segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Sermões de Santo Antônio II.


Deixemos a vaidade do mundo!

“Jesus, tendo saído daquele lugar, retirou-se para a região de Tiro e Sidônia...”(Mt 15,21). “Jesus, tendo saído...”etc. A saída de Jesus representa a saída de toda pessoa humana que se converte e sai da vaidade do mundo. Sobre isto, se lê e se canta na história deste domingo (2º da Quaresma): “Tendo Jacó saído de Bersabéia partiu para Harã (Gn 28,10). Eis como concordam os dois Testamentos: “Jesus, tendo saído daquele lugar, retirou-se para a região de Tiro e Sidônia”, diz Mateus. “Jacó, tendo saído de Bersabéia, partiu para Harã”, diz Moisés no Gênesis. “Jacó é interpretado como 'suplantador’ e representa o pecador convertido que, sob a planta (do pé) da razão pisa, esmaga a sensualidade da carne. Ele sai de Bersabéia, que se interpreta `sétimo poço’, indicativo da insaciável cobiça deste mundo que é a raiz de todos os males. Deste poço fala João no seu evangelho, colocando as palavras da Samaritana na conversa com Jesus: “Senhor! Nem sequer tens uma vasilha e o poço é profundo”. E Jesus responde: “Todos aqueles que beberem desta água, ainda terão sede” (Jo 4,11.13). Ó Samaritana! Disseste com toda razão e verdade que o poço é profundo. Com efeito, a cobiça do mundo é profunda, exatamente porque não tem o fundo da suficiência, da saciedade. Por isso, quem quer que seja que beber da água deste poço, entendida como riquezas e prazeres temporais, terá sede de novo. E é verdade mesmo, devemos repetí-lo, porque até Salomão o diz nas parábolas: “A sanguessuga tem duas filhas que dizem: Quero mais, quero mais” (Pv 30,15). A sanguessuga é o diabo que tem sede da nossa alma e deseja bebê-la. Suas são a duas filhas, isto é, as riquezas e os prazeres que sempre dizem: “Quero mais, quero mais” e nunca “Basta!” Diz também o Apocalipse: “Do poço subiu uma fumaça como a fumaça de uma grande fornalha, de modo que o sol e o ar ficaram escuros por causa da fumaça do poço. E da fumaça se espalharam gafanhotos pela terra” (9,2-3). A fumaça que cega os olhos da razão sobe do poço da cobiça mundana que é a grande fornalha da Babilônia. Por causa dessa fumaça é que se obscureceram o sol e o ar. O sol e o ar simbolizam os religiosos. “Sol”, porque os religiosos devem ser sempre puros, cheios de afeição e lúcidos: puros pela castidade, cheios de afeição pelo amor e lúcidos pela pobreza. “Ar”, porque eles devem ser “aéreos”, quer dizer, contemplativos. Infelizmente, por causa de nossos pecados, saiu a fumaça do poço da cobiça e já defumou a todos. É por isso que Jeremias deplora nas Lamentações: “Ai! Como se escureceu o ouro, como mudou sua mais esplêndida cor!” (Lm 4,1). Sol e ouro, ar e cor esplêndida significam a mesma coisa. O esplendor do sol e do ouro se obscureceu, o ar e a cor mudaram. E observe-se bem a exatidão com que Jeremias disse: “escureceu e mudou”. Com efeito, a fumaça da cobiça escurece o esplendor da vida religiosa e obscurece a esplêndida cor da contemplação celeste, na qual o vulto da alma torna-se misticamente invadido por uma esplêndida cor, isto é, torna-se cândido e vermelho: cândido pela encarnação do Senhor, vermelho pela sua paixão, cândido pelo branco marfim da castidade, vermelho pelo ardente desejo do esposo celeste. Lamentavelmente, esta esplêndida cor, hoje em dia, está bastante deteriorada porque foi defumada pela fumaça da cobiça, sobre a qual ainda está escrito: “E da fumaça do poço saíram gafanhotos pela terra”. Os gafanhotos, pelos saltos que dão, representam todos os religiosos, os quais, com ambos os pés da pobreza e da obediência, devem saltar para a altura da vida eterna. Infelizmente, porém, com um salto para trás, da fumaça do poço, eles saíram pela terra e, como se diz no Êxodo, “cobriram a superfície da terra” (10,5). Hoje não se vêem mercados, não se fazem reuniões civis ou eclesiásticas nas quais não se encontrem monges e religiosos. Compram e revendem, “constroem e destroem, tornam redondo o que era quadrado” (Horácio, Epist.), isto é, torcem e retorcem qualquer coisa. Nos processos convocam as partes, brigam diante dos juizes, pagam legistas e advogados, induzem testemunhas a jurarem junto com eles por coisas transitórias, frívolas e vãs. Dizei-me, ó religiosos insensatos, se nos profetas ou nos evangelhos de Cristo ou nas cartas de Paulo, se na regra de São Bento ou de Santo Agostinho vós encontrastes essas brigas, essas distrações, esses clamores e essas declarações nos processos por coisas efêmeras e caducas. Ou pelo contrário, não é o próprio Senhor que diz aos Apóstolos, aos monges, a todos os religiosos e não a modo de conselho, mas de ordem mesmo, já que escolheram o caminho da perfeição: “Eu vos digo: amai os vossos inimigos, fazei o bem àqueles que vos odeiam; abençoai aqueles que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos caluniam. E a quem te bate numa face, apresenta-lhe também a outra. E a quem te leva o manto, não recuses a túnica. Dá a quem te pede e não reclames de quem toma o que é teu. Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles. E se amais apenas os que vos amam, que méritos tereis? Os pecadores também amam aqueles que os amam. E se fazeis o bem aos que vo-lo fazem, que méritos tereis? Até mesmo os pecadores agem assim” (Lc 6,27-33). Esta é a regra de Jesus Cristo que deve ser preferida a todas as regras, instituições, tradições, invenções, porque “não há servo maior que seu patrão, nem apóstolo maior que aquele que o enviou” (Jo 13,16). Observai, escutai e vede, ó povos todos, se existe bobeira, se existe presunção igual à deles. Em suas regras e constituições está escrito que cada monge ou cônego tenha duas ou três túnicas e dois pares de calçados, de acordo com o inverno ou o verão. Se por acaso acontece de não terem essas coisas no tempo e no lugar que querem, dizem que não se está observando o que é mandado e isso vai mesquinhamente contra a regra. Olhai com que escrúpulo querem observar a regra naquilo que é prescrito em vantagem do corpo, mas a regra de Jesus Cristo, sem a qual não podem salvar-se, observam pouco ou nada. E o que direi do clero e dos prelados da Igreja? Se um bispo ou um prelado da Igreja fizer algo contra um decreto do Papa Alexandre, Papa Inocêncio ou de qualquer outro papa, imediatamente é acusado, o acusado é convocado, o convocado é julgado por seu crime e, depois de julgado, é deposto. Ao contrário, se ele cometer algo de grave contra o Evangelho de Jesus Cristo, que ele tem por obrigação de vida observar, não há ninguém que o acuse, ninguém que o repreeenda. “Com efeito, todos amam o que é seu e não o que é de Jesus Cristo” (cfr. Fil 2,21). O próprio Cristo, com relação a essas coisas, tanto aos religiosos como ao clero, diz: “Invalidastes a Palavra de Deus por causa da vossa tradição. Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, quando disse: `Este povo me honra com os lábios, mas o coração está longe de mim. Em vão me prestam culto, pois o que ensinam são mandamentos humanos’ (Mt 15,6-9). E de novo: “Ai de vós, fariseus, que pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças, mas deixais de lado a justiça e o amor de Deus! Importava praticar estas coisas sem deixar de lado aquelas. Ai de vós, fariseus, que apreciais o primeiro lugar nas sinagogas e as saudações nas praças públicas... Ai de vós, doutores da lei, que impondes aos homens fardos insuportáveis e vós mesmos não tocais esses fardos com um dedo sequer... Ai de vós, doutores da lei, porque tomastes as chaves da ciência! Vós mesmos não entrastes e impedistes os que queriam entrar! (Lc 11,42-43.46.52). Portanto, bem se diz no Apocalipse que “saiu a fumaça do poço como a fumaça de uma grande fornalha que escureceu o sol e o ar e, da fumaça do poço, se espalharam sobre a terra os gafanhotos”. E observe-se ainda que o poço da cobiça humana é chamado “sétimo poço” e isso por dois motivos: ou porque é o `lixo’ e a fossa de sete crimes (pois a cobiça, como diz o Apóstolo, é a raiz de todos os males (Tm.6,10), ou porque a cobiça não tem o fundo da saciedade tal qual se lê no Gênesis que o “sétimo dia não teve tarde” (Gn 2,2). É deste infeliz poço, pois, que o pecador arrependido consegue sair. A ele se aplicam as palavras: “Jacó, tendo saído de Bersabéia, partiu para Harã”. “Jesus, tendo saído dali, partiu para a região de Tiro e Sidônia”. Vejamos o que significam esses três nomes: Tiro, Sidônia e Harã. Tiro é interpretado como “angústia”, Sidônia “caça da tristeza”, Harã “excelsa ou indignação”. A pessoa arrependida, que sai da cobiça do mundo, vai para as regiões de Tiro, isto é, da angústia. Observe-se bem que a pessoa verdadeiramente arrependida tem duas angústias: a primeira é aquela que ela sente pelos pecados cometidos, a segunda é aquela que ela tem que agüentar por causa das três tentações, a do diabo, do mundo e a da carne. Sobre a primeira diz Jó: “As coisas que antes a minha alma não queria tocar, agora na minha angústia, tornaram-se o meu alimento” (6,7). Com efeito, para a pessoa arrependida, por causa da angústia do arrependimento que ela sente pelos pecados, quais alimentos saborosos são as vigílias intensas, as lágrimas abundantes, os freqüentes jejuns. Tudo isso a alma, isto é, a sua sensualidade saciada de coisas temporais, aborrecia até tocar, antes de voltar à penitência. É por isso que diz Salomão nas Parábolas: “A alma saciada pisa o favo de mel, mas a alma faminta toma até o amargo como se fosse doce” (Pr 27,7). Observe-se como calham bem Tiro e Harã, isto é, a angústia e o excelso, pois quem quiser chegar às coisas excelsas, sublimes, não poderá fazê-lo sem passar pela angústia. Assim também, a pessoa arrependida que quer subir à plenitude da vida eterna, deve antes passar por Tiro. É o próprio Senhor que o diz em Lucas: “Não era necessário que o Cristo sofresse - eis aí Tiro - para entrar assim em sua glória - eis aí Harã - ? (24,26).
Frei Geraldo Monteiro,Tradução do latim “Sermões Dominicais e Festivos”, vol. I, pp.105-109 – Ed.Messaggero - Pádua - 1979.

