saber.

9.4 A falsa descrição do budismo, variante autônoma e “mais pura” do hinduísmo. O concílio declara que “o budismo, em suas várias formas, reconhece a insuficiência radical deste mundo mutável e ensina o caminho pelo qual os homens, com um espírito devoto e confiante, podem adquirir o estado de perfeita libertação, ou a suprema iluminação, através de seus próprios esforços ou apoiados num auxílio superior” (Nostra Aetate 2 cit.).

É a imagem de um budismo “à moda de de Lubac”, revisada e corrigida para gozar do apreço dos católicos ignorantes que não sabem que “a insuficiência radical deste mundo” é enquadrada pelos budistas numa autêntica “metafísica do nada”, segundo a qual o mundo e o eu são existências ilusórias e aparentes (o cristianismo ensina que o mundo e o eu são bem reais, apesar de transitórios). Para o budista, tudo se “compõe e se decompõe” ao mesmo tempo, a vida é um fluxo contínuo atravessado pela dor universal. Para superar a dor, é mister convencer-se de que tudo é em vão, liberar-se de todo desejo e entregar-se a uma iniciação intelectual, uma gnose semelhante à dos hindus (até o ponto de se permitirem o uso da “magia sexual” no budismo tântrico), que nos faz chegar à indiferença completa a tudo, o Nirvana (“desaparição”, “extinção”): uma condição final de privação absoluta, na qual não há outra coisa senão o nada, o vazio, no qual o eu se extingue totalmente para dissolver-se de maneira anônima no Todo e no Uno (como queiram). Este é o “estado de perfeita libertação” ou de “suprema iluminação” que o Vaticano II ousou apresentar aos católicos como digno de atenção e respeito!

9.5 A afirmação segundo a qual “o desígnio de salvação [propositum salutis] engloba também aqueles que reconhecem o Criador, entre os quais estão em primeiro lugar [in primis] os muçulmanos, que confessando professar a fé de Abraão, adoram conosco um só Deus, misericordioso, que há de julgar os homens no último dia [qui fidem Abrahae se tenere profitentes, nobiscum Deum adorant unicum, etc.]” (Lumen Gentium 16)

Esta afirmação atribui erroneamente aos muçulmanos o mesmo Deus que nós adoramos, incluindo-os na economia da salvação; trata-se de uma afirmação contrária ao dogma de fé, já que não se pode incluir no plano de salvação quem não adora o Deus verdadeiro. E os muçulmanos não adoram o Deus verdadeiro, apesar de reconhecerem Deus (Allah: “o Deus”), seus atributos de onipotência e onisciência e a criação do “mundo” e do “homem” a partir do nada. Reconhecem-no como juiz do gênero humano no fim dos tempos, mas não o reconhecem como Deus Pai, que criou na sua bondade o homem à sua “imagem e semelhança” (Gen 1, 36; Deut 32, 6; etc.), nem crêem na Santíssima Trindade, da qual têm horror, repetindo o erro dos judeus, e por isso negam a graça, a divindade de Nosso Senhor, a encarnação, a redenção, a morte na cruz, a ressurreição: desprezam todos nossos dogmas, e negam-se a ler o Velho e o Novo Testamentos considerando-os livros falsificados, por não conterem, obviamente, nenhuma menção a Maomé.

O islã nega, além disso, o livre arbítrio (defendido somente por alguns exegetas minoritários considerados como heréticos), professando um determinismo absoluto, que não deixa lugar no mundo para as relações causais autênticas, visto que todas nossas ações, boas ou más, já estão “consignadas” pelo decreto indestrutível de Alá (Alcorão, 54, 52-53).

9.5.0 O reconhecimento da LG 16 repete-se na declaração Nostra Aetate de maneira mais detalhada e mais grave: “A Igreja olha também com apreço os muçulmanos, que adoram o Deus único, vivente e subsistente, misericordioso e todo poderoso, Criador do céu e da terra (cf. São Gregório VII, Epíst. 21 ad Anzir (Nacir) regem Mauritaniae: PL 148, 450 s.), que falou aos homens [qui unicum Deum adorant (...) homines allocutum], a cujos misteriosos decretos procuram submeter-se de toda a alma [cuius occultis etiam decretis toto animo se submittere student], como se submeteu Abraão, a quem a fé islâmica se refere com complacência” (NA 3).

Aqui se afirma sem mais nem menos que o Deus no qual crêem os islâmicos “falou aos homens”(!). Assim sendo, o concílio mostra que considera como autêntica a “revelação” transmitida por Maomé no Alcorão. Se fosse assim, não teríamos aqui uma apostasia implícita da fé cristã, dado que a “revelação” exposta no Alcorão contradiz expressamente todas as verdades cristãs fundamentais?

Além do mais, se descrevem as crenças dos muçulmanos exatamente como eles as entendem, como se dando a entender que o concílio as aprovasse. De fato, usa-se a imagem da “submissão a Deus”, que não é outra senão o significado do termo “islã” (submissão), cujo adjetivo substantivado é muslim, muçulmano (submetido [a Deus]). A frase inteira parece um eco do Alcorão 4, 125: “Quem é melhor, em religião, do que aquele que se submete a Deus, faz o bem e segue a religião de Abraão, como um Hanif [um monoteísta puro]”? Finalmente, a referência à obediência aos “decretos misteriosos” de Alá tem um forte sabor islâmico, já que nos lembra que Alá é definido no Alcorão como “o Visível e o Escondido” (Alcorão 57,3). Visível em suas obras e Escondido em seus decretos: como se o concílio quisesse que compreendêssemos que sua “estima” não recua diante do caráter ambíguo, perturbador, impenetrável, da entidade de que fala o Alcorão.

O elogio do Vaticano II à “fé” de Abraão professada pelos muçulmanos, como se constituísse uma característica que os aproxima de nós, oculta a verdade, já que o Abraão do Alcorão, impregnado de elementos lendários e apócrifos, não coincide com o Abraão verdadeiro, que é obviamente o da Bíblia. O Alcorão atribui a Abraão um monoteísmo denominado “puro”, isto é, antitrinitário, anterior ao monoteísmo judaico e cristão. Maomé, enquanto profeta árabe, descendente de Abraão pela linha de Ismael, teria sido chamado por Deus para restaurar esse monoteísmo puro, libertando-o das presumidas falsificações judias e cristãs!

9.5.1 Nostra Aetate também leva seriamente em consideração a veneração que os muçulmanos professam por Jesus e a Santíssima Virgem: “Veneram Jesus como profeta, ainda que não o reconheçam como Deus; honram Maria, sua mãe virginal, e às vezes também a invocam devotamente” (NA 3 cit.).

Sabe-se, entretanto, que a “cristologia” do Alcorão se baseia sobre o Jesus alterado e desfigurado dos evangelhos apócrifos e das heresias gnósticas de tipos distintos que pululavam na Arábia nos tempos de Maomé. Mostra um Jesus nascido de uma virgem por intervenção divina (Anjo Gabriel), como um profeta particularmente apreciado por Alá, um mero mortal, capaz de operar milagres por concessão de Alá; um profeta, pois, que pregou o mesmo monoteísmo atribuído por Abraão (Alcorão 57, 26-27), cuja fórmula assim diz: “Não há nenhum outro deus senão Deus, o Uno, o Invicto” (Alcorão 38, 65). Por isso Jesus, segundo o islã, foi um “servo de Deus” (Alcorão 19, 36), um submetido a Alá, um muslim, um muçulmano, chegando a anunciar, como Abraão, a vinda de Maomé (Alcorão 61, 6) (!). Quando os sarracenos veneram Jesus como profeta, eles o entendem como “profeta do islã”, mentira que nenhum católico que conserve a fé pode evidentemente aceitar (cf. R. Arnaldez, Jésus fils de Marie, prophéte de l’Islam [Jesus, filho de Maria, profeta do Islã], 1980 págs. 11-22; 129-141).

9.5.2 Quanto à veneração islâmica da Santíssima Virgem, a quem às vezes os mouros “invocam devotamente”, é um culto praticamente irrevelante, de fundo supersticioso. Um “culto” prestado à Maria como mãe de um “profeta do islã”, não enquanto mãe de Deus: um culto ofensivo a ouvidos católicos.

Temos de repetir, além disso, que também a “mariologia” do Alcorão está completamente corrompida: tem sua origem em uma mistura de fontes apócrifas e heréticas. Ignora completamente a existência de São José e do Espírito Santo. Chama a Virgem Maria de “irmã de Aarão” (irmão de Moisés) e “filha de Inrão” (em hebreu Amrão, Num 26, 59), confundindo-a com Maria a profetiza (Ex 15, 20), que viveu mais ou menos doze séculos antes de Cristo.

E como se não bastasse, introduzem a Virgem Maria na Trindade dos cristãos, detestada e recusada com raiva pelos muçulmanos por ser constituída, segundo o Alcorão, de Deus (Pai), Maria (Mãe) e Jesus (Filho). Disse Deus:

- “Jesus, filho de Maria! Foste Tu quem disseste aos homens: Tomai-nos minha mãe e eu como deuses [literalmente como dois deuses], além de Deus!?”.

Disse Jesus:

- “Glória a Ti! Como vou dizer algo que não é verdade? [Alcorão 4, 171; 5, 73] Se o houvesse dito, Tu o saberias. Tu sabes o que há em mim, [quer dizer, como penso], mas eu não sei o que há em Ti. Tu és quem conhece profundamente todas as coisas ocultas” (Alcorão 5, 116).

9.5.3 Para arrematar tudo, a Nostra Aetate (3 cit.) parece louvar os muçulmanos e colocá-los como exemplo aos católicos porque “esperam o dia do julgamento, quando Deus remunerará todos os homens ressuscitados. Portanto, apreciam a vida moral, e honram a Deus, sobretudo, com a oração, as esmolas, e o jejum”, razão pela qual o concílio “exorta todos a que, esquecendo o passado”, quer dizer, as “não poucas discórdias e inimizades entre cristãos e muçulmanos, procurem com sinceridade compreender-se mutuamente, defender e promover unidos a justiça social, os bens morais, a paz e a liberdade para todos os homens” (Nostra Aetate, ibid.).

Também aqui se distorce o significado dos fatos históricos, reduzindo a meras “discórdias e inimizades” as lutas sangrentas, longas e cruéis, fé contra fé, que tivemos que travar ao longo dos séculos para vencer os assaltos do islã. Além disso, se passa ao largo das diferenças abismais entre a escatologia católica e a islâmica (a falta de uma verdadeira visão beatífica, a compreensão carnal do paraíso, a eternidade das penas infernais aplicadas exclusivamente aos infiéis), não mencionando a incompatibilidade absoluta de uma concepção da “vida moral” e do “culto” com a nossa. O islã é uma religião que, além de admitir instituições moralmente inaceitáveis como a poligamia, com todos seus corolários, pretende garantir a salvação somente com as práticas legais do culto; constitui, pois, uma religião mais exterior e mais legalista do que o farisaísmo expressamente condenado por Nosso Senhor (cf. Mt 6, 5). Tudo isso é silenciado. Convidam-nos a uma colaboração com o islã, mas tal colaboração é impossível porque os muçulmanos só dão às noções de “justiça social”, “paz”, “liberdade”, etc., o sentido que se pode tirar do Alcorão ou do Asuma (aquilo que foi feito ou dito por Maomé): um sentido islâmico, totalmente diferente do nosso. Os muçulmanos, por exemplo, não entendem a paz, nem sequer à maneira do Pontífice atualmente reinante: não admitindo que os islamitas possam viver sob o jugo dos infiéis, dividem o mundo em duas partes: uma em que domina o islã (dar al-islã: morada do islã) e a outra - todo o resto - forçosamente inimiga até que se converta ou se submeta (dar al-harb: morada da guerra). A comunidade islâmica se considera sempre em guerra com o resto do mundo.

A paz não é para ela um fim em si, que permite a convivência de Estados e religiões diversas: é somente um meio ditado pelas circunstâncias que obrigam a assinar armistícios com os infiéis. Tais períodos de paz devem gozar de uma duração limitada (não mais de dez anos), e a guerra (obrigação moral de cunho jurídico-religioso para o maometano) deve ser retomada sempre que possível – até a infalível vitória final: a instauração de um Estado islâmico mundial.

Nota:

O concílio parece justificar a afirmação de que os mouros “adoram o Deus único, etc.”, com a citação de uma carta de S. Gregório VII. Este Papa, que reinou de 1073 a 1085, escreveu uma carta pessoal de agradecimento (em 1076) ao emir de Mauritânia, Anazir, que se havia mostrado bem disposto em relação a certas petições do Papa e restituiu alguns prisioneiros cristãos. O Papa dizia que tal “ato de bondade” lhe havia sido “inspirado por Deus”, que exige o amor do próximo e o requer especialmente “de nós e de vós [...] que cremos no mesmo Deus, ainda que de modo distinto [licet diverso modo]; que louvamos e veneramos diariamente o Criador dos séculos e rei deste mundo” (PL 148, 451 A). Como explicar tais afirmações? Pela ignorância que havia nesta época da religião fundada por Maomé. De fato, o Alcorão não havia sido traduzido ainda para o latim nos tempos de S. Gregório VII, razão pela qual não se compreendiam os aspectos fundamentais desse “credo”. Sabia-se apenas que os islamitas, inimigos profundos do nome cristão, saindo de repente dos desertos da Arábia em 633, com ímpeto conquistador, mostravam, contudo, certo respeito por Jesus, como profeta, e pela Santíssima Virgem. Acreditavam em um Deus único, no caráter inspirado de sua Santas Escrituras, no julgamento e em uma vida futura. Podiam ser tomados por uma seita herética (“a seita maometana”), equívoco que se manteve por longo tempo, pois no início do século XIV Dante colocou Maomé nos infernos, entre os hereges e cismáticos (Inf. XXVIII, vv. 31 ss.).

Assim, pois, o elogio particular que Gregório VII fez ao emir tem que ser enquadrado nesse contexto: Gregório VII supunha escrever a um “herege”, que tinha se comportado caridosamente naquela ocasião, como se o Deus verdadeiro, em quem o Papa pensava que o emir acreditava, tivesse tocado seu coração. De um herege, de fato, pode-se dizer que crê no mesmo Deus que nós, o confessa, ainda que de “maneira distinta”. O elogio, no entanto, não impediu S. Gregório VII de defender, com uma perfeita coerência, a idéia de uma expedição de todos os países cristãos contra o islamismo para socorrer a cristandade oriental, ameaçada de aniquilamento. A idéia se realizou, pouco depois de sua morte, com a primeira cruzada proclamada por Urbano II.

