quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Fioretti de São Francisco: capítulos 16, 17, 18, 19, 20.



Capítulo 16
Como S. Francisco recebeu o conselho de S. Clara e do santo Frei Silvestre de que devia,
pregando, converter muita gente; e pregou às aves e fez calar as andorinhas

O humilde servo de Cristo S. Francisco, pouco tempo depois de sua conversão, tendo já reunido e recebido na Ordem muitos companheiros, entrou a pensar muito e ficou em dúvida sobre o que devia fazer, se somente entregar-se à oração, ou bem a pregar algumas vezes: e sobre isso desejava muito saber a vontade de Deus.

E porque a humildade que tinha não o deixava presumir de si nem de suas orações, pensou de conhecer a vontade divina por meio das orações dos outros.

Pelo que chamou Frei Masseo e disse-lhe assim: "Vai a Soror Clara e dize-lhe da minha parte que ela com algumas das mais espirituais companheiras rogue devotamente a Deus seja de seu agrado mostrar-me o que mais me convém: se me dedicar à pregação ou somente à oração.

E depois vai a Frei Silvestre e dize-lhe o mesmo".

Este fora no século aquele monsior Silvestre, que vira uma cruz de ouro sair da boca de S. Francisco, a qual era tão alta que ia até ao céu e tão larga que tocava os extremos do mundo.

Era este Frei Silvestre de tanta devoção e de tanta santidade, que tudo quanto pedia a Deus obtinha e muitas vezes falava com Deus; e por isso S. Francisco tinha por ele grande devoção. Foi Frei Masseo, e conforme a ordem de S. Francisco, deu conta da embaixada primeiramente a S. Clara e depois a Frei Silvestre. O qual, logo que a recebeu, imediatamente se pôs em oração e, rezando, obteve a resposta divina, e voltou a Frei Masseo e disse-lhe assim: "Isto disse Deus para dizeres ao irmão Francisco: que Deus não o chamou a este estado somente para si; mas para que ele obtenha fruto das almas e que muitos por ele sejam salvos".

Obtida esta resposta, Frei Masseo voltou a S. Clara para saber o que ela tinha conseguido de Deus; e respondeu que ela e outra companheira tinham obtido de Deus a mesma resposta que tivera Frei Silvestre. Com isto tornou Frei Masseo a S. Francisco; e S. Francisco o recebeu com grandíssima caridade, lavando-lhe os pés e preparando-lhe o jantar.

E depois de comer, S. Francisco chamou Frei Masseo ao bosque e ali, diante dele, se ajoelhou e tirou o capuz, pondo os braços em cruz, e perguntou-lhe: "Que é que ordena que eu faça o meu Senhor Jesus Cristo?" Respondeu Frei Masseo: "Tanto a Frei Silvestre como a Soror Clara e à irmã, Cristo respondeu e revelou que sua vontade é que vás pelo mundo a pregar, porque ele não te escolheu para ti somente, mas ainda para a salvação dos outros". E então S. Francisco, ouvindo aquela resposta e conhecendo por ela a vontade de Cristo, levantou-se com grandíssimo fervor e disse: "Vamos em nome de Deus".

E tomou como companheiros a Frei Masseo e a Frei Ângelo, homens santos. E caminhando com ímpeto de espírito, sem escolher caminho nem atalho, chegaram a um castelo que se chamava Savurniano, e S. Francisco se pôs a pregar e primeiramente ordenou às andorinhas, que cantavam, que fizessem silêncio até que ele tivesse pregado; e as andorinhas obedeceram.

E ali pregou com tal fervor que todos os homens e todas as mulheres daquele castelo, por devoção, queriam seguir atrás dele e abandonar o castelo. Mas S. Francisco não permitiu, dizendo-lhes: "Não tenhais pressa e não partais; e ordenarei o que deveis fazer para a salvação de vossas almas". E então pensou em criar a Ordem Terceira para a universal salvação de todos . E assim deixando-os muito consolados e bem dispostos à penitência, partiu-se daí e veio entre Cannara e Bevagna.