Sermões de Santo Antônio II.

Deixemos a vaidade do mundo!

“Jesus, tendo saído daquele lugar, retirou-se para a região de Tiro e Sidônia...”(Mt 15,21). “Jesus, tendo saído...”etc. A saída de Jesus representa a saída de toda pessoa humana que se converte e sai da vaidade do mundo. Sobre isto, se lê e se canta na história deste domingo (2º da Quaresma): “Tendo Jacó saído de Bersabéia partiu para Harã (Gn 28,10). Eis como concordam os dois Testamentos: “Jesus, tendo saído daquele lugar, retirou-se para a região de Tiro e Sidônia”, diz Mateus. “Jacó, tendo saído de Bersabéia, partiu para Harã”, diz Moisés no Gênesis. “Jacó é interpretado como 'suplantador’ e representa o pecador convertido que, sob a planta (do pé) da razão pisa, esmaga a sensualidade da carne. Ele sai de Bersabéia, que se interpreta `sétimo poço’, indicativo da insaciável cobiça deste mundo que é a raiz de todos os males. Deste poço fala João no seu evangelho, colocando as palavras da Samaritana na conversa com Jesus: “Senhor! Nem sequer tens uma vasilha e o poço é profundo”. E Jesus responde: “Todos aqueles que beberem desta água, ainda terão sede” (Jo 4,11.13). Ó Samaritana! Disseste com toda razão e verdade que o poço é profundo. Com efeito, a cobiça do mundo é profunda, exatamente porque não tem o fundo da suficiência, da saciedade. Por isso, quem quer que seja que beber da água deste poço, entendida como riquezas e prazeres temporais, terá sede de novo. E é verdade mesmo, devemos repetí-lo, porque até Salomão o diz nas parábolas: “A sanguessuga tem duas filhas que dizem: Quero mais, quero mais” (Pv 30,15). A sanguessuga é o diabo que tem sede da nossa alma e deseja bebê-la. Suas são a duas filhas, isto é, as riquezas e os prazeres que sempre dizem: “Quero mais, quero mais” e nunca “Basta!” Diz também o Apocalipse: “Do poço subiu uma fumaça como a fumaça de uma grande fornalha, de modo que o sol e o ar ficaram escuros por causa da fumaça do poço. E da fumaça se espalharam gafanhotos pela terra” (9,2-3). A fumaça que cega os olhos da razão sobe do poço da cobiça mundana que é a grande fornalha da Babilônia. Por causa dessa fumaça é que se obscureceram o sol e o ar. O sol e o ar simbolizam os religiosos. “Sol”, porque os religiosos devem ser sempre puros, cheios de afeição e lúcidos: puros pela castidade, cheios de afeição pelo amor e lúcidos pela pobreza. “Ar”, porque eles devem ser “aéreos”, quer dizer, contemplativos. Infelizmente, por causa de nossos pecados, saiu a fumaça do poço da cobiça e já defumou a todos. É por isso que Jeremias deplora nas Lamentações: “Ai! Como se escureceu o ouro, como mudou sua mais esplêndida cor!” (Lm 4,1). Sol e ouro, ar e cor esplêndida significam a mesma coisa. O esplendor do sol e do ouro se obscureceu, o ar e a cor mudaram. E observe-se bem a exatidão com que Jeremias disse: “escureceu e mudou”. Com efeito, a fumaça da cobiça escurece o esplendor da vida religiosa e obscurece a esplêndida cor da contemplação celeste, na qual o vulto da alma torna-se misticamente invadido por uma esplêndida cor, isto é, torna-se cândido e vermelho: cândido pela encarnação do Senhor, vermelho pela sua paixão, cândido pelo branco marfim da castidade, vermelho pelo ardente desejo do esposo celeste. Lamentavelmente, esta esplêndida cor, hoje em dia, está bastante deteriorada porque foi defumada pela fumaça da