A primeira tradução latina do Alcorão só ocorreu em 1143, cinqüenta anos depois da morte de Gregório VII. Foi feita pelo inglês Roberto de Chester para o abade de Cluny, Pedro o Venerável, que acrescentou uma refutação decisiva do credo islâmico: tratava-se, na realidade, de um resumo do Alcorão e sua única tradução durante séculos, até a aparição da versão crítica e completa do padre Marracci, em 1698. O cardeal de Cuso se serviu do resumo de Roberto de Chester para escrever seu célebre Cribatio Alcorani (exame crítico do Alcorão) na primeira metade do século XV, que precedeu um pouco a bula promulgada por Pio II (Eneas Sílvio Piccomolini) em outubro de 1458 para lançar uma cruzada contra os turcos (que nunca se realizou). Na ocasião, os turcos estavam se estendendo pelas Balcãs depois de terem se apoderado de Constantinopla, e Pio II os qualificou de discípulos do “falso profeta Maomé” (qualificação que repetiu em 12 de setembro de 1459, num discurso digno de nota pronunciado na catedral de Mântua, onde se reunia a Dieta encarregada de aprovar a cruzada). No discurso, chamou Maomé outra vez de impostor, dizendo que, se não fosse detido, o sultão Mehemed subjugaria todos os príncipes do ocidente, “destruiria o evangelho de Cristo e imporia a todo o mundo a lei de seu falso profeta” (cf. C. De Frede, La prima traduzione italiana del Corano, Nápoles, 1967, págs. 1 a 13; F. Babinger, Maometto il conquistatore, 1947, tradução italiana, Turim, 1967, págs. 180-183).

Eis aqui, pois, uma condenação clara e forte do islamismo e de seu profeta pela boca do magistério pontifício, uma vez eliminado o erro que considerava o credo maometano como “heresia” cristã.

9.6 As proposições: “apesar de terem sido as autoridades judias com seus seguidores quem exigiu a morte de Cristo (cf. Jo 19, 6), o que se fez com Ele não pode ser imputado indistintamente a todo o povo judeu da época, nem aos judeus de hoje. E se a Igreja é o novo Povo de Deus, os judeus não devem ser assinalados como réprobos e malditos, como se isso se deduzisse das Sagradas Escrituras”. (Nostra Aetate 4).

Vê-se aqui o propósito de limitar a responsabilidade do deicídio a um círculo reduzido de pessoas particulares. O sinédrio, no entanto, era a suprema autoridade religiosa, representante do judaísmo inteiro. Assim sendo, sua atuação engendrou a responsabilidade coletiva da religião judaica e do povo hebreu por ter rechaçado o Messias e Filho de Deus, como se apreende das Sagradas Escrituras de maneira inequívoca (Jo 19, 12: “Desde então Pilatos procurava libertá-lo; mas os judeus gritavam, dizendo: “Se soltas este, não és amigo de César”...; Mt 27, 25: “E todo o povo respondeu, dizendo: Caia seu sangue sobre nós e nossos filhos”).

Surpreende também a afirmação de que “não se deve assinalar os judeus como réprobos e malditos, como se isso se deduzisse das Sagradas Escrituras”. Mais uma vez nos deparamos com a falta de distinção devida entre indivíduos e religião hebraica.

IX- A descrição errada e falaciosa das religiões não cristãs

9.6 (...) Surpreende também a afirmação de que “não se deve assinalar os judeus como réprobos e malditos, como se isso se deduzisse das Sagradas Escrituras” (Nostra Aetate, 4). Mais uma vez nos deparamos com a falta de distinção entre indivíduos e religião hebraica.

Falando dos judeus como indivíduos, a afirmação é verdadeira, como demonstra o grande número de conversões de judeus em todos os tempos; mas se falarmos do judaísmo como religião, a afirmação torna-se errada e ilógica: errada porque contradiz sem mais nem menos o evangelho e a fé desde sua origem (cf. Mt 21, 43: “Por isso vos digo que vos será tirado o reino de Deus e ele será entregue a um povo que o faça render frutos”). Ilógica, porque se Deus não reprovou a religião hebraica nem o povo hebreu no sentido religioso (que na época de Jesus se identificavam), então a Antiga aliança ainda pode ser considerada válida, assim como a infundada esperança judaica na vinda do Messias. Tudo isso configura uma descrição absolutamente mentirosa do judaísmo e de suas relações com o cristianismo.

A afirmação inaceitável, contrária à doutrina perene da Igreja e a toda exegese católica, segundo a qual os livros do Velho Testamento ilustram e explicam o Novo, ao passo que sempre foi ensinado que, pelo contrário, sem reciprocidade, é o Novo Testamento que ilustra e explica o Velho: “...os livros do Antigo Testamento, recebidos integramente na proclamação evangélica, adquirem e manifestam sua plena significação no Novo Testamento (cf. Mt 5, 17; Lc 24, 27; Rom 16, 25-26; II Cor 3, 14-16) [até aqui nada a objetar; nota da redação] ilustrando-o e explicando-o ao mesmo tempo [afirmação errada, em oposição à precedente] [illud vicissim illuminat et explicant]”(Dei Verbum, 16).

9.7 A inversão da missão dos católicos em relação aos seguidores das outras religiões. Em vez de exortar os católicos a converter o maior número possível de infiéis, arrancando-os das trevas em que estão submersos, o concílio os exorta a “reconhecerem, guardarem e promoverem aqueles bens espirituais e morais, assim como os valores socioculturais dos adeptos das outras religiões [qua apud eos invenientur]” (Nostra Aetate 2 cit.). Em outras palavras: os exorta a trabalhar para que os budistas, hindus, mouros, judeus, etc., sigam sendo tais, ou melhor, “progridam” nos “valores” de suas religiões e culturas respectivas, todas elas hostis à verdade revelada (!).

Tal exortação expressa um princípio geral da “igreja conciliar” (cardeal Benelli). E tal princípio mostra ao “povo de Deus”, -sacerdotes e seculares-, a atitude que deve adotar em relação aos ‘irmãos separados” e a todos os não cristãos. Essa exortação pastoral (com outras semelhantes, por ex. Lumen Gentium 17; Gaudium et Spes 28; Unitatis Redintegratio 4) trai a ordem que Jesus ressuscitado deu aos apóstolos (Mt 28, 19-20: “ide, pois; ensinai a todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar o quanto eu vos ordenei...”). Uma ordem que, mutatis mutandis, atinge também todos os católicos, cada qual segundo sua capacidade. Assim, cada um que crê deve, enquanto miles Christi, dar testemunho da fé com obras de misericórdia corporal e espiritual.

Não é para estranhar que, de acordo com essa mentalidade, já haja centenas de milhares de católicos que passaram ao budismo ou ao islamismo, enquanto que as conversões de budistas e mouros ao catolicismo são irrevelantes em termos numéricos. Como negar que as raízes da crise pós-conciliar estejam nas falsas doutrinas que penetraram nos textos do Vaticano II?

X- Erros concernentes à política, à comunidade política e às relações entre a Igreja e o Estado

10.0 Uma noção de “vida política” não católica, segundo o princípio laicista de humanidade. “A melhor maneira de chegar a uma política autenticamente humana se baseia em fomentar o sentido interior da justiça, da benevolência e do serviço ao bem comum e em robustecer as convicções fundamentais no que concerne a natureza verdadeira da comunidade política, e por fim, no reto exercício da limitação dos poderes públicos” (Gaudium et Spes, 73).

Aqui não transparece a menor preocupação com uma “vida política” segundo os pseudo valores cristãos: toda a preocupação está centrada numa “vida política” segundo os denominados valores humanos, vagamente descritos como “o sentido interior da justiça, da benevolência e do serviço ao bem comum”. Não se trata de uma adesão da inteligência e da vontade aos princípios da “justiça”, da “benevolência” e do “serviço” fundados na verdade revelada, princípios objetivos que têm Deus por autor, que a Igreja ensinou durante séculos e que exigem nosso assentimento. Os textos conciliares tratam somente do “sentido interior” (interiorem...sensum) que o indivíduo tem dos princípios, cujos fundamentos estão no próprio sujeito, em suas opiniões. Eis aqui uma concepção subjetivista da “vida política”, da praxis ou ortopraxis (comportamento reto), característica do pensamento moderno, completamente alheia ao catolicismo, ou melhor, fatalmente hostil a ele. Esta “vida política autenticamente humana”, apresenta uma finalidade puramente terrena e mundana .

10.1 A definição da “natureza verdadeira” da comunidade política, responsável pela instauração da “vida política autenticamente humana” (Gaudium et Spes 73 cit.), se move na mesma perspectiva laicista e imanentista, não católica. A “comunidade política” existe, exclusivamente, “para melhor buscar o bem comum” (Gaudium et Spes 74), “o conjunto das condições de vida social com as quais os homens, as famílias e as associações podem alcançar com maior plenitude e facilidade a própria perfeição” (Gaudium et Spes 74).

Tal noção de bem comum está de acordo com o ensinamento tradicional da Igreja? Não, porque o identifica com “condições de vida social” que favorecem um “aperfeiçoamento” individual e coletivo alheio a qualquer idéia sobrenatural. Tal noção constitui um erro doutrinal. A Igreja sempre afirmou que apesar de gozar de certa autonomia, a busca do bem temporal deverá contribuir para a obtenção do “sumo bem”: a salvação da alma e a visão beatífica. De modo que, sendo a sociedade civil naturalmente instituída para a prosperidade do que é público, é necessário que ela não exclua o bem principal e máximo. Portanto, em vez de criar obstáculos, convém que ela forneça oportunamente, tanto quanto estiver a seu alcance, as melhores condições para que cada homem alcance o sumo bem incomutável. E que outra condição haverá mais cômoda e oportuna, tão eficaz e excelente quanto a santa e inviolável observância da religião verdadeira, cujo ofício consiste em unir o homem a Deus?” (Leão XIII, Immortale Dei, 1/XI/1885 em AAS pág. 118; cf. Santo Tomás, De regimine principum, I, XV).

O “aperfeiçoamento” propugnado pelo concílio, ao contrário, tem a ver com os valores humanos, não com os cristãos. Tanto assim que a autoridade, que existe para dirigir a ação de todos ao bem comum, se justifica com a ressalva de que não deve exercer uma função “mecânica [?] ou despótica, e sim, utilizar uma força moral [vis moralis] baseada na liberdade e na responsabilidade de cada um” (Gaudium et Spes ibid.). Isso quer dizer: a autoridade se justifica, mas torna-se necessária uma ressalva em favor da democracia, evidente pela insistência em relação à “liberdade” e à “responsabilidade de cada um”, entendidas como valores absolutamente determinantes do exercício da autoridade.

Só mais adiante é que o concílio cita um texto de S. Paulo (Rom 13, 1-5), estabelecendo a origem divina de toda autoridade constituída. Mas o sentido da citação é torcido e invertido: “É, pois, claro que a comunidade e a autoridade política se baseiam na natureza humana, e, por isso mesmo, pertencem à ordem prevista por Deus... (cf. Rom 13, 1-5)” (Gaudium et Spes 74 cit.). Onde está a distorção, ou melhor, a inversão? Em dizer que “a comunidade política e a autoridade pública” se baseiam sobretudo “na natureza humana”, e que, por isso mesmo (ideoque) pertencem à ordem prevista (praefinitum) por Deus.” O homem vem na frente de Deus e a comunidade política de tipo democrático (já que se baseia na “liberdade” e na “responsabilidade de cada um”) “pertence” à ordem prevista por Deus porque se “baseia” na “natureza humana”. Não é isso o que nos diz o Apóstolo dos gentios, que pelo Espírito Santo nos faz saber que toda potestas vem de Deus, seja qual for sua forma de governo, e em conseqüência disso se “baseia” na natureza humana (e na natureza humana corrompida pelo pecado original, que necessita sempre da espada do poder civil para ser freada) (Rom 13, 4).

10.2 A obscura precisão segundo a qual “o exercício da autoridade política, tanto na comunidade, quanto nas instituições representativas, deve realizar-se sempre dentro dos limites da ordem moral, para procurar o bem comum, concebido dinamicamente, etc.” (Gaudium et Spes 74 cit.).

Não se declara de que “ordem moral” se trata, nem se compreende o que significa com exatidão “procurar o bem comum, concebido dinamicamente”. Esse dinamismo se enquadra numa linha de pensamento constituída pelo mito do progresso, do crescimento, da expansão da atividade no universo (v. supra, sec. 6); em suma, pelos valores do século, não pelos valores católicos.

10.3 Um tipo ideal de indivíduo (que a “comunidade política” deve “formar”), que nada tem de católico: “um tipo de homem culto [excultum], pacífico e benévolo em relação aos outros, para proveito da família humana”(Gaudium et Spes 74).

Compare-se este retrato com o do maçom perfeito, pintado por inúmeras instituições da ordem maçônica: “O maçom é um súdito pacífico dos poderes civis onde quer que resida ou trabalhe, e não deve nunca misturar-se em complôs ou conspirações contrárias à paz pública ou ao bem da nação, nem desobedecer a seus superiores” (Grande Loja das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos, S. Gravenhange, 1761) (essa constituição aparece como apêndice da obra de Bernard Fay, A Maçonaria e a revolução intelectual do século XVIII, tradução italiana de G. Perotti, Ed. Einandi: Turim, 1945, pág. 297). Leia-se também o art. 43 da Gaudium et Spes, onde os cristãos são convidados a atuar como “cidadãos do mundo”; v. infra 17.5).

10.4 Uma definição do amor à pátria no sentido da fraternidade e do humanitarismo maçônicos e mazzinianos [de Mazzini (+1872): célebre revolucionário genovês, membro de sociedades secretas, ativista na implantação da república italiana. N. da red.]: “Cultivem os cidadãos com magnanimidade e lealdade o amor à pátria mas sem estreiteza de espírito, de modo que olhem sempre para o bem de toda família humana, cujas raças, povos e nações estão unidas por todo tipo de vínculo [bonum totius humanae quae variis coniungitur]” (Gaudium et Spes 75). A tradição católica jamais viu na “família humana” um valor superior ao das sociedades e nações cristãs, que tiveram de ser defendidas – de armas na mão – dos assaltos do mundo hostil a Cristo (por ex., a expansão islâmica na Europa).