E passando além, com aquele fervor levantou os olhos e viu algumas árvores na margem do caminho, sobre as quais estava uma quase infinita multidão de passarinhos; do que S. Francisco se maravilhou e disse aos companheiros: "Esperai-me aqui no caminho, que vou pregar às minhas irmãs aves". E entrando no campo começou a pregar às aves que estavam no chão; e subitamente as que estavam nas árvores vieram a ele e todas ficaram quietas até que S. Francisco acabou de pregar; e depois não se partiram enquanto ele não lhes deu a sua bênção.

E conforme contou depois Frei Masseo a Frei Tiago de Massa, andando S. Francisco entre elas a tocá-las com a capa, nenhuma se moveu. A substancia da prédica de S. Francisco foi esta: "Minhas irmãs aves, deveis estar muito agradecidas a Deus, vosso Criador, e sempre em toda parte o deveis louvar, porque vos deu liberdade de voar a todos os lugares, vos deu urna veste duplicada e triplicada; também porque reservou vossa semente na Arca de Noé, a fim de que vossa espécie não faltasse ao mundo; ainda mais lhe deveis estar gratas pelo elemento do ar que vos concedeu.

Além disto não plantais e não ceifais; e Deus vos alimenta e vos dá os rios e as fontes para beberdes, e vos dá os montes e os vales para vosso refúgio, e as altas arvores para fazerdes vossos ninhos e, porque não sabeis fiar nem coser, Deus vos veste a vós e aos vossos filhinhos; muito vos ama o vosso Criador, pois vos faz tantos benefícios, e portanto guardai-vos, irmãs minhas, do pecado de ingratidão e empregai sempre os meios de louvar a Deus". Dizendo-lhes S. Francisco estas palavras, todos e todos estes passarinhos começaram a abrir os bicos, a estender os pescoços, e a abrir as asas, e a reverentemente inclinar as cabeças para o chão, e por seus atos e seus cantos a demonstrar que as palavras do santo pai lhes deram grandíssima alegria. E S. Francisco juntamente com elas se rejubilava, se deleitava, se maravilhava muito com tal multidão de pássaros e com a sua belíssima variedade e com a sua atenção e familiaridade; pelo que ele devotamente nelas louvava o Criador.

Finalmente, terminada a pregação, S. Francisco fez sobre elas o sinal-da-cruz e deu-lhes licença de partir; e então todas aquelas aves em bando se levantaram no ar com maravilhosos cantos; e depois, seguindo a cruz que S. Francisco fizera, dividiram-se em quatro grupos: um voou para o oriente e outro para o ocidente, o terceiro para o meio-dia, o quarto para o aquilão, e cada bando cantava maravilhosamente; significando que como por S. Francisco, gonfaloneiro da cruz de Cristo, lhes fora pregado e sobre elas feito o sinal-da-cruz, segundo o qual se dividiram, cantando, pelas quatro partes do mundo; assim a pregação da cruz de Cristo renovada por S. Francisco devia ser levada por ele e por seus irmãos a todo o mundo; os quais frades como os pássaros, nada de próprio possuindo neste mundo, confiam a vida unicamente à Providência de Deus.

Em louvor de Cristo. Amém.

Capítulo 17
Como S. Francisco orando de noite, um menino noviço viu Cristo
e a Virgem Maria e muitos outros santos falarem com ele

Um menino muito puro e inocente foi recebido na Ordem, vivendo S. Francisco; e estava em um pequeno convento no qual por necessidade os frades dormiam dois em cada leito. Veio S. Francisco uma vez ao dito convento e de tarde, ditas Completas, foi dormir a fim de poder levantar-se à noite para orar quando os outros frades estivessem a dormir, como tinha costume de fazer. O dito menino pôs no coração espiar solicitamente a vida de S. Francisco, para poder conhecer a sua santidade e especialmente para saber o que ele fazia à noite quando se levantava.