cobiça, sobre a qual ainda está escrito: “E da fumaça do poço saíram gafanhotos pela terra”. Os gafanhotos, pelos saltos que dão, representam todos os religiosos, os quais, com ambos os pés da pobreza e da obediência, devem saltar para a altura da vida eterna. Infelizmente, porém, com um salto para trás, da fumaça do poço, eles saíram pela terra e, como se diz no Êxodo, “cobriram a superfície da terra” (10,5). Hoje não se vêem mercados, não se fazem reuniões civis ou eclesiásticas nas quais não se encontrem monges e religiosos. Compram e revendem, “constroem e destroem, tornam redondo o que era quadrado” (Horácio, Epist.), isto é, torcem e retorcem qualquer coisa. Nos processos convocam as partes, brigam diante dos juizes, pagam legistas e advogados, induzem testemunhas a jurarem junto com eles por coisas transitórias, frívolas e vãs. Dizei-me, ó religiosos insensatos, se nos profetas ou nos evangelhos de Cristo ou nas cartas de Paulo, se na regra de São Bento ou de Santo Agostinho vós encontrastes essas brigas, essas distrações, esses clamores e essas declarações nos processos por coisas efêmeras e caducas. Ou pelo contrário, não é o próprio Senhor que diz aos Apóstolos, aos monges, a todos os religiosos e não a modo de conselho, mas de ordem mesmo, já que escolheram o caminho da perfeição: “Eu vos digo: amai os vossos inimigos, fazei o bem àqueles que vos odeiam; abençoai aqueles que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos caluniam. E a quem te bate numa face, apresenta-lhe também a outra. E a quem te leva o manto, não recuses a túnica. Dá a quem te pede e não reclames de quem toma o que é teu. Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles. E se amais apenas os que vos amam, que méritos tereis? Os pecadores também amam aqueles que os amam. E se fazeis o bem aos que vo-lo fazem, que méritos tereis? Até mesmo os pecadores agem assim” (Lc 6,27-33). Esta é a regra de Jesus Cristo que deve ser preferida a todas as regras, instituições, tradições, invenções, porque “não há servo maior que seu patrão, nem apóstolo maior que aquele que o enviou” (Jo 13,16). Observai, escutai e vede, ó povos todos, se existe bobeira, se existe presunção igual à deles. Em suas regras e constituições está escrito que cada monge ou cônego tenha duas ou três túnicas e dois pares de calçados, de acordo com o inverno ou o verão. Se por acaso acontece de não terem essas coisas no tempo e no lugar que querem, dizem que não se está observando o que é mandado e isso vai mesquinhamente contra a regra. Olhai com que escrúpulo querem observar a regra naquilo que é prescrito em vantagem do corpo, mas a regra de Jesus Cristo, sem a qual não podem salvar-se, observam pouco ou nada. E o que direi do clero e dos prelados da Igreja? Se um bispo ou um prelado da Igreja fizer algo contra um decreto do Papa Alexandre, Papa Inocêncio ou de qualquer outro papa, imediatamente é acusado, o acusado é convocado, o convocado é julgado por seu crime e, depois de julgado, é deposto. Ao contrário, se ele cometer algo de grave contra o Evangelho de Jesus Cristo, que ele tem por obrigação de vida observar, não há ninguém que o acuse, ninguém que o repreeenda. “Com efeito, todos amam o que é seu e não o que é de Jesus Cristo” (cfr. Fil 2,21). O próprio Cristo, com relação a essas coisas, tanto aos religiosos como ao clero, diz: “Invalidastes a Palavra de Deus por causa da vossa tradição. Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, quando disse: `Este povo me honra com os lábios, mas o coração está longe de mim. Em vão me prestam culto, pois o que ensinam são mandamentos humanos’ (Mt 15,6-9). E de novo: “Ai de vós, fariseus, que pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças, mas deixais de lado a justiça e o amor de Deus! Importava praticar estas coisas sem deixar de lado aquelas. Ai de vós, fariseus, que apreciais o primeiro lugar nas sinagogas e as saudações nas praças públicas... Ai de vós, doutores da lei, que impondes aos homens fardos insuportáveis e vós mesmos não tocais esses fardos com um dedo sequer... Ai de vós, doutores da lei, porque tomastes as chaves da ciência! Vós mesmos não entrastes e impedistes os que queriam entrar! (Lc 11,42-43.46.52). Portanto, bem se diz no Apocalipse que “saiu a fumaça do poço como a fumaça de uma grande fornalha que escureceu o sol e o ar e, da fumaça do poço, se espalharam sobre a terra os gafanhotos”. E observe-se ainda que o poço da cobiça humana é chamado “sétimo poço” e isso por dois motivos: ou porque é o `lixo’ e a fossa de sete crimes (pois a cobiça, como diz o Apóstolo, é a raiz de todos os males (Tm.6,10), ou porque a cobiça não tem o fundo da saciedade tal qual se lê no Gênesis que o “sétimo dia não teve tarde” (Gn 2,2). É deste infeliz poço, pois, que o pecador arrependido consegue sair. A ele se aplicam as palavras: “Jacó, tendo saído de Bersabéia, partiu para Harã”. “Jesus, tendo saído dali, partiu para a região de Tiro e Sidônia”. Vejamos o que significam esses três nomes: Tiro, Sidônia e Harã. Tiro é interpretado como “angústia”, Sidônia “caça da tristeza”, Harã “excelsa ou indignação”. A pessoa arrependida, que sai da cobiça do mundo, vai para as regiões de Tiro, isto é, da angústia. Observe-se bem que a pessoa verdadeiramente arrependida tem duas angústias: a primeira é aquela que ela sente pelos pecados cometidos, a segunda é aquela que ela tem que agüentar por causa das três tentações, a do diabo, do mundo e a da carne. Sobre a primeira diz Jó: “As coisas que antes a minha alma não queria tocar, agora na minha angústia, tornaram-se o meu alimento” (6,7). Com efeito, para a pessoa arrependida, por causa da angústia do arrependimento que ela sente pelos pecados, quais alimentos saborosos são as vigílias intensas, as lágrimas abundantes, os freqüentes jejuns. Tudo isso a alma, isto é, a sua sensualidade saciada de coisas temporais, aborrecia até tocar, antes de voltar à penitência. É por isso que diz Salomão nas Parábolas: “A alma saciada pisa o favo de mel, mas a alma faminta toma até o amargo como se fosse doce” (Pr 27,7). Observe-se como calham bem Tiro e Harã, isto é, a angústia e o excelso, pois quem quiser chegar às coisas excelsas, sublimes, não poderá fazê-lo sem passar pela angústia. Assim também, a pessoa arrependida que quer subir à plenitude da vida eterna, deve antes passar por Tiro. É o próprio Senhor que o diz em Lucas: “Não era necessário que o Cristo sofresse - eis aí Tiro - para entrar assim em sua glória - eis aí Harã - ? (24,26).
Frei Geraldo Monteiro,Tradução do latim “Sermões Dominicais e Festivos”, vol. I, pp.105-109 – Ed.Messaggero - Pádua - 1979.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Sermão do Santo Cura D'Ars.