10.5 Um tipo ideal de político (o que exerce “arte da política”), que tem pouco ou nada de católico, visto que repete o estereótipo do político democrático, bem de acordo com a moda. “Lutem [os políticos] com integridade moral e com prudência contra a injustiça e a opressão, contra a intolerância e o absolutismo de um só homem ou de um só partido político, consagrem-se com sinceridade e retidão, mais ainda, com caridade e fortaleza política, ao serviço de todos” (Gaudium et Spes 75).

Trata-se de um retrato retórico volátil, vago, banal, que carece do requisito próprio do estadista católico (figura que deveria estar na mente de um concílio ecumênico): o compromisso com a defesa e a afirmação da religião católica e da moral ensinada por ela.

10.6 A idéia de que a independência da “comunidade política” é tal que exclui qualquer subordinação à Igreja (inclusive a subordinação indireta). É justo lembrar que “a comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas, cada uma em seu próprio terreno” (Gaudium et Spes 76), porque suas estruturas são independentes do ponto de vista de organização (cf. Immortale Dei, Denz. 1886 e 3168). Não obstante, erra-se ao pensar que ambas têm em comum só o fato de estar “ao serviço” de uma ambígua “vocação pessoal e social do homem”, serviço que “realizarão com maior eficácia para o bem de todos quanto mais sadia e maior seja a cooperação entre elas, levando em conta as circunstâncias do lugar e do tempo” (Gaudium et Spes 76), isto é, segundo um mero critério de oportunidade.

Essa doutrina contradiz todo o ensinamento precedente que afirmou sempre a primazia da Igreja, enquanto societas perfecta (v. supra 2.9); primazia justificada pela necessária subordinação do bem comum temporal, buscado pela “comunidade política”, ao sumo bem, oferecido pela Igreja. Mas o fim que o Vaticano II atribui à Igreja é, na realidade, mundano, e portanto não é diferente do “político”, como resulta de Gaudium et Spes 76, onde se repete, citando Lumen Gentium 13, que a missão da Igreja “é fomentar e elevar tudo quanto há de verdadeiro, de bom e de belo na “comunidade humana” (v. supra, sec. 6).

A “sadia cooperação” da “comunidade política” com a Igreja católica não pode ser deixada ao sabor das circunstâncias (com a agravante de que tal cooperação se dá em função dos chamados “valores humanos”). Na verdade, essa “cooperação” constitui um dever para os Estados, porque deriva da obrigação de defender a única e verdadeira religião revelada e de promover o reinado social de Cristo, adequando o bem comum aos valores católicos. Lembremos que a falsa doutrina da independência e separação entre “comunidade política” e Igreja já foi condenada por Pio IX na proposição 55 do Sílabus, e por Pio X na Pascendi, contra o modernismo.



XI- Erros concernentes à liberdade religiosa e ao papel da consciência moral

11.0 A proclamação de um “direito à liberdade religiosa”, “fundado na dignidade da pessoa humana, como é conhecida pela palavra revelada de Deus e pela própria razão natural (cf. João XXIII, Enc. Pacem in terris, 11 de abril de 1973, AAS 55 (1963) p.p. 260-261; Pio XII, Radiomensagem natalina, 24 de dezembro de 1942: AAS p. 35 (1943); Pio XI, Enc. Mit brennender Sorge, 14 de março de 1937: AAS p.p. 29 (1937) e 160; Leão XIII, Enc. Libertas praestantissimum, 20 de junho de 1888: Acta Leonis XIII, 8 (1888) págs. 237-238)” Esse direito, enquanto direito da pessoa humana, “há de ser reconhecido na ordem jurídica da sociedade, de forma que chegue a converter-se num direito civil” (Dignitatis Humanae 2).

A proclamação do suposto direito à liberdade religiosa é apresentada como se estivesse conforme ao magistério pré-conciliar. No entanto, os textos de Pio XII, Pio XI e Leão XIII citados na nota pela Dignitatis Humanae 2 mostram que o direito invocado por eles, de cada um professar livremente sua fé, se refere somente à religião verdadeira, à fé católica. De modo que se refere à liberdade de consciência das almas cristãs, não a uma “liberdade religiosa” simpliciter: uma liberdade que se aplica a todas as religiões (cf. Mons. Lefebvre e il S. Uffizio [Mons. Lefebvre e o Santo Ofício] Roma: ed. Volpe, tradução italiana D. Toppet Andalo, 1980 págs. 28-69).

11.1 O princípio de que a “verdade deve ser buscada [...] mediante a livre investigação, servindo-se do magistério ou da educação, da comunicação ou do diálogo, através dos quais uns expõem a outros a verdade que tenham encontrado [invenerunt] ou crêem ter encontrado”( Dignitatis Humanae 8), concernente à “lei divina, eterna, objetiva e universal [falta o adjetivo “revelada”; n. da red.] pela qual Deus ordena, dirige e governa o mundo e os caminhos da comunidade humana segundo o desígnio de sua sabedoria e de seu amor” (ibid.).

Tal princípio faz consistir “a verdade em matéria religiosa” em algo que a consciência individual “encontra”, investiga com os “outros”, servindo-se “da comunicação e do diálogo” recíprocos, onde os “outros” (alii) não são apenas os outros católicos, mas os outros em geral, todos os homens, seja qual for sua crença. É significativo que tal investigação tenha por objeto a lei divina, eterna, objetiva, etc., posta por Deus em nossos corações, a lex eterna da moral natural, como fazem os deístas.

Essa apresentação doutrinal contradiz abertamente o ensinamento tradicional segundo o qual “a verdade em matéria religiosa” (e em matéria moral) é, para o católico, uma verdade revelada por Deus e conservada no depósito da fé, guardado pelo magistério. Uma verdade que requer, exige, o assentimento de nossa inteligência e de nossa vontade (assentimento possível com a ajuda determinante da graça); uma verdade que exige reconhecimento e assimilação por parte do fiel. Ele não “encontra” a verdade com suas própria forças (não se fala da ajuda do Espírito Santo no texto conciliar), ou pior ainda, ele não a encontra numa investigação comum com os hereges, os não cristãos, os infiéis!

Deste modo, o critério objetivo e tipicamente católico, segundo o qual a verdade em “matéria religiosa” é assim porque Deus a revelou, é suplantado pelo subjetivismo (de origem protestante e característico do pensamento moderno). Abrem-se assim, no catolicismo, as portas para uma “religiosidade” individual anômala, uma “religiosidade” da “investigação”, do “coração”, do “sentimento da humanidade”, da “consciência”, do “diálogo”, açucarada, falsa e melosa, à moda de Jean-Jacques Rousseau.

11.2 Uma noção da “consciência moral” minada de pelagianismo. Aqui se apóia a idéia da “verdade como investigação”, fundamento da “liberdade religiosa” propugnada pelo concílio. (v. supra 11)

Com efeito, lê-se na Gaudium et Spes 16: “A fidelidade a esta consciência une os cristãos aos demais homens na busca da verdade para resolver com acerto os numerosos problemas morais que se apresentam ao indivíduo e à sociedade. Quanto maior for o predomínio da consciência reta, tanto maior a segurança para cada um e para a sociedade de afastar-se dos caprichos cegos e para submeter-se às normas objetivas da moralidade”.

Trata-se de que verdade aqui? Certamente da verdade concernente à fé e aos costumes. Essa verdade não deveria proceder do ensinamento infalível da Igreja, da Tradição? Mas o concílio substitui a possessão segura da verdade de fé e de moral, estabelecida pelo magistério ao longo dos séculos, pela “investigação” da verdade em geral; substitui-a, pois, por algo indeterminado, conforme o espírito do século, que gosta, como sabemos, da “investigação”, da experiência, da novidade, do movimento perpétuo. Mais ainda, esta investigação deverá ser feita em união “com os outros homens”, e portanto em união com os não católicos e os não cristãos, com os que negam todas as verdades ensinadas pela Igreja, ou quase todas.

Como poderia uma investigação de tal gênero chegar a resultados positivos para a fé? Nessa atmosfera, os “cristãos”, os católicos, terão que resolver ecumenicamente os problemas morais, dialogando com os homens que não crêem, em vez de aplicarem as regras transmitidas pela fé e pela moral da Igreja (o entendimento “com outros homens” provém de um equívoco: existem “normas objetivas da moralidade” que todos os “homens de boa vontade”, fiéis à consciência moral podem encontrar em comum).

Como poderiam os católicos (para quem a indissolubilidade do matrimônio é dogma de fé) procurar junto com os protestantes e ortodoxos (que negam a indissolubilidade), uma norma moral comum para uma vida familiar sadia? Não mencionamos os que admitem a poligamia, o concubinato, o repúdio, o matrimônio temporario, (por um tempo préfixado, como no islã xiita.... Tamanho disparate é inconcebível. Mas o pior de tudo é o princípio que se assenta: as “normas objetivas” da moralidade não dependem da revelação, e sim da “consciência moral”, que “as encontra na investigação comum com os outros homens”(!).

Como era de se esperar, o art. 16, de que nos ocupamos, se refere à “lei escrita por Deus em seu coração [do homem: in corde suo]”: esta lei é a raiz das “normas objetivas da moralidade”, aparentemente. Não obstante, não é a verdade revelada que faz essa lei emergir das profundezas, e sim a consciência (dialogante), elevada à autoridade determinante das normas morais. Reaparece aqui a sombra de Rousseau com sua “profissão de fé do vigário de Saboyant”, deísta e pelagiana.

O texto conciliar precisa que “quanto maior for o predomínio da consciência reta, tanto maior a segurança para cada um e para a sociedade de afastar-se dos caprichos cegos e para submeter-se às normas objetivas da moralidade”(Gaudium et Spes 16). Para resistir ao “capricho cego” das paixões, das tentações, etc. não é necessária a ajuda da graça? Esta foi sempre a verdade católica, baseada na Tradição e nas Escrituras: sem a graça, sem a ajuda do Espírito Santo, não se consegue observar nem a moral natural, nem a revelada, que a aperfeiçoa. Mas o texto do concílio não faz a menor alusão à graça. A “conformidade”, com as “normas objetivas” da lei moral, impressa por Deus em nossos corações, depende agora exclusivamente da “retidão” da consciência que “investiga a verdade” em conjunto com os demais. Afirmam assim, que a “consciência moral” une os homens num plano acima das religiões positivas. A ala progressista do Vaticano II chega a afirmar que não possuímos ainda a “verdade”, nem sequer a que deve ser aplicada nas questões morais práticas. Essa verdade, segundo eles, não nos foi apresentada por um magistério infalível de dezenove séculos; ela deverá proceder do esforço comum a partir da consciência individual.

É este o espírito do Vaticano II, tão discutido.

11.3 (A) Todos os homens gozam da prerrogativa de “exercer livremente a religião na sociedade desde que a ordem pública seja salvaguardada”; o contrário seria uma “injúria à pessoa humana e à ordem que Deus estabeleceu” (Dignitatis Humanae 3).

(B) Deve-se permitir “às comunidades religiosas” o culto público do Numen Supremum (expressão que lembra o Ser supremo dos deístas e dos revolucionários, de Robespierre) com um único limite genérico, o mesmo de sempre: “que não se violem as exigências da ordem pública”(Dignitatis Humanae 4). Tais “comunidades” gozam do direito de não serem estorvadas pelo poder civil em sua autonomia organizacional e jurídica, ou em sua liberdade de movimentos (Dignitatis Humanae 4), e, mais importante, “não se proíba às comunidades religiosas de manifestarem livremente o valor peculiar de sua doutrina para a ordenação da sociedade e para a vitalização de toda atividade humana” (Dignitatis Humanae 4).

Esse dois conceitos, (A) e (B), levam a concluir que, entre as “comunidades religiosas” inclui-se também o catolicismo, em plano de igualdade com as outra religiões. Para o concílio, o “valor peculiar” da religião revelada não a coloca acima das outras, não lhe outorga uma posição de supremacia absoluta sobre as outras, não reveladas(!). É o equivalente a afirmar que todas as outras religiões gozam do mesmo direito que a católica de manifestar publicamente seu culto, em franca contradição com a proposição do Sílabus, condenando tal direito.

Trata-se de um grave desvio doutrinal, que confere ao erro os mesmos direitos da verdade única revelada e apaga, aos olhos dos fieis, toda a diferença entre a verdade e o erro, entre a luz e as trevas. De fato, a Igreja sempre ensinou a tolerar as religiões falsas – necessariamente em inferioridade de condições jurídicas em relação à única religião revelada -, por motivos circunstanciais, relativos à paz social e à ordem pública, com a reserva de que seu culto não contivesse aspectos imorais. E, de fato, o Papa sempre tolerou o culto hebreu em seus Estados e em toda a cristandade, protegendo-o contra excessos ou perseguições intermitentes. Tratava-se, entretanto, de tolerar um erro, não de conceder-lhe idêntica liberdade de manifestação como à autêntica verdade revelada.

11.4 O concílio equipara o catolicismo às “religiões” falsas: a liberdade religiosa que compete à Igreja católica é a mesma que há de conceder-se a todas as “comunidades religiosas” sem distinção. Isso se infere da frase seguinte: “Igualmente, reivindica a Igreja para si a liberdade, enquanto é uma sociedade de homens que têm direito de viver na sociedade civil segundo as normas da fé cristã (Pio XI, carta Firmissimam constantiam, 28 de março de 1937: AAS 29 (1937) p. 196)” (Dignitatis Humanae 13).

A frase da Dignitatis Humanae 13 parece tirada desta carta de Pio XI, mas trata-se de um engano absurdo: o Papa limitou-se a expor um argumento ad hominem contra os Estados que negavam à Igreja até o direito de existência. O Vaticano II, pelo contrário, transforma este pedido de liberdade mínima e preliminar num princípio fundamental do direito público da Igreja, como se este devesse propugnar para a Igreja apenas uma liberdade de direito comum. “Como se a Igreja fosse uma associação comparável a outras quaisquer existentes no Estado” (Leão XIII, Enc. Immortale Dei, (1/11/1885): AAS, vol. V, págs. 118).