E, para não ser enganado pelo sono, pôs-se esse menino a dormir ao lado de S. Francisco e amarrou a sua corda com a de S. Francisco, para perceber quando ele se levantasse: de nada disso S. Francisco se apercebeu. Mas à noite, no primeiro sono, quando todos os frades dormiam, S. Francisco se levantou e achou a sua corda assim atada, soltou-a tão docemente que o menino não sentiu, e saiu S. Francisco sozinho para o bosque que ficava próximo do convento, e entrou em uma cova que ali havia e ficou em oração.

Depois de algum tempo, o menino despertou e achando a corda desatada e S. Francisco levantado, levantou-se também e foi procurá-lo e, encontrando aberta a passagem que dava para o bosque, pensou que S. Francisco ali estivesse e penetrou no bosque.

E logo, chegando ao ponto onde S. Francisco orava, começou a ouvir a grande conversação: e aproximando-se mais para entender o que ouvia, chegou a ver uma luz admirável que cercava S. Francisco e nela viu Cristo e a Virgem Maria e S. João Batista e o Evangelista e grandíssima multidão de anjos, os quais falavam com S. Francisco. Vendo isto, o menino caiu no chão sem sentidos; depois, acabado o mistério daquela santa aparição, voltando S. Francisco ao convento, tropeçou no corpo do menino que jazia na estrada como morto, e por compaixão carregou-o nos braços e colocou-o no leito como faz o bom pastor com a sua ovelha.

E depois, sabendo dele como tinha visto a dita visão, ordenou-lhe que nada dissesse a ninguém enquanto ele fosse vivo. O menino crescendo, pois, em grande graça de Deus e devoção de S. Francisco, foi homem de valor na Ordem; e somente depois da morte de S. Francisco revelou aos irmãos a dita visão.

Em louvor de Cristo. Amém.

Um menino muito puro e inocente foi recebido na Ordem, vivendo S. Francisco; e estava em um pequeno convento no qual por necessidade os frades dormiam dois em cada leito. Veio S. Francisco uma vez ao dito convento e de tarde, ditas Completas, foi dormir a fim de poder levantar-se à noite para orar quando os outros frades estivessem a dormir, como tinha costume de fazer.

O dito menino pôs no coração espiar solicitamente a vida de S. Francisco, para poder conhecer a sua santidade e especialmente para saber o que ele fazia à noite quando se levantava. E, para não ser enganado pelo sono, pôs-se esse menino a dormir ao lado de S. Francisco e amarrou a sua corda com a de S. Francisco, para perceber quando ele se levantasse: de nada disso S. Francisco se apercebeu.

Mas à noite, no primeiro sono, quando todos os frades dormiam, S. Francisco se levantou e achou a sua corda assim atada, soltou-a tão docemente que o menino não sentiu, e saiu S. Francisco sozinho para o bosque que ficava próximo do convento, e entrou em uma cova que ali havia e ficou em oração. Depois de algum tempo, o menino despertou e achando a corda desatada e S. Francisco levantado, levantou-se também e foi procurá-lo e, encontrando aberta a passagem que dava para o bosque, pensou que S. Francisco ali estivesse e penetrou no bosque.

E logo, chegando ao ponto onde S. Francisco orava, começou a ouvir a grande conversação: e aproximando-se mais para entender o que ouvia, chegou a ver uma luz admirável que cercava S. Francisco e nela viu Cristo e a Virgem Maria e S. João Batista e o Evangelista e grandíssima multidão de anjos, os quais falavam com S. Francisco.

Vendo isto, o menino caiu no chão sem sentidos; depois, acabado o mistério daquela santa aparição, voltando S. Francisco ao convento, tropeçou no corpo do menino que jazia na estrada como morto, e por compaixão carregou-o nos braços e colocou-o no leito como faz o bom pastor com a sua ovelha.

E depois, sabendo dele como tinha visto a dita visão, ordenou-lhe que nada dissesse a ninguém enquanto ele fosse vivo. O menino crescendo, pois, em grande graça de Deus e devoção de S. Francisco, foi homem de valor na Ordem; e somente depois da morte de S. Francisco revelou aos irmãos a dita visão. Em louvor de Cristo. Amém.