ELES PERTENCEM AO MUNDO
Sermão de São João Maria Vianney, o Santo Cura D’ars


Uma parte, e talvez a maior parte das pessoas, está totalmente envolvida com as coisas deste mundo. E, neste largo número, existem aqueles que se julgam felizes por terem suprimido todo e qualquer sentimento de religiosidade, todo e qualquer pensamento sobre a vida eterna, aqueles que fizeram de tudo que estava em seu poder para apagar da memória a terrível recordação do Julgamento, no qual, um dia, todos nós teremos que nos apresentar e prestar contas. Durante o curso de suas vidas, eles usam de tudo quanto é artimanha, e freqüentemente até suas posses, para atraírem para o seu modo de vida tantos quanto puderem. Eles já não acreditam em mais nada. Aliás, eles até sentem um certo orgulho em se exibirem mais ímpios e incrédulos do que realmente são, para poderem convencer os outros a acreditarem, não em verdades, mas sim em falsidades, que vão fincando raízes nos corações daqueles que são influenciados por eles.

Durante um jantar que Voltaire deu num certo dia para seus amigos, – um bando de ímpios– ele rejubilou-se porque entre todos os presentes não havia um sequer que acreditava em religião. Embora, no fundo, ele próprio ainda acreditava. Tanto é verdade, que ele demonstrou isso claramente na hora de sua morte. Naquele momento crucial, ele ordenou com grande pressa que um sacerdote fosse levado à sua presença para reconciliar-lhe com Deus. Mas foi tarde demais!

Deus, contra Quem ele havia lutado e falado mal com tanta fúria, durante toda a sua vida, agiu com ele do mesmo modo como agiu com Antíoco. Deus simplesmente o abandonou à fúria dos demônios. Naquele momento de pavor, Voltaire tinha apenas o desespero e o pensamento da condenação eterna que lhe estava destinada. O Espírito Santo nos diz: “O tolo diz em seu coração: não existe Deus”. Mas é apenas a corrupção de seu coração que o leva a cometer tais excessos. No fundo, no fundo, ele não acredita nisso. Ou seja, aquelas palavras: “Deus existe”, nunca desaparecerão inteiramente de seu coração. O pior dos pecadores sempre proferirá o nome de Deus, mesmo sem pensar no que está dizendo! Mas deixemos esses blasfemos de lado. Felizmente, apesar de vocês não serem tão bons cristãos como deveriam ser, graças a Deus, vocês não estão entre esse tipo de gente.



Mas então, vocês me perguntarão, afinal quem são essas pessoas que estão parcialmente do lado de Deus e parcialmente do lado do mundo? Bem, meus caros filhos, permita-me descrevê-los. Eu vou compará-los, se me permitirem usar o termo, com cachorros que correm atrás do primeiro que os chamar ou lhes acenar. Vocês podem segui-los do amanhecer até o fim do dia, do início do ano até o final. Estas pessoas vêem o Domingo, simplesmente, como um dia de descanso ou de lazer. Nesse dia, eles ficam mais tempo na cama do que nos dias-de-semana, e ao invés de se entregarem a Deus de todo o seu coração, eles nem sequer pensam no Altíssimo. Alguns deles estarão o tempo todo pensando em como será o seu “dia de lazer”, outros estarão pensando nas pessoas que eles irão encontrar e ainda outros, nas vendas que eles irão fazer, ou no dinheiro que eles esperam gastar ou receber. É com grande dificuldade que essas pessoas fazem o Sinal da Cruz, e quando o fazem, fazem de um modo desleixado. Por outro lado, já que elas irão à Missa mais tarde, elas simplesmente negligenciam as orações que todos os dias deveriam fazer, dizendo como desculpa: – Oh! Eu terei tempo de sobra para fazê-las antes da Missa! Essas pessoas sempre têm algo mais importante a fazer antes de se prepararem para ir à Missa e apesar de terem planejado orar um pouco antes de saírem para a Igreja, dificilmente conseguem chegar a tempo para o início da Missa. Se encontram um amigo ao longo do caminho, não tem o menor escrúpulo em voltar para casa com o tal amigo e deixarem a Missa para outra ocasião.