O Vaticano incorre num grave erro doutrinal sempre condenado pelos Papas, pois nega a natureza superior da Igreja, uma societas perfecta, e seu necessário primado sobre as demais societas, ex sese imperfectae, que buscam o bem comum temporal para a “comunidade política”. Tal conduta constitui, além disso, um retrocesso incrível no plano histórico: em pleno século XX, a hierarquia pede que a religião católica, inclusive nos países em que é reconhecida como religião única do Estado, se reduza à mera condição de religio licita, com um culto permitido ao lado de todos os outros, como no tempo do edito de tolerância de Constantino, que pôs fim às perseguições (313 d.C.).

11.5 A afirmação errada de que “a liberdade da Igreja” (11.4) “é um princípio fundamental nas relações entre a Igreja e os poderes públicos e toda ordem civil” (Dignitatis Humanae 13).

O princípio fundamental do direito público da Igreja tem sido, desde sempre, o que atribui ao Estado o dever de reconhecer a realeza social de Cristo (Leão XIII, Immortale Dei cit.; S. Pio X, Epístola sobre “Le Sillon”, 29/8/1910). Trata-se do oportet illum regnare (I Cor 15,25) nas relações entre Estado e Igreja, e no âmbito da sociedade. Um princípio que a hierarquia atual deixou cair no esquecimento

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XII- Erros concernentes à interpretação do significado do mundo contemporâneo

12.0 O concílio atribui ao século XX questionamentos metafísicos sobre si mesmo e sobre seus maiores problemas: “Em nossos dias, o gênero humano, admirado de seus próprios descobrimentos e de seu próprio poder, faz freqüentes e angustiantes indagações sobre a presente evolução do mundo, sobre a missão do homem no universo, sobre o sentido de seus esforços individuais e coletivos, sobre o fim último das coisas e da humanidade” (Gaudium et Spes 3). Estes conceitos se repetem, por exemplo, em Gaudium et Spes 10: “[...] diante da atual evolução do mundo, são cada dia mais numerosos os que buscam nova penetração das questões mais fundamentais: Que é o homem? Qual é o sentido da dor, do mal, da morte, que ainda subsistem apesar de tantos progressos feitos?, etc.” Na realidade, quase ninguém naqueles anos se perguntava “que é o homem?”, nem esboçava problemas metafísicos tão profundos. O comunismo e seus aliados de esquerda (de todos os matizes) faziam ofensivas em todas as frentes. A União Soviética, a China de Mao Tsé Tung e Cuba eram os modelos. O marxismo fazia estragos nas universidades, nas escolas, em toda a cultura, inoculando, junto ao hedonismo propugnado pela sociedade de consumo (capitalista) e as subculturas emergentes (p. ex., a chamada “da droga” e a “hippie”) o espírito revolucionário que originou na Europa e na América os movimentos estudantis de 1966-1968 (seguindo o exemplo dos “guardas vermelhos” chineses –1966) menos de três anos depois do encerramento do concílio. Considerava-se que o problema do homem estava resolvido à luz da utopia revolucionária. O homem considerava-se produto do ambiente e da história: a inversão marxista da praxis colocaria as coisas em seu lugar, criando um homem novo, livre de todos seus defeitos, de todas as contradições. Os que buscavam definir o homem em sua individualidade, recorrendo às frágeis e confusas categorias do existencialismo e da psicanálise, achavam sempre no marxismo e na revolução social, a solução do problema do Homem. Este era “o humanismo” então dominante.

Os anos cinqüenta foram aparentemente estáveis, mas já traziam em si os bramidos do hedonismo que apareceu logo após a I Guerra. Quanto aos anos sessenta, são lembrados hoje, por unanimidade, como a época da emancipação da mulher, da “liberação sexual”, do início de uma mentalidade generalizada no campo político, econômico e dos costumes. Tal mentalidade, percebe-se com facilidade, perdura até nossos dias. Foram os anos do “movimento estudantil” e da “impugnação” organizada e sistemática do princípio de autoridade em todas suas formas.

A tempestade estava se armando quando começou o Vaticano II, e já se encontrava às portas quando ele foi concluído. Mas o concílio não percebia a tempestade. O que diz a Gaudium et Spes sobre os jovens? “A mudança da mentalidade e da estruturas provoca com freqüência um delineamento novo das idéias recebidas. Isto nota-se particularmente entre os jovens, cuja impaciência, e inclusive às vezes angústia, leva à rebelião. Conscientes de sua própria função na vida social, desejam imediatamente participar dela”. (Gaudium et Spes 7). De que modo a massa da juventude queria “imediatamente participar” da vida social verificar-se-ia logo depois, em menos de três anos.

Para proteger a juventude das seduções do século, o concílio precisava de condenar as falsas doutrinas dominantes, desde o existencialismo à psicanálise, passando pelo marxismo. Mas, em vez disso, abandonou a distinção entre natureza e graça, elaborou a teoria de uma nova ordem “social” e “humana” – aberta a todos os valores do mundo, sem excluir as características do “humanismo” revolucionário – chamou os homens modernos de “homens novos” e “criadores de uma nova humanidade” (que cresce graças à afirmação dos “valores” do progresso e da liberdade do Homem – Gaudium et Spes 30, 39).

Adotando uma visão naturalista do reino de Deus, o concílio contribuiu para as manifestações revolucionárias que eclodiram logo depois para contradizer o otimismo e o triunfalismo – que celebrava o homem e o mundo - do Vaticano II. Ao abdicar do bastião representado pela doutrina perene da Igreja e pela pastoral sadia, o concílio já contribuía para a revolução, tornando-se um componente do movimento revolucionário.

12.1 A afirmação surpreendente segundo a qual o homem “descobre” hoje “paulatinamente as leis da vida social [leges vitae socialis], e duvida da orientação que se lhes deve dar” (Gaudium et Spes 4).

Gostaríamos de saber de que leis se tratam. A “vida social”, nos últimos anos do século XX, aproximou-se cada vez mais do espírito hedonista e anticristão, graças também aos grandes progressos da ciência e da técnica, e à conseqüente ampliação de um bem estar material sem precedentes. Seria isso o “descobrimento” progressivo das “leis da vida social”, pouco conhecidas até então? (pouco conhecidas também para o magistério da Igreja ao longo dos séculos, como é lógico supor?) Visto que o concílio se desfez em elogios ao desenvolvimento, ao progresso, às “conquistas da humanidade” (Lumen Gentium 36; Gaudium et Spes 5 34 e 39; etc.), e posto que a única coisa que lhe preocupava era que concorressem à unidade do gênero humano e que respeitassem os “direitos humanos” (Gaudium et Spes 4 cit.), temos que pensar que eram estes os valores encarnados nas “leis” paulatinamente “descobertas”, valores e leis que constituem as “leis da vida social”, em antítese com a realeza social de Cristo.

Por outro lado, na década de sessenta do século XX não havia a menor sombra de “dúvida” sobre a orientação a ser dada à “vida social”: seu desenvolvimento mostrava no Ocidente uma tendência nítida à instalação da denominada sociedade de consumo, com todas suas engrenagens; as massas, seduzidas pelos slogans revolucionários, pressionavam os governos para que elas pudessem participar do banquete do bem estar, abundante como jamais se imaginara. Para quem ainda lembra bem daqueles anos, a seguinte frase soará mais falsa do que Judas: “Afetados por tão complexa situação, muitos de nossos contemporâneos dificilmente chegam a conhecer os valores permanentes e a analisá-los com exatidão, relacionando-os com os novos descobrimentos. A inquietude os atormenta, e se perguntam entre angústias e esperanças, sobre a atual evolução do mundo” (Gaudium et Spes 4 cit.). O único meio autêntico, a única angústia verdadeira no Ocidente, Oriente Médio e Ásia era provocada pelo comunismo, por causa do poderio militar da União Soviética e da China e de sua ação subversiva em escala mundial. Os partidos comunistas trabalhavam insidiosamente nos países em que tinham chegado a ser fortes (Itália, p. ex.), fazendo chantagem permanente de guerra civil, impedida – era essa a impressão geral – somente pela presença militar da OTAN e dos EUA.

12.2 A perspectiva equívoca de “purificar” os valores do mundo para levá-los a Cristo: “O concílio se propõe a julgar sob esta luz os valores que hoje desfrutam da maior consideração e a devolvê-los à sua fonte divina. Estes valores, procedendo da inteligência que Deus deu ao homem, têm uma bondade extraordinária [valde boni sunt], mas, devido à corrupção do coração humano, sofrem com freqüência desvios contrários a sua devida ordem. Por isso necessitam purificação”(Gaudium et Spes 11).

De que “valores” se tratam? Gaudium et Spes 39 refere-se a eles, ao tentar nos fazer crer (cf. supra 6 seção) que os encontraremos “purificados”, no reino de Deus (“reencontrá-los-emos limpos de toda mancha, iluminados e transfigurados”): a “dignidade humana, a união fraterna e a liberdade”, que se subordinam às exigências do “progresso universal na liberdade humana e cristã” (Lumen Gentium 36 cit.) Façamos algumas observações:

1) não é verdade que tais valores laicistas possuam “uma bondade extraordinária”. O ideal puramente laicista do progresso, que inclui a noção de uma educação puramente racional do gênero humano e exalta a felicidade e o bem estar terrenos, é profundamente anticristão. Portanto não pode ser bom nem ótimo; tampouco podem sê-lo a “dignidade humana”, a “fraternidade universal” ou “a liberdade”, pois todas três integram o famoso lema da Revolução Francesa e constituem, por isso, “direitos humanos” concebidos sob o influxo do deísmo e do racionalismo característicos da filosofia maçônico-iluminista, que inspirou as célebres Cartas de Direito, as dos chamados “Princípios Imortais”.

2) a afirmação segundo a qual tais valores são “bons”, mas “sofrem com freqüência de desvios contrários a sua devida ordem”, é fruto de um erro difundido entre os católicos liberais e seus herdeiros, os modernistas e neomodernistas, que afirmam que tais valores “são o desenvolvimento das idéias cristãs que não foram reconhecidas como tais” (Romano Amerio, Iota Unum, Salamanca, 1996, 21).

De fato, a liberdade, a igualdade e a fraternidade laicistas são uma distorção de seus homônimos cristãos, porque provêm de uma visão do mundo baseada somente no homem enaltecido e soberbo. Esses valores se contrapõem ex sese a seus homônimos cristãos. Na verdade:

a) a liberdade do cristão é interior e vem da fé em Cristo (Jn 8, 31-32); nada tem a ver com a liberdade como autodeterminação absoluta do indivíduo em todas suas escolhas, alheio a toda lei, a qualquer coação (libertas a coatione). É este o fundamento da democracia contemporânea e dos chamados “direitos humanos”. É a esta liberdade laicista que o concílio faz referência ininterruptamente.

b) que todos sejamos irmãos (a fraternidade universal) é compreensível desde o ponto de vista cristão, porque todos procedemos de nosso criador, Deus Pai. Tal fraternidade pressupõe a fé na Santíssima Trindade e se alimenta de amor ao próximo (amado, entretanto, por amor a Deus, não por sua presumida “dignidade humana”, já que nascemos manchados pelo pecado e somos todos pecadores) (v. supra, 5 seção). Daí que a fraternidade cristã não tem nada a ver com a fraternidade política, fundamentada na ideologia igualitária que vem assolando o mundo desde a Revolução Americana e a Francesa, fundamento da democracia contemporânea.

c) a mesma análise (b) convém para a “igualdade política” laicista, que nada tem em comum com a igualdade cristã (isto é, de todos nós, pecadores, frente a Deus e frente às promessas de Nosso Senhor, graças às quais somos todos “co-herdeiros” potenciais do reino (Ef 3, 6)).

A liberdade, a igualdade e a fraternidade são, no sentido cristão, valores principalmente religiosos, fundados na verdade revelada. Os mesmos valores segundo o mundo são principalmente políticos, fruto do deísmo e do racionalismo iluminista, de uma visão de mundo conscientemente hostil ao cristianismo. Por isso a intenção do concílio de “purificá-los” não tem sentido. “Purificar” como? O concílio, para estar em harmonia com o ensinamento de sempre, deveria condená-los e contrapô-los à concepção autenticamente cristã dos mesmos.

Na realidade, não houve “purificação” alguma: o que ocorreu foi a falsificação da doutrina da Igreja mediante sua adaptação a estes valores do mundo. E isso sucedeu graças à adoção de um conceito espúrio do homem, de sua “dignidade”, de sua “vocação”, tirado de uma noção doutrinalmente desviada da Encarnação e da Redenção (v. supra, 5 seção cit.). Um conceito do homem que, em vez de ser “purificado” de sua origem laicista, introduz o “humanismo” do pensamento revolucionário na doutrina da Igreja.

12.3 O apreço injustificado pelos “direitos humanos” desde a época do concílio: “O homem contemporâneo caminha hoje rumo ao desenvolvimento pleno de sua personalidade e rumo ao descobrimento e à afirmação crescentes de seus direitos [...] A Igreja, pois, em virtude do evangelho que lhe foi confiado proclama os direitos do homem [iura hominum], reconhece e muito estima o dinamismo da época atual, que promove tais direitos por todas partes. Devemos conseguir, entretanto, que este movimento fique imbuído [imbuendus] do espírito evangélico e preservado de qualquer aparência da falsa autoridade [pela lei divina; n. da red.]” (Gaudium et Spes 41).

Sabemos que os chamados “direitos humanos” não são os “direitos naturais” admitidos pela Santa Igreja. De fato, estes últimos vêm de Deus e os primeiros vem do homem: baseiam-se na idéia (não cristã) da auto-suficiência e da perfeição intrínseca do homem enquanto homem, antes do pecado original.

“O gênero humano é governado por duas leis: o direito natural e o costume. Direito natural é o que está contido nas Escrituras Sagradas e no Evangelho” (S. Th. IIª; q. 94, a.2): um preceito ético de origem divina, compreendido pela recta ratio. É este o fundamento da observância do Decálogo e de todas as relações jurídicas naturais e positivas, até o ponto em que cada um dos direitos (iura) deve ter por objeto “o que é justo” (ius est objectum iustitiae, S. Th. IIª IIª, q. 57, a.1) ( Justo segundo a ordem moral estabelecida por Deus – pela lex eterna e divina – e confirmada pela revelação e o ensinamento da Igreja, não segundo as opiniões pessoais e os desejos dos homens).