Capítulo 18
Do maravilhoso capítulo que reuniu S. Francisco em Santa Maria dos Anjos,
onde estiveram além de cinco mil irmãos

O fidelíssimo servo de Cristo monsior S. Francisco reuniu uma vez um capítulo geral em S. Maria dos Anjos, no qual capítulo estiveram presentes para mais de cinco mil irmãos; e veio S. Domingos, cabeça e fundador da Ordem dos frades pregadores, o qual ia então de Borgonha a Roma.

E sabendo da reunião do capítulo que S. Francisco realizava na planície de S. Maria dos Anjos, foi vê-lo com sete irmãos de sua Ordem. Esteve também no dito capítulo um cardeal devotíssimo de S. Francisco, do qual tinha profetizado que havia de ser papa, e assim foi.

O qual cardeal viera de propósito de Perusa, onde estava a corte, a Assis. E todos os dias vinha ver S. Francisco e seus frades, e algumas vezes cantava a missa, outras vezes fazia o sermão para os frades no capítulo; experimentava o dito cardeal grandíssima satisfação e devoção quando vinha visitar aquele santo colégio. E vendo naquela planície os irmãos ao redor de S. Maria, grupo em grupo, quarenta aqui, ali duzentos, além trezentos juntos, todos ocupados somente em falar de Deus e em orações, em lágrimas, em exercícios de caridade; e permanecendo com tanto silêncio e com tanta modéstia, que nenhum rumor se ouvia, nem contenda; e maravilhando-se de tal multidão com tanta ordem, com lágrimas e com grande devoção dizia: "Em verdade, este é o campo e o exército dos cavaleiros de Cristo".

Não se ouvia em tal multidão uma palavra inútil ou frívola; mas em cada lugar onde se reunia um grupo de frades, ou oravam ou diziam o ofício, ou choravam os seus pecados e os dos seus benfeitores ou tratavam da salvação da alma. E havia naquele campo cabanas de vime e de esteiras, divididas em turmas para os irmãos das diversas províncias; e por isso chamaram a este capítulo de Capítulo dos Vimes ou das Esteiras.

Os leitos deles eram a terra nua, e alguns tinham uma pouca de palha: os travesseiros eram pedras ou paus. Pelo que sentiam tanta devoção os que os ouviam ou viam e tanta era a fama de sua santidade, que da corte do papa, então em Perusa, e das outras terras do vale de Espoleto vinham vê-los muitos condes, barões e cavaleiros e outros gentis-homens e muitos populares e cardeais e bispos e abades com outros clérigos, para ver aquela santa e grande e humilde congregação, a qual o mundo nunca mais viu, de tantos santos homens juntos.

E principalmente vinham para ver o chefe e pai santíssimo de toda aquela gente, o qual furtara ao mundo tão bela presa e reunira tão belo e devoto rebanho para seguir as pegadas do venerável pastor Jesus Cristo.

Estando, pois, reunido o capítulo geral, o santo pai de todos e ministro geral S. Francisco com fervor de espírito anuncia a palavra de Deus, e prega em altas vozes o que o Espírito Santo lhe manda dizer; e por tema do sermão propôs estas palavras: "Filhos meus, grandes coisas prometemos a Deus: mas muito maiores Deus nos prometeu. Observemos o que prometemos; e esperemos com certeza as que nos foram prometidas. Breve é o deleite do mundo, mas a pena que se lhe segue é perpétua.

Pequeno é o sofrimento desta vida, mas a glória da outra vida é infinita".

E sobre estas palavras pregando devotíssimamente confortava e induzia os frades à obediência da santa madre Igreja, à caridade fraternal e a rogarem a Deus por todo o povo e a terem paciência na adversidade do mundo e temperança na prosperidade, a pureza e castidade angélica, a estarem em paz e concórdia com Deus e com os homens e com a própria consciência, e ao amor e à observância da santíssima pobreza.