Mas porque ainda querem se parecer “bons cristãos”, tais pessoas acabarão por irem à Missa talvez algum tempo mais tarde, embora sempre o fazendo com relutância e achando um infinito aborrecimento. Durante a Missa, o único pensamento que lhes ocorre é aquele: “Ó meu Deus, será que essa Missa não acaba nunca?!” Você pode também observá-los dentro da Igreja, especialmente durante a homilia, olhando sempre de um lado para outro, perguntando à pessoa do lado pelas horas e assim por diante. Uma boa parte delas fica folheando o Missal, como se estivessem procurando por algum erro de impressão. Há outras que podemos ver dormindo e até mesmo roncando como se estivessem confortavelmente deitadas numa cama. Quando acordam assustadas, o primeiro pensamento que lhes vem em mente não é aquele de terem profanado um local santo, mas sim este:

– Oh meu Deus! Esse padre ainda está falando? Será que esse sermão não termina mais? Desse jeito eu não volto mais!

E finalmente existe também aqueles para quem a Palavra de Deus (que tem convertido tantos pecadores) é verdadeiramente nauseante. Eles não têm vergonha de dizer que são obrigados a sair pelo menos por alguns minutos da Igreja,” para poderem respirar um pouco “, caso contrário eles morreriam! Você sempre os verá desinteressados e tristes durante as Missas. Mas espere pra ver quando a celebração terminar! Freqüentemente, mesmo antes do sacerdote deixar o altar, eles já estarão com um pé pra fora da porta de entrada. Serão sempre os primeiros a abandonar a assembléia e qualquer um perceberá que toda aquela alegria que haviam perdido durante a Missa subitamente voltou!

Os mundanos de hoje: diversão é ver sua série preferida e ouvir músicas seculares. Tudo o que vem de Deus aborrece.

Geralmente essas pessoas estão sempre tão cansadas, que nunca terão forças para retornarem para qualquer outra atividade durante a noite: Vigílias, Adoração Solene do Santíssimo Sacramento… etc. E se você lhes perguntar por que elas não compareceram, elas simplesmente responderão:

– “Ah! Você também não quer que eu passe o dia inteiro na Igreja, não é? Afinal, tenho outras coisas para fazer!”

Para tais pessoas, não existe nada que se aproveite nas homilias, nem no Rosário ou nas Orações Noturnas. Elas vêem essas coisas como simples conseqüências. Se você lhes perguntar o que foi dito durante a homilia, elas sempre responderão: – Ah! O Padre não fez outra coisa a não ser gritar muito durante o sermão… foi enjoativo demais… eu não consigo me lembrar de absolutamente nada…. Ah! se ele não tivesse sido tão demorado, eu ainda poderia me lembrar de alguma coisa… tá vendo porque todo o mundo não gosta de ir à Missa? É porque ela é comprida demais!

Pelo menos uma coisa esta pessoa disse certo: “todo o mundo”, porque tais pessoas pertencem à classe dos “mundanos”, embora eles próprios não saibam disso. Mas agora vou tentar fazê-los compreender as coisas um pouquinho melhor, pelo menos se eles quiserem… Mas, sendo eles surdos e cegos como são, é muito difícil fazê-los entender as Palavras de Vida Eterna ou o seu estado tão infeliz. Só pra começar, eles nunca fazem o Sinal da Cruz antes de uma refeição e nem tampouco fazem Ação de Graças depois das mesmas, e muito menos recitam o Ângelus. Se por acaso ainda observarem esses preceitos, devido à força do hábito ou apenas por costume, eles o farão de um modo tão superficial que qualquer um ficaria decepcionado ao vê-los: as mulheres o farão, ao mesmo tempo em que gritam com os demais membros da casa ou chamam as crianças para a mesa, os homens o farão distraidamente enquanto rodam o chapéu de uma mão para outra como se estivessem procurando por algum buraco. O modo como eles pensam em Deus, e o modo como se comportam, nos leva facilmente a pensar que eles não têm nenhuma fé e que tudo que fazem, o fazem apenas por brincadeira. Tais pessoas não têm o menor escrúpulo em comprar ou vender nos dias santos e domingos, muito embora saibam que quando não se tem um motivo razoável para isso, é sempre um pecado mortal. Tais pessoas vêem todos esses fatos como bobagens. Alguns chegam a freqüentar a Igreja nos dias santos apenas para recrutarem trabalhadores e se você disser que o que estão fazendo é errado, elas simplesmente responderão:

– Nós temos que ir é onde as pessoas se reúnem e quando elas podem ser encontradas! Elas também não se importam nem um pouco em pagar suas contas aos domingos, afinal durante a semana precisarão de todo o tempo disponível para adiantar seus trabalhos.