Os chamados “direitos humanos”, pelo contrário, são aspirações subjetivas e universais relativas à aquisição e ao gozo de tudo que o sujeito (o Homem) deseja por considerá-lo conforme a sua dignidade de indivíduo (auto-suficiente moral e intelectualmente, capaz de determinar por si o justo e o bom).

Entre estes “direitos” figura, em primeiro lugar, o direito à felicidade, sancionado na Declaração da Independência dos Estados Unidos da América. Sua reivindicação adota amiúde formas extremistas, facciosas, francamente violentas que expressam a vontade de poder individual e coletiva, característica da incivilidade e da corrupção de nosso tempo.

De que maneira o concílio “persuadiu” o movimento em prol dos direitos humanos a se curvar diante do Evangelho? Ratificando os ensinamentos da Igreja sobre a lei e o direito naturais? Nem sombra disso! Quis, pelo contrário, colocar os chamados “direitos humanos” numa plataforma ideológica católica. E fez isso ao proferir que a dignidade humana é altíssima e sublime porque deriva, em primeiro lugar, da união com Cristo de todo homem em virtude da Encarnação e em segundo lugar, do fato de que a Redenção se verificou para todos no passado: “mas só Deus, que criou o homem à sua imagem e o redimiu do pecado [atque a peccato redemit], é quem pode dar resposta cabal a estes problemas [os traçados pelo desenvolvimento da personalidade dos direitos humanos; n. da red.] [...] O que segue a Cristo, homem perfeito, se faz também mais homem [et ipse magis homo fit]” (Gaudium et Spes 41 cit.) (mas não foi revelado que os que seguem Nosso Senhor, em fé e obras, recebem a potestatem filios Dei fieri [poder de converter-se em filhos de Deus] (Jn 1,12)? Agora nos dizem, ao contrário, que os seguidores de Cristo se tornam “mais homens”! Se isto não é sinal de inversão doutrinal, o que poderá ser?

Note-se bem: o concílio, em vez de combater a idéia errônea da dignidade superior do homem enquanto homem, reforça-a, atribuindo ao homem enquanto tal, a todo homem, uma redenção objetiva e anônima por obra de Cristo! De modo que não é o movimento em prol dos “direitos humanos” que se “imbui” do espírito evangélico: este último, tal como o interpreta a ala progressista do concílio, é que se imbui do espírito destrutivo dos movimentos pró “direitos humanos”.

12.4 A estima e apreço que se tem pela cultura, identificada com a noção neo-iluminista e cientifista. Na época do concílio exaltava-se a “conquista do cosmos”; e o Vaticano II passou a elogiar também a cultura de massas, então emergente, como “humanismo” novo: “Com a expressão “cultura”, em geral, indica-se tudo aquilo com que o homem aperfeiçoa e desenvolve suas inúmeras qualidades espirituais e corporais; procura submeter o orbe terrestre com seu conhecimento e trabalho; torna mais humana a vida social, etc.”, e se propõe como fim último servir “de proveito a muitos; mais ainda, a todo o gênero humano” (Gaudium et Spes 53). O concílio vê com satisfação a emergência de “uma forma de cultura mais universal”, que, com a contribuição da “cultura de massas”, “promove e manifesta a unidade do gênero humano” (Gaudium et Spes 54). Segundo eles, está nascendo um “novo humanismo” à altura da “tarefa que nos foi imposta de edificar um mundo melhor na verdade e na justiça”(Gaudium et Spes 55).

Parecem frases tiradas das atas ou dos cartazes de qualquer sociedade mazziniana do passado. Impossível imaginar uma valorização mais errônea, mais afastada da realidade que esta. Considerar a “cultura de massas” como promovedora de um novo humanismo! (ela, que tem sido a “encarnação” da barbárie de nossos tempos! Ela, a responsável pela destruição de toda a cultura verdadeira, conduzindo-nos ao triste predomínio do “politicamente correto”!)

E chegamos ao domínio da pastoral. Que devem opor os católicos a esta “cultura” laicista? A visão do mundo da tradição católica, fundada no sobrenatural? De modo algum, porque “há de se desenvolver hoje a cultura humana de tal modo, que cultive equilibradamente a pessoa humana íntegra...” (Gaudium et Spes 56). A “cultura” nova é antropocêntrica. E os católicos devem abrir-se a essa cultura, cooperar com ela, levando em conta a “importância da obrigação que lhes cabe de trabalhar com todos os homens na construção de um mundo mais humano”(Gaudium et Spes 57). Deverão lutar por uma cultura “em conformidade com a dignidade da pessoa, sem distinção de origem, sexo, nacionalidade, religião, ou situação social” (Gaudium et Spes 60). Trata-se do tipo de cultura programado pela ONU e suas instituições, na qual desaparecem as caracteristicas da nação catolica de cultura.

O concílio assegura que deve-se aspirar “ao homem universal”, educado mediante a “cultura universal”. Por isso os cristãos devem “infundir o espírito humano e cristão” “nas atividades culturais coletivas próprias do nosso tempo” (Gaudium et Spes 61). Essas idéias repetem-se nos textos do concílio: Lumen Gentium 36 afirma que os fiéis seculares devem cooperar “com o progresso universal na liberdade humana e cristã”. Põe-se “humana” e “cristã” no mesmo plano. Aliás, o “humano” fica acima do “cristão”, porque o diálogo com o mundo fundamenta-se obviamente nos valores humanos, aos quais devem adaptar-se os valores cristãos. O decreto sobre o apostolado dos leigos (Apostolicam Actuositatem 27) assegura que os valores comuns (humanos) exigem também não poucas vezes a cooperação “com quem não leva o nome de cristão, mas reconhece estes valores”. Os valores comuns hão de unir os homens num nível acima das religiões, como propõe a “religião da Humanidade”.

12.5 O apreço pelo “direito à informação”, quer dizer, “à obtenção e divulgação de notícias”, baseado numa valorização utópica de suas vantagens: “o intercâmbio público de notícias sobre fatos e coisas facilita aos homens um conhecimento mais amplo e contínuo da atualidade, de modo que possam contribuir eficazmente ao bem comum e ao maior progresso de toda a sociedade humana” (Inter Mirifica § 5).

A experiência encarregou-se de demonstrar que nada disso corresponde à verdade: o bombardeio quotidiano de notícias de todo tipo por parte dos meios de comunicação de massa não produziu absolutamente “um conhecimento mais amplo e contínuo da atualidade”, capaz de “contribuir eficazmente ao bem comum e ao maior progresso da sociedade humana”. Pelo contrário, produziu uma espécie de saturação mental e a conseqüente tendência generalizada ao debilitamento da capacidade de discernir, de compreender efetivamente o significado dos fatos, esquecidos com a mesma rapidez com que são aprendidos. Desde o tempo do concílio começou-se a compreender que o circo planetário da informação é uma grande fábrica de nada.

12.6 A valorização otimista do homem (como se sua inteligência e sua vontade não estivessem feridas pelo pecado original), que aparece em quase todos os artigos da Gaudium et Spes, carece de qualquer conexão com a realidade, porque volta a propor a idéia não cristã e utópica de um homem bom por natureza, de um gênero humano naturaliter cheio (até transbordar!) dos melhores sentimentos.

O homem da Gaudium et Spes (4-11) exerce as atividades de sua inteligência e vontade com suas próprias forças, investiga os sinais dos tempos e perscruta-se para compreender e conquistar a natureza, toma consciência de sua dignidade, de seus “direitos” limitados pelas “contradições” provocadas pelo desenvolvimento social. Nunca se diz que há também nele uma tendência radical ao mal, que obscurece seu juízo e desvia sua vontade, razão pela qual não pode haver um juízo claro nem uma vontade reta sem a ajuda da graça (“sem mim nada podereis fazer”: Jn 15,5). O sobrenatural não é mencionado porque está excluído de fato do “humanismo” propugnado pelo Vaticano II, cujo otimismo pinta uma imagem açucarada, retórica e falsa do homem e de suas aspirações. Fica claro nesta passagem: “as pessoas e os grupos sociais estão sedentos de um vida plena e de uma vida livre, digna do homem, pondo a seu serviço as imensas possibilidades que lhes oferece o mundo atual” (Gaudium et Spes 9). Uma imagem tão edificante, tão “politicamente correta”, das reivindicações individuais e sociais, efetuadas em nome dos “direitos humanos”, esquecendo a realidade, o fato de que, além de “uma vida plena e uma vida livre” (expressão vaga), as pessoas e os grupos sociais aspiram ao poder, ao domínio sobre os outros, ao gozo, ao prestígio, ao comando, à vingança das ofensas sofridas, reais ou presumidas. Por outro lado, vida “livre” e “plena” para o católico é a satisfação das reivindicações materiais? Ou é o cumprimento pleno da vontade de Deus, segundo os ensinamentos de Nosso Senhor, uma vida que não é “livre” nem “plena” aos olhos do mundo, e sim aos olhos de Deus?

A visão otimista do homem induz o concílio a dar uma definição não católica do homem universal ou “pessoa humana integral”: “cada homem tem o dever de conservar o conceito de pessoa humana integral, no que se destacam os valores da inteligência, vontade, consciência e fraternidade; todos baseados em Deus criador, saneados e elevados maravilhosamente em Cristo” (Gaudium et Spes 61). Ao texto falta consistência lógica, porque a inteligência, a vontade e a consciência são faculdades do homem antes de serem valores, enquanto que a fraternidade não pode ser mais que um valor. Tudo isso é posto no mesmo plano. Mas onde está o valor cristão por excelência, a caridade? Onde a humildade, a obediência, o espírito de sacrifício, o desejo de agradar a Deus em tudo? Afirma-se de novo que Jesus veio “elevar” o homem, “saneando” suas qualidades, quer dizer, limpando-as de toda imperfeição. Ele, pelo contrário, não se encarnou para exaltar nossas qualidades, e sim para curar nossas enfermidades, a fim de que pudéssemos limpar nossas almas pela fé n’Ele: “não vim chamar os justos mas os pecadores” (Mc 2,17).

12.7 A interpretação do processo histórico em curso como uma tendência à unidade do gênero humano (cf. supra 2,7), no fim do qual se dissolveriam as nações: “A própria história está submetida a um processo de aceleração, impossível de não ser seguido. O gênero humano participa da mesma sorte e já não se dispersa em várias histórias distintas” (Gaudium et Spes 5: Consortionis humanae sors una efficitur et non amplius inter varias velut historias dispergitur).

Esta asserção conciliar em relação à “filosofia da história” foi confirmada? À primeira vista parece que sim, neste annus Domini de 2002. Algumas precisões, entretanto, se fazem necessárias:

1) A unificação sócio-econômica do gênero humano estava tomando corpo graças ao desenvolvimento material da ciência, da técnica e da economia, com o concurso da cultura de massas. Um desenvolvimento que hoje parece ter desembocado numa espécie de forma econômica universal representada pelo chamado “mercado global”, pelo capitalismo em sua pior forma, ultraliberal e especulativa. É um monstro econômico e financeiro que nenhum Estado consegue controlar.

2) A forma política universal deste processo (uma vez esgotada a utopia comunista) consolidou-se na democracia de massas, a dos “direitos humanos”, corrupta e corruptora, que gravita sobre nossos ombros da maneira que sabemos, inimiga de todas as verdades do cristianismo.

3) Trata-se de um processo artificial, provocado conjuntamente pela avidez humana levada ao extremo, pela política de poder de certas nações e pela adesão da Igreja às idéias do século e não pelo desejo natural dos povos, não pelas exigências políticas e econômicas objetivas.

4) Tal processo, com todos seus males, estava ainda em estado embrionário no início da década de sessenta, dominado pelo dualismo democracia x comunismo e pela contraposição frontal dos chamados “blocos”. Se o concílio tivesse condenado este processo, é quase certo que este não teria atingido as dimensões quantitativas e qualificativas de hoje. De fato, a adesão por parte da hierarquia contribuiu poderosamente à denominada “unificação do gênero humano”. A Igreja “conciliar” converteu-se hoje num dos fatores que concorrem para manter a artificial “unidade” do gênero humano.

5) Esta unidade é apenas aparente, o que se demonstra pelo fato de que o islã, enriquecido com o petróleo, renovou seu ímpeto ofensivo em escala mundial, penetrando solidamente em muitos países (os europeus em particular), nos quais implantou colônias fortes, compactas e agressivas. O dualismo político da época dos “blocos” renovou-se de maneira mais insidiosa, com o inimigo intra muros, sem declarações de guerra, ou melhor, sob as bandeiras da paz, da unidade e dos “direitos humanos”. O islã, que identifica religião e política, é constitucionalmente impermeável a toda forma de democracia, e considera seu dever “religioso” conquistar o mundo todo para Alá e Maomé. Por outro lado, o gênero humano “unificado” na paz, no progresso material, na democracia, é um gênero humano aberto, como nunca foi no passado, à conquista islâmica (sem excluir a hipótese de um regresso súbito do comunismo, dado o caráter ambíguo da adesão da Rússia à “democracia”).

6) A constatação, aparentemente verdadeira, da inviabilidade de diversificação do gênero humano “em várias histórias dispersas”, não corresponde à realidade. Sob o ponto de vista católico, a Igreja tem o dever de preocupar-se antes de tudo com nações e sociedades católicas, de defender sua individualidade, no plano dos princípios e da política. Decorre daí a obrigação da Igreja de procurar que sua história seja tão “diferente” quanto possível da história do resto do mundo que lhe é hostil. Em outras palavras: a defesa da individualidade nacional católica exige o reconhecimento do direito a uma história “diversa”. Para dar um exemplo, no Antigo Testamento Deus onipotente garantiu sempre esse direito a Israel que, apesar de frágil e pequeno, quando observava os divinos mandamentos nunca era vencido pelos inimigos. A defesa da individualidade católica também exige o direito de se construir uma sociedade segundo os princípios do cristianismo, direito que o concílio ignora abertamente porque optou pela sociedade “pluralista” (Gaudium et Spes 75; Gravissimum Educationis 67).