E então lhes disse: "Ordeno-vos pelo mérito da santa obediência, a todos vós reunidos aqui, que nenhum de vós se preocupe com o que tenha de comer ou beber, ou com as coisas necessárias ao corpo, mas aplicai-vos somente a orar e a louvar a Deus, e toda a solicitude do corpo deixai a ele, porque ele terá especial cuidado convosco".

E todos eles receberam este mandamento com o coração alegre e com a face risonha. E terminado o sermão de S. Francisco, todos se puseram a orar. Do que S. Domingos, o qual estava presente a todas estas coisas, fortemente se maravilhou do mandamento de S. Francisco e julgou-o indiscreto, não podendo compreender como tal multidão se poderia dirigir sem ter nenhum cuidado e solicitude das coisas necessárias ao corpo.

Mas o principal pastor, Cristo bendito, querendo mostrar como cuida de suas ovelhas e tem singular amor aos seus filhos, logo e logo inspirou aos habitantes de Perusa, de Espoleto, de Foligno, de Spello e de Assis e de outras terras circunvizinhas que levassem o que comer e beber àquela santa congregação. E eis que subitamente chegam das ditas terras homens com jumentos, cavalos, carros carregados de pães e de vinho, favas, queijos e de outras boas coisas de comer, como os pobres de Cristo necessitavam. Além disso traziam toalhas, púcaros, garrafas, copos e outros vasos de que tal multidão havia mister. E bendito se considerava quem mais coisas podia trazer ou mais solicitamente servia; de modo que até os cavaleiros, os barões e outros gentis-homens, que tinham vindo para ver, com grande humildade e devoção serviam-nos também.

Pelo que S. Domingos, vendo estas coisas e verdadeiramente conhecendo que a Providência divina cuidava deles, humildemente reconheceu que julgara falsamente S. Francisco de dar ordem indiscreta; e ajoelhando-se-lhe em frente, disse-lhe humildemente sua culpa e acrescentou: "Deveras Deus dispensa cuidado especial a estes santos pobrezinhos e eu não o sabia: e de ora em diante prometo de observar a evangélica pobreza santa: e amaldiçôo da parte de Deus a todos os frades de minha Ordem, os quais na dita Ordem presumirem ter alguma coisa de próprio".

Assim ficou S. Domingos muito edificado com a fé do santíssimo Francisco e com a obediência e a pobreza de tão grande e bem ordenado colégio e da Providência divina e da copiosa abundância de todos os bens. No mesmo capítulo disseram a S. Francisco que muitos frades traziam o cilício sobre a carne e argolas de ferro; e por esse motivo muitos adoeciam e outros morriam e muitos ficavam incapazes de orar.

Pelo que S. Francisco, por ser discretíssimo pai, ordenou que por santa obediência quem tivesse cilício, ou argola de ferro, lhos trouxesse e pusesse diante dele. Assim o fizeram e foram contados para mais de quinhentos cilícios de ferro e muito mais argolas de ferro tanto para os braços como para o ventre, de maneira que fizeram um grande monte e S. Francisco os deixou lá. Depois de acabado o capítulo, S. Francisco, confortando-os para o bem e ensinando-lhes como deviam sair deste mundo malvado sem pecado, com a bênção de Deus e a dele, fê-los voltar às suas províncias, todos consolados com a letícia espiritual.

Em louvor de Cristo. Amém.

Capítulo 19
Como da vinha do padre de Rieti, em cuja casa S. Francisco rezou, devido à grande multidão que vinha a ele,foram arrancadas e colhidas as uvas; e depois miraculosamente dela se fez mais vinho do que nunca, segundo a promessa de S. Francisco. E como Deus revelou a S. Francisco que ele alcançaria o paraíso depois de sua morte

Estando uma vez S. Francisco gravemente doente dos olhos, monsior Hugolino, cardeal protetor da Ordem, pela grande ternura que tinha por ele, escreveu-lhe que fosse procurá-lo em Rieti, onde havia ótimos médicos da vista. Então S. Francisco, recebendo a carta do cardeal, foi primeiramente a S. Damião, onde estava S. Clara, devotíssima esposa de Cristo, para levar-lhe alguma consolação e depois ir ao cardeal.