XIII - A pastoral equivocada na reforma da liturgia sagrada

13.0 A ordem de revisar os livros litúrgicos o “quanto antes”, inclusive as rubricas relativas à participação dos fiéis (Sacrossantum Concilium 25) ainda que no artigo 23 tenha-se recomendado certa prudência: “[...] não se introduzam inovações se não o exige uma utilidade verdadeira e certa na Igreja, e só depois de ter tido a preocupação de que as novas formas se desenvolvam, por assim dizer, organicamente, a partir das já existentes [processo que exige um longo tempo; n. da red.]

13.1 A exortação que dá preferência à celebração comunitária dos ritos: “Sempre que os ritos, cada qual segundo sua natureza própria, admitam uma celebração comunitária com assistência e participação dos fiéis, esta deverá ser preferida a uma celebração individual e quase privada”, sobretudo para a Santa Missa e os sacramentos (Sacrossantum Concilium 27.5). Nesta desvalorização da “celebração individual e quase privada” pulsa um eco da hostilidade de Lutero contra as “missas privadas” (v. supra 3.5).

13.2 Todos os artigos que incitam a adaptar os ritos (através de experiências e criatividade) às línguas vernáculas, à mentalidade e à cultura modernas (e, conseqüentemente, ao espírito do século), aos costumes nacionais e locais, ou que ressuscitam formas arcaicas dos mesmos (Sacrossantum Concilium 24 e 36 (parág. 243), 37, 38, 39, 40, 44, 50, 53, 54, 63, 65, 67, etc.; 77, 79, etc.; 90, etc.; 101, 119, 120, 128) (v. supra 3.5).

13.3 O convite a incrementar o número de casos em que se pode conceder a comunhão sob as duas espécies (Sacrossantum Concilium 55).

13.4 A extensão da faculdade de concelebrar, prática litúrgica reservada a algumas cerimônias particularmente solenes (especialmente em ordenações sacerdotais) e que necessita ainda de exames mais detalhados (veja-se Denz. 3928: Decreto do Santo Ofício de 23/5/1957), junto com a ordem de compor um novo rito (Sacrossantum Concilium 57 e 58).

13.5 A mitigação da severa proibição da communicatio in sacris com os “ortodoxos” ou “orientais” cismáticos (Orientalium Ecclesiarum 26 a 29) e com os “irmãos separados” em geral (Unitatis Redintegratio 8).

13.6 A concessão ao bispo da faculdade de regulamentar a disciplina da “concelebração” em sua diocese (Sacrossantum Concilium 57, parágrafo 1, 2 e 2,1).

13.7 A faculdade de celebrar a Santa Páscoa no mesmo Domingo que celebram os “ortodoxos” cismáticos, segundo seu calendário, “para fomentar a unidade entre cristãos da mesma região ou país” (Orientalium Ecclesiarum 20).

13.8 “Aos orientais separados [os chamados “ortodoxos”] que, movidos pelo Espírito Santo, se aproximem da unidade católica, não se lhes exija mais do que a simples profissão de fé católica” (Orientalium Ecclesiarum 25).

XIV - A má pastoral no estudo e no ensinamento da doutrina

14.0 A atribuição aos bispos do poder de controlar as versões em vernáculo da Santa Bíblia (em vez de reservar tal poder à Santa Sé (Sacrossantum Concilium 36, parágrafo 4; Dei Verbum 25).

14.1 A seguinte ordem: “Nas celebrações sagradas deve haver leituras da Sagrada Escritura mais abundantes, mais variadas e mais apropriadas [abundantior, varior et aptior]” (Sacrossantum Concilium 35; cf. Sacrossantum Concilium 51). A ordem que prescreve a todos os fiéis um contato direto e grande com o texto sagrado. “É conveniente que os cristãos tenham amplo acesso à Sagrada Escritura” (Dei Verbum 22; cf. Dei Verbum 25).

Trata-se de ordens contrárias a todo o ensinamento precedente que, contra protestantes e jansenistas, havia sempre cercado de cautela tais leituras. Muitas passagens do Antigo e do Novo Testamento dão margem a interpretações errôneas e a Igreja prudentemente confiava os textos à mediação da liturgia, da catequese, da homilia (Denz. 1429: Clemente XI ao condenar Quesnel; Denz 1567: Pio VI, Auctorem Fidei).

14.2 A exortação para que se traduzam os textos sagrados “com a colaboração dos irmãos separados” (Dei Verbum 22 cit.).

14.3 A ordem para que se façam “edições da Sagrada Escritura para uso também dos não cristãos, munidas de notas convenientes e adaptadas às suas condições” (Dei Verbum 25 cit.).

14.4 A exortação para que se promovam “reuniões mistas destinadas ao estudo de questões teológicas sobretudo onde cada um possa tratar os demais de igual para igual” (Unitatis Redintegratio 9).

14.5 Os artigos 12 e 24 da Unitatis Redintegratio, que obrigam à “cooperação” e iniciativas “conjuntas” com os irmãos separados (e com todos os homens), elevando essas atitudes à categoria de princípios gerais de pastoral.

14.6 A exortação para usar as ciências profanas na pastoral, “visto que os mais recentes estudos e descobertas científicas, históricas e filosóficas (quais eram, no entanto, durante o concílio, estas “novas descobertas” no campo da história e da filosofia? Ardemos em desejo de conhecê-las; n. da red.) suscitam novos problemas, que trazem conseqüências práticas e reclamam novas investigações teológicas [...]. Tem-se de reconhecer e empregar suficientemente no trato pastoral não só os princípios teológicos, mas também as descobertas das ciências profanas, sobretudo em psicologia e sociologia, levando os fiéis a uma vida de fé mais pura e mais madura (também gostaríamos de ter notícia das “descobertas” nestes últimos campos; n. da red.)” (Gaudium et Spes 62).

XV - A má pastoral na formação dos religiosos, seminaristas, sacerdotes e no ministério episcopal

15.0 “A renovação adequada da vida religiosa traz ao mesmo tempo, por um lado, a volta às fontes de toda vida cristã e à inspiração primitiva dos institutos, e por outro, a adaptação destes às diversas condições dos tempos” (Perfectae Caritatis 2). Temos pois, ao mesmo tempo, a “inspiração primitiva” dos institutos religiosos e sua adaptação às diversas condições dos tempos, que hoje são as do mundo moderno secularizado, de cultura laicista, etc. (vide supra, nos “Exemplos de ambigüidades e contradições contidos nos textos do concílio”, que figuram na introdução desta sinopse). Acaso pode o Espírito Santo soprar simultaneamente em duas direções opostas; uma boa e outra má?

15.1 “A norma da vida, de oração e de trabalho, estará em consonância com as condições físicas e psíquicas atuais dos membros e, segundo o caráter de cada instituto, com as exigências da cultura e com as circunstâncias sociais e econômicas, em todas as partes, sobretudo nas missões [...]. Portanto revisem-se adequadamente as constituições, diretórios, livros de preces, de cerimônias e outros semelhantes, e adaptem-nos aos documentos deste sagrado concílio, suprimindo todo o antiquado” (Perfectae Caritatis 3). Como qualquer um pode ver, trata-se de uma ordem para aniquilar o passado.

15.2 Os princípios e diretrizes expostos devem aplicar-se também aos institutos consagrados puramente à vida contemplativa (Perfectae Caritatis 7).

15.3 Aos membros da “vida religiosa leiga” exorta-se igualmente “a acomodarem suas vidas às exigências modernas” (Perfectae Caritatis10).

15.4 Os superiores das ordens religiosas devem “dirigir seus súditos [...] com respeito à pessoa humana, promovendo sua subordinação voluntária” (Perfectae Caritatis 14). E se em certos casos a subordinação não quiser ser voluntária? Que farão os “superiores”?

15.5 A clausura papal para os religiosos de vida puramente contemplativa “deve adaptar-se às condições de tempo e lugar, suprimindo, depois de escutados os desejos dos próprios mosteiros, todos os costumes antiquados” (Perfectae Caritatis16).

15.6 E aqui está o artigo que formaliza a penetração do espírito do século nos conventos e mosteiros: “Mas para que esta adaptação da vida religiosa às exigências de nossos tempos não seja meramente externa [sit mere externa] [os religiosos] [...] devem instruir-se convenientemente, segundo a capacidade intelectual e a índole pessoal de cada um, sobre os costumes reinantes, as normas de sentir e pensar da vida social moderna [!]”. E a coisa não pára aí: “Esforcem-se toda a vida os religiosos em aperfeiçoar cuidadosamente esta cultura espiritual, doutrinal e técnica, e os superiores empenhem-se em fornecer-lhes, com todos os meios, as ajudas e o tempo necessários” (Perfectae Caritatis18).

15.7 O exercício do apostolado dos institutos e mosteiros sui iuris deve situar-se entre “as conferências ou conselhos de superiores maiores erigidos pela Santa Sé” e as “as conferências episcopais” (Perfectae Caritatis 23), subtraindo-se assim ao controle efetivo da Santa Sé. Além disso, “conferências dessa índole podem estabelecer-se também para os institutos seculares”(ibid.).

15.8 Visto que “o uso correto dos instrumentos de comunicação social [...] requer uma formação e uma experiência apropriadas, [...] as iniciativas que estejam aptas para conseguir este fim devem ser favorecidas, multiplicadas e direcionadas [...] nas escolas católicas de qualquer grau, nos seminários e nas associações seculares (Inter Mirifica 16).

15.9 “Não se podendo dar senão leis gerais para tamanha diversidade de povos e de regiões, estabeleçam-se em cada nação ou rito “normas peculiares de formação sacerdotal”, que serão promulgadas pelas conferências episcopais, revistas em tempo determinado e aprovadas pela Sé Apostólica. De acordo com tais normas, as leis universais se acomodarão às circunstâncias especiais de lugar e tempo” (Optatam Totius, 1).

Essa norma priva a Santa Sé da regulamentação efetiva da formação sacerdotal: a Santa Sé se vê forçada a acatar tudo que for aprovado pelas conferências episcopais. O princípio, repetido no artigo 2 do decreto Optatam Totius, enuncia que a formação sacerdotal deve ser feita inteiramente “conforme as condições dos lugares”.

15.10 A Obra Pontifícia das Vocações Sacerdotais deve servir-se também “de todos os meios úteis oferecidos pelas ciências psicológicas e sociológicas” (Optatam Totius 2). A psicologia moderna não crê na existência da alma, nem na do espírito, nem na da consciência, que é reduzida a uma função psíquica do corpo. Por outro lado, o “cientificismo” da sociologia é só de tipo descritivo: não aprofunda nada. O certo é que estas ciências estavam na moda nos tempos do concílio, e por isso impressionavam os “novos teólogos”.

15.11 “Convém que os estudos sejam organizados [nos seminários menores] de modo que os alunos possam continuá-los em outros lugares sem prejuízo, caso mudem de gênero de vida” (Optatam Totius 3).

15.12 Nos seminários, “as normas da educação cristã [...] sejam convenientemente completadas com as últimas descobertas da sã psicologia e pedagogia”(Optatam Totius II; ver também Optatam Totius 20). Cabe observar que deveria ter sido mostrada, pelo menos, a pressuposta conformidade da pedagogia atual com os princípios do catolicismo.

15.13 “Antes que os seminaristas comecem os estudos propriamente eclesiásticos, devem adquirir uma formação humanística e científica semelhante à que os jovens de seu país necessitam para iniciar seus estudos superiores”(Optatam Totius 13). Mas os que entram no seminário o fazem porque desejam tornar-se sacerdotes, não pessoas cultas no sentido do mundo. Não constitui um obstáculo para a vocação, a cultura profana atual? Não cabe aos seminaristas adaptar-se a tal cultura, mas ela é que deve adaptar-se a eles, na medida do possível e em doses convenientes .

15.14 “Devem-se ensinar as disciplinas filosóficas [no seminário] [...], levando-se em conta as investigações filosóficas modernas [...], de forma que os alunos, levando em consideração a índole da época presente, se preparem para dialogar oportunamente com os homens de seu tempo”[note-se: para “dialogar”, não para converter]. A história da filosofia deve ser ensinada de modo que os alunos, ao mesmo tempo que captam os primeiros princípios dos vários sistemas, retenham o que neles se vê de verdadeiro e possam descobrir as raízes dos erros e rebatê-los”(Optatam Totius 15).

Duas considerações nos permitirão enxergar os erros dessa pastoral:

1) Exige-se o conhecimento do pensamento moderno não para converter as almas a Cristo, mas para facilitar o diálogo com o mundo.

2) Os seminaristas deverão somente conhecer bem a “índole da época” presente, separando nela o bem do mal para poder apreciar o primeiro. Daí que, no campo da filosofia, devem ser capazes de reter, no meio dos diferentes sistemas filosóficos, “o que neles se vê de verdadeiro”, distinguindo-o do falso, e de “descobrir” nada menos que “as raízes dos erros e rebatê-los”. Isto é encomendar a simples seminaristas uma tarefa superior a suas forças.

Não é fácil refutar com as próprias forças os erros do pensamento moderno, um pensamento inimigo de todas as verdades fundamentais do cristianismo; é mister para isto possuir uma mentalidade especulativa e uma vasta cultura, o que está ao alcance de poucos. Além disso, o erro na filosofia mistura-se com verdades, é exposto de maneira apropriada, articulada e até intelectualmente fascinante. Sua refutação deveria ser confiada aos docentes, não às débeis forças dos seminaristas em nome de uma noção absurda da liberdade pessoal. Como quer que seja, são patentes, no artigo que comentamos, as perversas intenções da “Nova Teologia”, completamente fascinada pelo pensamento moderno, que conseguiu ser introduzido nos seminários para corromper a formação tomista tradicional do clero, ainda que esta seja mantida nominalmente.

15.15 “Mas como a instrução doutrinal não deve tender unicamente à comunicação de noções, mas à formação verdadeira e interior das almas, serão revisados os métodos didáticos...” (Optatam Totius 17).

A didática anterior era mera comunicação de noções... Trata-se de uma acusação com fundamentos? Não nos parece, de modo algum. A acusação constitui característica de quem se dispõe a subverter até as raízes de um método didático: uma acusação típica da pedagogia moderna, voltada continuamente para a experiência e a reforma, inimiga declarada do exercício da memória e do conhecimento sistemático.

15.16 (Os presbíteros ou sacerdotes) “respeitem com cuidado a justa liberdade que todos têm na cidade terrestre [parece proibição explícita às conversões]. Escutem com gosto os leigos [...] a fim de reconhecer juntamente com eles, os sinais dos tempos. Examinando os espíritos para ver se são de Deus (I Jo 4, 1), descubram com o sentido da fé os multiformes carismas dos leigos, tanto os humildes como os elevados, etc.” (Presbyterorum Ordinis 9).

Será que temos aqui uma abertura implícita ao movimento carismático? Em todo caso, a autoridade do conjunto dos fiéis passa a concorrer com a dos padres. Além disso: “atendendo às normas do ecumenismo (cf. Conc. Vat. II, decr. Unitatis Redintegratio: De oecumenismo 21, ano l964: AAS, 57 (l965) pp. 90 e ss), não devem esquecer os irmãos que não desfrutam de plena comunhão eclesiástica conosco” (Presbyterorum Ordinis ibid.). Note-se o adjetivo “plena”.

15.17 Nesse mundo de hoje, imerso num grande processo de transformação, “os presbíteros, sobrecarregados pelas obrigações de seu ministério e por elas distraídos, podem pensar com angústia (non sine anxietate) como conseguir a unidade de sua vida interior mergulhados na magnitude da ação exterior” (Presbyterorum Ordinis 14). O conceito se repete em Presbyterorum Ordinis 22: “os ministros da Igreja e muitas vezes os fiéis cristãos sentem-se nesse mundo como que alheios a ele, buscando angustiadamente meios idôneos e palavras para poderem comunicar-se com ele”.

Tais juízos não correspondem à realidade. A partir da segunda metade da década de cinqüenta, o que preocupava era a diminuição das vocações, a descristianização emergente da sociedade, as tendências modernistas que renasciam na mentalidade do clero: sentia-se no ar um trabalho surdo, lento e contínuo, que começava a difundir-se, jogando as almas na tibieza. Espalhava-se tacitamente um espírito, ainda minoritário e fragmentado, que incitava ao relaxamento e à abertura ao mundo. Mas a angústia de tipo existencial, em moda no segundo pós-guerra, experimentavam-na somente os “novos teólogos”, de fé duvidosa, servidores fiéis do pensamento contemporâneo e dos atrativos do século (como Karl Rahner, jesuíta e teólogo de mais efeito que mérito que, entre outras coisas, manteve relações com uma mulher, segundo ficou público há poucos anos).

Mas ninguém sentia a necessidade, especialmente entre os fiéis, de uma reforma litúrgica (ainda por cima de uma tão radical como a que impôs uma minoria destrutiva com a cumplicidade de João XXIII). Ninguém tinha necessidade angustiante de uma “adaptação” ao mundo.

15.18 A caridade mova os presbíteros a “investigar prudentemente novos caminhos [vias novas] para o maior bem da Igreja” (Presbyterorum Ordinis 15).

15.19 “Pela amigável e fraterna convivência entre si e com os demais homens, os presbíteros podem aprender a cultivar os valores humanos e a apreciar os bens criados como dons de Deus” (Presbyterorum Ordinis 17). Mas a convivência entre os fiéis e os sacerdotes não é, nem pode ser, “amigável e fraterna”, como se se tratasse de uma relação entre iguais (!). Os fiéis confessam seus pecados ao padre, e por seu intermédio Cristo os absolve. Ele também goza do privilégio de consagrar a sagrada hóstia. Enquanto sacerdote, os fiéis não podem considerá-lo como um igual, certamente. E, de fato, sempre sentiram pelos sacerdotes, a quem recorrem também em busca de conselho sobre questões práticas importantes, um respeito hierárquico. E então, que “valores humanos” cultivará o presbítero? Todos? Toda a “mitologia” relativa ao progresso, à democracia, à liberdade, espalhada abundantemente nos textos do concílio?

15.20 Os sacerdotes devem conhecer “bem”, além dos documentos do magistério, as obras “dos melhores escritores de teologia”, e também “a cultura humana” e “as ciências sagradas”, visto que, “em nossos tempos” ambas “avançam com um ritmo novo”. Assim poderão “estabelecer com mais vantagens o diálogo com os homens do seu tempo”. (Presbyterorum Ordinis 19).

Mencionando as “ciências sagradas” que “avançam com um ritmo novo” é verossímil que se pretenda dar crédito à “neoteologia”, que apresenta como “achados” as invenções e elocubrações da exegese protestante, proscrita pela autoridade eclesiástica até o último concílio.

15.21 Para a manutenção econômica do clero: “há que deixar o sistema que chamam beneficial, ou ao menos há que reformá-lo” (Presbyterorum Ordinis 20). O sustento do clero é confiado exclusivamente aos fiéis (ibid.). Não se fala de ajuda por parte da autoridade civil, em vista do regime de separação propugnado pelo Vaticano II (v. supra 10.6). A obrigação que lhes cabe de prover tal sustento funda-se no fato de que “os que desempenham ou desempenharam alguma função [munus] para o serviço do povo de Deus” têm direito a um “sustento digno” (Presbyterorum Ordinis 20 cit.). Assim, pois, confirma-se que o significado do munus sacerdotal muda para o concílio: mais do que sacerdos Dei [sacerdote de Deus], o “presbítero é sacerdos populi Dei [sacerdote do ‘povo de Deus’].

15.22 A subversão da diocese, que já não é “a circunscrição ou o cargo para cujo governo ou desempenho é nomeado o bispo” (Enciclopédia del diritto, Milão, 1964, t. XIII, voz Diocese), e sim, “uma porção do povo de Deus que se confia a um bispo para que a apascente com a cooperação dos presbíteros” (Christus Dominus 11). É mister que “as delimitações da diocese [...] se revisem de maneira adequada [ad congruam recognitionem]”, “segundo as exigências do bem das almas” e, portanto, “com prudência”, mas quam primum, quer dizer, “o quanto antes” (Christus Dominus 22) (nota-se a contradição, típica do Vaticano II).

Subversão, dizíamos, porque a recognitio das dioceses deve ser feita da seguinte maneira: “dividindo-as ou desmembrando-as ou unindo-as, ou mudando seus limites, ou elegendo um lugar mais conveniente para as sedes episcopais, ou, finalmente, dispondo-as segundo um nova ordem, sobretudo tratando-se das que abrangem cidades muito grandes” (Christus Dominus 22). O concílio desencadeia um autêntico furacão sobre as dioceses, mudando tudo, até as bases, e o mais rápido possível: território, sedes episcopais, ordem interna. A nova diocese deveria nascer de imediato; deixam a antiga cair no esquecimento.

15.23 No exercício de seu magistério, o bispo deve ensinar e apreciar, além dos valores tradicionais (p. ex. o constituído pela família), os valores laicistas da “pessoa humana, com sua liberdade, e a mesma vida do corpo [corporis vita]”, assim como a sociedade civil,[...] o trabalho e o descanso, as artes e os inventos técnicos...” (Christus Dominus 12). Deve mostrar também, segundo as diretrizes de João XXIII na Pacis in terris, citadas expressamente pelo concílio: “como resolver [!] os gravíssimos problemas relativos à possessão dos bens naturais, a seu incremento e reta distribuição, e os relativos à paz e à guerra e à vida de todos os povos?” (ibid.). De acordo com João XXIII, o concílio não vacila em afirmar que os bispos (cuja vocação é sobretudo a de ser pastores de almas) têm o dever de ensinar (aos governantes) como resolver os problemas fundamentais dos Estados modernos (!). Estamos diante do diletantismo puro e da politização do ministério episcopal. Por acréscimo, o bispo deve “explicar a doutrina cristã com métodos adaptados às necessidades dos tempos [ou seja, de uma maneira moderna] [...] e buscar e promover o diálogo com todos os homens”. (Christus Dominus13). Tem de “ordenar sua vida de forma que responda às necessidades dos tempos” (Christus Dominus16) (asserção misteriosa; o que quer dizer exatamente?). Além disso, “para procurar melhor o bem dos fiéis, segundo a condição de cada um, esforce-se por conhecer bem suas necessidades, as condições sociais em que vivem, servindo-se de meios oportunos, sobretudo a investigação social” (ibid.).

Verdadeira fixação do concílio pela sociologia pastoral! No artigo 17, Christus Dominus recomenda aos bispos, sem rodeios, a instauração de “oficinas de sociologia pastoral” (seja o que for que isso signifique), encarregadas de “investigações sociais e religiosas”(!). “Os sagrados pastores, dedicando-se ao cuidado espiritual de sua grei, atendam também ao bem e à prosperidade civil, unindo seu labor eficaz ao das autoridades públicas” (Christus Dominus19). O bispo, artífice também de nosso bem estar material? Acaso é para isto que se consagram bispos, sucessores dos Apóstolos?

XVI - A má pastoral na formação dos missionários e nas diretrizes dos mesmos

16.0 A atividade missionária deve desenvolver-se “de modo que da semente da palavra de Deus cresçam as igrejas autóctonas particulares em todo o mundo suficientemente organizadas e dotadas de energia próprias e de amadurecimento. Providas convenientemente de sua própria hierarquia unida ao povo fiel e de meios conaturais ao pleno desenvolvimento da vida cristã, contribuam para o bem de toda a Igreja” (Ad Gentes 6).

16.1 “Os missionários [...] suscitem comunidades de fiéis tais que [...] exercitem as funções que Deus lhes confiou: sacerdotal, profética e real [...]. Cultive-se o espírito ecumênico entre os neófitos [!]”, que devem “colaborar fraternalmente com os irmãos separados, segundo as normas do decreto sobre o ecumenismo” (Ad Gentes 15).

16.2 Também na formação do clero indígena prescreve-se para os alunos que “sejam educados no espírito do ecumenismo e se preparem convenientemente para o diálogo fraterno com os não cristãos” (não para convertê-los); isto exige, além disso, “que os estudos para o sacerdócio se façam, tanto quanto possível, em comunicação e convivência com o povo do próprio país [de origem dos alunos]” (Ad Gentes 16; veja-se também Ad Gentes 29 e 36).

16.3 “Esforcem-se os Institutos religiosos que trabalham na plantação da Igreja [em terras de missão] por expor e comunicar, segundo o caráter e a idiossincrasia de cada povo, as riquezas místicas de que estão totalmente cheios, e que caracterizam a tradição religiosa da Igreja. Considerem atentamente o modo de aplicar à vida religiosa cristã as tradições ascéticas e contemplativas, cuja semente Deus havia espalhado com freqüência nas antigas culturas antes da proclamação do Evangelho” (Ad Gentes 18).

Gostaríamos de saber quais são essas “tradições ascéticas e contemplativas” já presentes, em estado de “semente”, nas antigas culturas pagãs. Trata-se do mesmo erro contido na Lumen Gentium 8, que vê “elementos de salvação” fora da Igreja, não somente entre os chamados “irmãos separados”, mas até nas religiões pagãs.

16.4 “E para que a atividade missionária dos bispos, em prol de toda a Igreja, possa exercer-se com mais eficácia, convém que as conferências episcopais dirijam os assuntos referentes à cooperação organizada do próprio país. Tratem os bispos em suas conferências...” Segue o catálogo, bastante extenso, das matérias reservadas à competência dos bispos, sem controle algum, na prática, por parte da Santa Sé (Ad Gentes 38).

XVII - A má pastoral nas diretrizes para o apostolado dos leigos

17.0 “As associações apostólicas seculares” deverão “adaptar sua formação e sua experiência” para o “uso correto” dos instrumentos de comunicação social (Inter Mirifica 16, cit..; v. supra 15,8).

17.1 Os leigos devem contribuir “para o progresso universal na liberdade cristã e humana” (Lumen Gentium 36 cit.. É o mito laicista do progresso, abraçado pelo concílio, sua exaltação da “liberdade”, v. supra 6.2).

17.2 “A aceitação das relações sociais e sua observância devem ser consideradas por todos como um dos principais deveres do homem contemporâneo. Porque quanto mais se unifica o mundo, mais os deveres do homem ultrapassam os limites dos grupos particulares e se estendem pouco a pouco ao universo inteiro. Isso é impossível se os indivíduos e os grupos sociais não cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade as virtudes morais e sociais [Quais? A menção é genérica; n. da red.], de forma que se convertam verdadeiramente em homens novos e em criadores de uma nova humanidade, com o auxílio necessário da divina graça” (Gaudium et Spes 30). Assim, o concílio invoca a ajuda da graça divina num artigo consagrado à “superação da ética individualista” – sem mais especificações – e à exaltação de uma visão “social” da ética, recordando as falsas doutrinas do socialismo e do comunismo (!).

17.3 “As vitórias da humanidade são um sinal da grandeza de Deus e fruto de seus inefáveis desígnios” (Gaudium et Spes 34).

E quais seriam estas “vitórias da humanidade”? A construção do canal de Suez? A conquista da jornada de trabalho de 8 horas? O sufrágio universal? O descobrimento da penicilina? A propaganda comunista que falava com gosto das “vitórias da humanidade em marcha”, etc.?

17.4 “A atividade humana procede do homem e se ordena a ele. Com sua ação, ele transforma as coisas e a sociedade ao mesmo tempo que se aperfeiçoa. Aprende muito, cultiva suas faculdades, se supera e transcende” (Gaudium et Spes 35).

“A atividade humana” não deveria estar ordenada para Deus, ao menos indiretamente? Tudo que fazemos não se relaciona sempre com a glória de Deus e com a consecução final do Sumo Bem?

17.5 “Seguindo o exemplo de Cristo, que exerceu o artesanato, alegrem-se os cristãos de poderem exercer todas suas atividades temporais, fazendo uma síntese vital do esforço humano, familiar, profissional, científico ou técnico, com os valores religiosos, sob cuja altíssima hierarquia tudo coopera para a glória de Deus” (Gaudium et Spes 43). Ao realizar tal síntese, “os leigos” atuarão “individual e coletivamente, como cidadãos do mundo” e “colaborarão com gosto com aqueles que buscam idênticos fins” (ibid.).

17.6 “Tudo que promove a comunidade humana na ordem da família, da cultura, da vida econômico-social, da vida política, tanto nacional quanto internacional, proporciona também uma boa ajuda, segundo o plano divino, à comunidade eclesial, já que esta depende das realidades externas” (Gaudium et Spes 44).

A inversão da missão da Igreja alcança aqui seu ápice no elogio do mundo.