Mi estando S. Francisco, na noite seguinte, piorou de tal modo dos olhos, que não podia mais ver a luz. Não podendo, por isso, partir, S. Clara fez para ele uma cabana de caniço onde pudesse melhor repousar.

Mas S. Francisco, tanto pela dor da enfermidade como pela grande quantidade de morcegos que o incomodavam muitíssimo, de maneira nenhuma podia repousar de dia ou de noite. E sofrendo demais com aquela tribulação, começou a pensar e a reconhecer que aquilo era um flagelo de Deus pelos seus pecados; e começou a agradecer a Deus com todo o coração e com a boca, e depois gritava em altas vozes, dizendo: "Senhor meu, sou digno disto e de muito pior.

Senhor meu Jesus Cristo, bom pastor, que mostraste a tua misericórdia sobre nós dando-nos diversas penas e angústias corporais, concede-me a graça e virtude, a mim a tua ovelhinha, para que por nenhuma enfermidade e angústia ou dor me afaste de ti". E feita esta oração, ouviu uma voz do céu que disse: "Responde-me, Francisco.

Se toda a terra fosse ouro, e todos os mares, fontes e rios fossem bálsamo, e todos os montes e colinas e os rochedos fossem pedras preciosas; e achasses um outro tesouro mais nobre do que essas coisas, como o ouro é mais nobre do que a terra, e o bálsamo do que a água, e as pedras preciosas mais do que os montes e os rochedos, e te fosse dado em troca desta enfermidade este mais nobre tesouro, não devias ficar bem contente e bem alegre?" Responde S. Francisco: "Senhor, eu não sou digno de tesouro tão precioso". E disse-lhe a voz de Deus: "Rejubila-te, Francisco, porque este é o tesouro da vida eterna, o qual te reservo e desde já te garanto; e esta enfermidade e esta aflição são as arras do tesouro bendito". S. Francisco então chamou o companheiro com grandíssima alegria por tão gloriosa promessa, e disse: "Vamo-nos ao cardeal". E consolando primeiramente S. Clara com santas palavras e dela humildemente despedindo-se, tomou o caminho para Rieti.

E quando estava próximo, tal multidão de povo saiu-lhe ao encontro, que por iss6 ele não quis entrar na cidade; mas se dirigiu a uma igreja que havia perto da cidade cerca de duas milhas. Sabendo, pois, os cidadãos que ele estava na dita igreja, corriam de toda parte para vê-lo, tanto que uma vinha da dita igreja ficou toda estragada e as uvas colhidas.

Pelo que o padre muita mágoa sentiu em seu coração e arrependia-se de ter recebido S. Francisco em sua igreja. E sendo por Deus revelado a S. Francisco o pensamento do padre, mandou chamá-lo e disse-lhe: "Padre caríssimo, que quantidade de vinho te dá esta vinha por ano, quando te rende mais?" Respondeu: "Doze cargas". Disse S. Francisco: "Peço-te, padre, que suportes pacientemente a minha estada alguns dias aqui, porque acho muito repouso neste lugar; e deixa que todos colham uvas de tua vinha, pelo amor de Deus e de mim pobrezinho; e te prometo, da parte de meu Senhor Jesus Cristo, que ela te renderá este ano vinte cargas".

E a razão por que S. Francisco queria ali demorar era o grande fruto que via colherem as almas das pessoas que o vinham ver; das quais muitas se partiam inebriadas do divino amor e abandonavam o mundo.

Confiando o padre na promessa de S. Francisco, deixou a vinha entregue aos que vinham a ele.