17.7 “Vivam os fiéis numa união estreita com os demais homens de seu tempo, esforcem-se por penetrar sua maneira de pensar e sentir, cuja expressão é a cultura. Unam os conhecimentos das novas ciências e doutrinas e dos mais recentes descobrimentos com os costumes e ensinamentos cristãos, para que a prática da religião e a retidão de espírito acompanhem o conhecimento das ciências e dos progressos diários na técnica. Assim, conseguirão examinar e interpretar tudo com íntegro critério cristão” (Gaudium et Spes 62).

Eis aqui uma pastoral que procede em sentido exatamente contrário à pastoral de São Paulo ( non altera sapientis: Rom 12, 16).

Frente a este “sumário” da pastoral “conciliar” para os leigos não resta mais que dizer mysterium iniquitatis!, e fazer o sinal da cruz.

17.8 Os jovens têm hoje um peso maior na sociedade; isso “exige deles uma atividade apostólica. semelhante, mas sua propria índole oa dispõe a ela[...] Procurem os adultos estabelecer diálogos amigáveis com os jovens, que permitam a uns e a outros conhecer-se mutuamente, comunicando entre si o bem que cada um tem, não considerando a distância de idade” (Apostolicam Actuositatem 12).

A interpretação da “índole natural” da juventude está longe de qualquer relação com a realidade, assim como o “diálogo”, sentimental e meloso que se propõe aqui entre adultos e jovens.

17.9 “Procurem os católicos cooperar com todos os homens de boa vontade em promover quanto há de verdadeiro, de justo [...]. Falem com eles, superando-lhes em prudência e humildade, e investiguem sobre as instituições sociais e públicas [?], para aperfeiçoá-las segundo o espírito do Evangelho” (Apostolicam Actuositatem 14). Diz-se na Gaudium et Spes 78: “... chama-se insistentemente a atenção de todos os cristãos para que [...] se unam com os homens realmente pacíficos [hominibus pacificis] para implorar e estabelecer a paz” (no texto em vernáculo usa-se a expressão “amantes da paz”, característica da propaganda comunista daquela época).

17.10 A colaboração dos fiéis católicos com os chamados “irmãos separados” em torno do “patrimônio evangélico comum” e o conseqüente “dever comum do testemunho cristão” (com os hereges e cismáticos!). Além disso, “também os valores humanos geram uma atividade semelhante à dos cristãos que perseguem fins apostólicos. Muitos dos que não levam o nome de cristão reconhecem estes valores” (Apostolicam Actuositatem 27). De modo que “com esta cooperação dinâmica e prudente [...] os leigos dão testemunho de Cristo [...] e da unidade da família humana” (ibid.).

Os valores cristãos autênticos, católicos, são transformados em função dos valores humanos, que, conseqüentemente, lhes são superiores. De fato, são os valores humanos os que tornam possível a unidade da “família humana”, que tem tanta importância para o concílio (v. supra, seção 12).

17.11 “Para cultivar as relações humanas é preciso que se acrescentem os valores verdadeiramente humanos, sobretudo a arte da convivência fraterna, da cooperação e do diálogo” (Apostolicam Actuositatem 29).

XVIII - A modernização pastoral quanto à educação

18.0 “Todos os homens, de qualquer raça, condição e idade, enquanto participantes da dignidade da pessoa, têm direito inalienável a uma educação que corresponda ao próprio fim, ao próprio caráter, aos diferentes sexos, e que seja conforme à cultura e às tradições pátrias, e, ao mesmo tempo, esteja aberta às relações fraternas com outros povos a fim de fomentar na terra a verdadeira unidade e paz” (Gravissimum Educationis 1).

O ideal educativo que aqui se propõe, além de não ter nada de católico, é utópico e contraditório. De fato, o que se haverá de fazer se as singulares “tradições” e “culturas” estimulam a agir em sentido contrário às “relações fraternas com outros povos”?

18.1 Deve-se iniciar os meninos (pueri) e os jovens “conforme avança sua idade, numa positiva e prudente educação sexual” (Gravissimum Educationis 1).

Sem comentários. A educação sexual pública inserida no programa escolar, foi condenada explicitamente por Pio XI, por ser imoral e corruptora, na encíclica Divini Illius Magistri (1929; Denzinger 2214 e 3697). Pio XII no discurso aos pais de família em 18 de setembro de 1951 também aborda o assunto. Os papas exigiam que se deixasse o assunto aos progenitores e educadores, individualmente.

18.2 “A Igreja, como Mãe, está obrigada a dar a seus filhos uma educação que preencha sua vida com o espírito de Cristo, e ao mesmo tempo, ajuda a todos os povos a promover a perfeição cabal da pessoa humana, inclusive para o bem da sociedade terrestre e para configurar mais humanamente a edificação do mundo” (Gaudium et Spes 3).

A ajuda que a Igreja oferece a todos os povos não consiste, pois, em fazer que adquiram o “espírito de Cristo”.

18.3 “Além disso, a Igreja aplaude cordialmente as autoridades e sociedades civis que, levando em conta o pluralismo da sociedade moderna e favorecendo a devida liberdade religiosa, ajudam as famílias para que possam dar a seus filhos em todas as escolas uma educação conforme os princípios morais e religiosos das famílias” (Gravissimum Educationis 7).

Não é este um modo elegante de defender o indiferentismo religioso e moral?

18.4 Nas faculdades de teologia, “promova-se”, entre outras coisas, “o diálogo com os irmãos separados e com os não cristãos e respondam-se os problemas suscitados pelo progresso das ciências” (Gaudium et Spes 11).

18.5 “Deve-se procurar com todo empenho que se fomente entre as escolas católicas uma conveniente coordenação e seja provida entre estas e outras escolas [não católicas] a colaboração que exige o bem de todo o gênero humano [sempre em primeiro lugar na mente do concílio]” (Gaudium et Spes 12; v. supra “Erros no discurso de inauguração”, na introdução da presente sinopse).

CONCLUSÃO

VOLTAR À DOUTRINA VERDADEIRA OU PERECER

1. Talvez se julgue temerário termos acusado um concílio ecumênico da Igreja Católica de tantos e de tão graves erros doutrinais. Pior ainda: pode parecer que nos manchamos de pecado grave, ou que caímos na heresia. Entretanto, a heresia (cf. supra 2.0) é “a negação pertinaz, por parte de um batizado, de uma verdade que deve ser crida com fé divina e católica, ou a dúvida insistente sobre a mesma verdade” (CIC de 1983, cânon 751). Ora, o Vaticano II não condenou erro nenhum, não definiu nenhuma “verdade” de fé divina e católica, nenhum dogma de fé. Não quis fazê-lo e declarou-se concílio pastoral. Portanto enquadrou seu magistério extraordinário num magistério impossível de definir sob o ponto de vista canônico: num magistério meramente “autêntico” (talvez nem isso, tendo em vista os erros que ensinou [v. supra, Introdução]).

O magistério autêntico merece o assentimento dos fiéis, mas não no mesmo nível que os dogmas de fé, cuja negação é verdadeiramente um pecado. Deve-se ao concílio, portanto, o assentimento próprio a uma “pastoral” , assentimento esse que pode ser legitimamente recusado se for demonstrado que a pastoral não é boa.

Trata-se, com efeito, de um assentimento fundado nas regras da prudência, acrescidas do entendimento sadio e do sensus fidei do fiel.

A prudência, que só floresce no entendimento sadio, nos manda escutar o sensus fidei, que por sua vez, nos leva a rejeitar as resoluções de um concílio ambíguo e envenenado por erros como o Vaticano II.

Essa prudência do fiel deriva da preocupação constante de não ofender a Deus e salvar a alma. Ela também constitui uns dos meios pelos quais a graça opera em nós. Assim, a negação das doutrinas ambíguas propagadas pelo Vaticano II é lícita e legítima e torna-se uma exigência do dever. Cada um de nós deve defender o depósito da fé segundo a própria capacidade. Todos somos milites Christi, e temos de combater pela fé.

2. Conseqüentemente, a negação dos ensinamentos falsos do Vaticano II não nos coloca fora da Igreja: não somos hereges por recusar estes ensinamentos, nem formal nem material, nem tampouco espiritualmente cismáticos. Não recusamos nosso assentimento às ordens legitimamente traçadas pela autoridade, nem pretendemos sair da Igreja para instituir ou seguir outra.

Na verdade, julgamos a pastoral do concílio à luz da Tradição, ou seja, à luz do que a Santa Igreja sempre ensinou durante dezenove séculos, a partir de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos Apóstolos. Ao compararmos a Tradição com os textos conciliares salta aos olhos, sem a menor sombra de dúvida, que a “modernização”, querida por João XXIII e imposta pelo Vaticano II, introduziu novidades incompatíveis com o que a Igreja sempre ensinou, como depósito da fé.

Tivemos que assistir à múltipla e anárquica distorção da própria noção de Igreja Católica, de Corpo Místico , Santa Missa, liturgia, sacerdócio, colegialidade, matrimônio católico, reino de Deus, Tradição, Encarnação, Redenção, Anunciação e liberdade religiosa, bem como do conceito católico do homem, da relação correta entre a Igreja e o Estado, da interpretação exata do que são objetivamente os hereges, os cismáticos e os não cristãos.

Tivemos que ouvir, dos lábios de um Papa, louvores ao pensamento moderno, outrora condenado várias vezes por seus predecessores. E a esse pensamento moderno e contemporâneo, intrinsecamente oposto ao pensamento transcendente católico, confiou-se a tarefa de enunciar a doutrina perene da Igreja. Quiseram submetê-la a uma “reforma contínua”, a uma adaptação cada vez maior aos falsos valores do mundo. O concílio deveria ter condenado essa corrente de pensamento contemporâneo, mas, pelo contrário, tornou-se cúmplice dela. A corrupção dos conceitos verdadeiramente católicos, e do mero senso comum, foi vasta, minuciosa e sistemática. Os textos do Vaticano II atestam de modo impressionante a decadência intelectual (e não só intelectual!) da hierarquia católica, contra a qual lutaram em vão os Papas até Pio XII, assim como um grupo espiritualmente sadio da hierarquia durante o concílio.

Quem estará então dentro da Igreja: quem aceita as falsas doutrinas do Vaticano II e pretende pô-las em prática, ou quem as recusa abertamente para continuar sendo fiel ao que o magistério ensinou durante dezenove séculos, assistido pelo Espírito Santo?

Quem escuta de boa fé essas falsas doutrinas continua dentro da Igreja, certamente, mas vive enganado, objetivamente levado à infidelidade sem se dar conta de que se acha quase sem defesa contra o perigo de perder ou contaminar sua fé. “Sê fiel até a morte e te darei a coroa da vida”, disse o Senhor ressuscitado (Apocalipse 2,10).

Por isso, aceitar o Vaticano II é impossível para aqueles que se dão conta do diabólico embaralhamento de contradições, ambigüidades e erros ali contidos. Sem dúvida, a confusão é velada por homenagens esparsas e formais à Tradição. Essas homenagens não têm influência, entretanto, em comparação ao caudal das novidades.

A Igreja concebida pelo concílio se autodefine como Igreja “de Cristo”, ou “ecumênica”, ou “conciliar”, reduzindo ao mínimo o uso do adjetivo “católica”. Essa igreja se sobrepôs à Igreja verdadeira como a cizânia ao bom grão. Nós não nos envergonhamos de afirmar a verdade, isto é, que a aceitação do Vaticano II nos afasta da Tradição e, portanto da reta doutrina, com grave perigo para a salvação da nossa alma, pois, de fato, sem a doutrina é muito difícil observar a moral ensinada por Nosso Senhor e conservar a fé.

3. Ninguém nega a evidência dos desastres que se sucederam na Igreja e nas nações católicas depois do Vaticano II, que se resumem no binômio “corrupção da fé e dos costumes”. Mas tais desastres não são compreendidos em sua causa profunda e sua natureza efetiva: a prova disso é que ainda há expoentes da hierarquia afirmando que a solução para as degenerações pós-conciliares se acha no descobrimento e na prática do “verdadeiro” Vaticano II. Quarenta anos depois de seu início, ainda continuamos em busca do “autêntico significado” daquele Assis? Ele continua sem ser compreendido, quarenta anos depois?

Há um preconceito que considera o Vaticano II como um super-concílio que inaugurou para a Igreja um novo rumo, do qual é impossível afastar-se, como se a doutrina anterior a ele (a verdadeira doutrina católica) não tivesse jamais existido. Trata-se de uma idéia revolucionária que se desencadeou na Igreja desde o concílio, cuja única preocupação é conter os “abusos”, provavelmente para abafar as reações.

O certo é que a crise atual da Igreja se enraíza no concílio, não nas degenerações pós-conciliares; a presente sinopse o demonstra. Não cabe à hierarquia atual outro dever senão o de restabelecer a autêntica doutrina católica. Para fazê-lo deverá invalidar um dia o concílio, ou corrigi-lo ou interpretá-lo (se for possível) à luz da Tradição.

Não cabe a nós determinar o modo com que o Papa intervirá a respeito do Vaticano II, e menos ainda propor uma data. Mas nos permitimos recordar à hierarquia e a seus chefes atuais que, nas visões de Fátima, Deus todo poderoso se dignou mostrar, em sua infinita misericórdia, o castigo que infligirá um dia a toda Igreja militante, a todos nós, caso se prolonguem as graves, horrendas e repetidas ofensas e infidelidades perpetradas pelos que têm a obrigação de “conservar a doutrina da fé”. Se ninguém tiver a coragem de finalmente mudar de rumo, Deus renovará a Igreja com o “testemunho do sangue” (Heb. 12, 4): com o sangue dos mártires e do grande número de assassinatos.

Se, enfim, não tiverem a coragem de mudar o rumo por causa do medo a priori de uma possível reação violenta do mundo, que crê já ter sob os pés a Igreja Católica com tudo o que Ela representa; se não tiverem a valentia de retificar o rumo por causa da convicção de que o retorno ao dogma da fé desencadearia a perseguição antecipada na visão de Fátima, pois bem, nesse caso, invoque-se a ajuda do Espírito Santo, a fim de que nos dê força para vencer nossos medos humanos em prol da glória de Deus e da salvação das almas: “Não tenham medo dos que matam o corpo e depois disso nada mais podem fazer [..]. Temam ao que, depois de ter dado a morte, tem o poder de jogar no fogo da geena” (Lc 12, 4-5).

Canonicus

http://www.beneditinos.org.br/atualidades/documentos/erros_vaticano2.htm

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