Maravilhosa coisa! A vinha ficou toda estragada e colhida, ficando apenas alguns cachos de uvas. Vem o tempo da vindima, e o padre colhe aqueles poucos de cachos, põe-nos na dorna e os pisa e, segundo a promessa de S. Francisco, recolhe vinte cargas de ótimo vinho. No qual milagre manifestamente se dá a entender que, como pelo mérito de S. Francisco, a vinha despojada de cachos abundou em vinho, assim o povo cristão, estéril de virtudes pelo pecado, pelos méritos e doutrina de S. Francisco, muitas vezes colhe em abundância bons frutos de penitência.

Em louvor de Cristo. Amém.

Capítulo 20
De uma belíssima visão que viu um jovem frade, o qual tinha em tal abominação a túnica,
que estava disposto a deixar o hábito e sair da Ordem

Um jovem muito nobre e delicado veio para a Ordem de S. Francisco: o qual depois de alguns dias, por instigação do demônio, começou a ter tal abominação ao habito que vestia, que lhe parecia trazer um saco vilíssimo; tinha horror às mangas, abominava o capuz, e o comprimento e a grandeza lhe pareciam carga insuportável.

E crescendo-lhe assim o desgosto pela Ordem, deliberou finalmente deixar o hábito e voltar ao mundo. Tomara por costume, conforme lhe ensinara seu mestre, todas as vezes que passavam em frente do altar do convento, no qual se conservava o corpo de Cristo, ajoelharse com grande reverência e tirar o capuz e inclinar-se com os braços em cruz. Sucedeu que naquela noite, na qual devia partir e deixar a Ordem, foi-lhe preciso passar diante do altar do convento; e passando, segundo o costume, ajoelhou-se e fez reverência.

E subitamente arrebatado em espírito, foi-lhe mostrada por Deus uma maravilhosa visão: repentinamente viu diante de si passar quase infinita multidão de santos como em procissão, dois a dois, vestidos todos de belíssimo e precioso pano; e as faces deles e as mãos resplandeciam como o sol, e iam com cânticos e música de anjos, entre os quais santos havia dois mais nobremente vestidos e adornados do que todos os outros, e estavam cercados de tanta claridade, que grandíssimo assombro faziam a quem os olhava, e quase no fim da procissão viu um ornado de tanta glória que parecia um cavaleiro novo, mais honrado do que os outros. Vendo o dito jovem esta visão, maravilhava-se e não sabia o que queria dizer aquela procissão e não tinha coragem de indagar e estava estupefato de enleio. Tendo passado a procissão, ele, enchendo-se de coragem, corre em direção aos últimos, e com grande temor pergunta-lhes, dizendo: "O caríssimos, peçovos o favor de dizer-me quem são estas maravilhosas pessoas que vão nesta procissão venerável".

Responderam-lhe: "Sabe, filho, que todos nós somos frades menores que vimos agora da glória do paraíso"- E ele ainda perguntou: "Quais são aqueles dois que brilham mais do que os outros?" Responderam-lhe: "Aqueles são S. Francisco e S. Antônio: e aquele último que vês tão honrado, é um santo frade que morreu há pouco tempo; o qual, porque valentemente combateu contra as tentações e perseverou até ao fim, agora o levamos em triunfo à glória do paraíso; e estas vestes de fazendas tão belas que trajamos, foram-nos dadas por Deus em troca das ásperas túnicas as quais nós pacientemente suportamos na Ordem; e a gloriosa claridade, que vês em nós, foi-nos dada por Deus pela humildade e paciência e pela santa pobreza e obediência e castidade as quais observamos até ao fim.

E portanto, filho, não te seja molesto trazer o saial da Ordem tão frutuoso, porque, se com o saco de S. Francisco desprezares o mundo e mortificares a carne, e contra o demônio combateres valentemente, terás conosco semelhante veste e claridade de glória". E ditas estas palavras, o jovem voltou a si, e confortado pela visão expulsou de si todas as tentações e confessou a sua culpa diante do guardião e dos frades; e dai em diante desejou a aspereza da penitência e das vestes e acabou a vida na Ordem em grande santidade.

Em louvor de Cristo. Amém.

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