Você então me dirá: – Nenhum de nós se preocupa muito com essas coisas!

E eu lhes digo, vocês não se preocupam, meu caro povo, porque vocês também são todos mundanos. Vocês querem servir a Deus e ao mesmo tempo satisfazerem aos padrões deste mundo. Vocês percebem, meus filhos, quem são esse tipo de gente? São pessoas que ainda não perderam completamente a Fé e que de alguma maneira ainda permanecem ligados ao serviço de Deus, são pessoas que ainda não abandonaram de vez todas as práticas religiosas e que chegam inclusive a achar falta naqueles que não freqüentam a Igreja de jeito nenhum, mas elas próprias não têm coragem de romper com o mundo para passarem exclusivamente para o lado de Deus.

Tais pessoas não desejam ir para a condenação eterna, mas também não querem se meter em situações muito inconvenientes. Elas acham que serão salvas sem ter que fazer muita violência contra si próprias. Elas têm uma idéia de que Deus sendo tão bom, não criou ninguém para a perdição e que no final, apesar de tudo, Ele perdoará a tudo e a todos; que no tempo propício todos se voltarão para Deus, que corrigirão suas faltas e abandonarão seus maus hábitos. No caso de, em algum momento de reflexão, chegarem a dar uma repassada em suas vidas mesquinhas, talvez eles até se lamentem por seus pecados e algumas vezes pode até ser que chorem por causa deles…

Meu filho, quão trágico é a vida daqueles que querem seguir os caminhos do mundo sem, no entanto, deixarem de ser filhos de Deus! Vamos um pouquinho mais adiante e vocês serão capazes de compreender mais claramente e ver com os seus próprios olhos o quão estúpido esse estilo de vida pode ser. Num determinado momento você chegará a ouvir tais pessoas rezando ou fazendo um ato de contrição. Pouco depois se alguma coisa acontece, do modo contrário ao que eles esperavam, você poderá ouvi-los fazendo imprecações e até mesmo usando o Santo Nome de Deus em vão. Pela manhã você talvez os encontre na Missa cantando ou louvando a Deus. E no mesmíssimo dia você poderá ouvi-los espalhando aos quatro ventos as conversas mais escandalosas.

Ao entrar na Igreja, eles molham as suas mãos na água benta pedindo a Deus que os purifique dos seus pecados. Um pouquinho mais adiante estará usando essas mesmas mãos em atos impuros contra eles próprios ou contra o seu próximo. Os mesmos olhos que pela manhã derramavam lágrimas de emoção ao contemplar Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, durante o resto do dia se concentrarão em observar as cenas mais imodestas. Ontem você viu um determinado homem fazendo um ato de caridade ou prestando um serviço ao seu próximo, hoje esse mesmo homem dá o melhor de si para trair seu vizinho, buscando seu próprio lucro. Há poucos momentos atrás, aquela mãe desejava todo o tipo de bênçãos para seus filhos, e agora, só porque eles a aborrecem com suas travessuras, ela roga uma verdadeira chuva de pragas sobre eles: diz que desejaria nunca mais vê-los em sua presença e acaba até os mandando para o Diabo! Num dado momento, ela os envia para a Missa ou para a Confissão, já em outro momento, ela os envia para os bailes, ou pelo menos faz de contas que não sabe que eles se encontram lá, ou até mesmo se chegar a proibir, sempre o fará com um sorriso nos lábios, deixando perceber que mais aprova do que condena. Numa determinada ocasião, essa mesma mãe dirá à sua filha para ser recatada e não se misturar com as más companhias e, dali a pouco, estará permitindo que sua filha passe horas a sós com um rapaz sem dizer uma só palavra. Não preciso dizer mais nada, minha pobre mãe! Vê-se claramente que você está do lado do mundo! Você até acha que está servindo a Deus por causa das práticas exteriores de religiosidade que você pratica. Mas você está enganada; você pertence àquela classe de gente da qual o próprio Jesus Cristo disse: “Ai do mundo!…”.

Observe bem essas pessoas que pensam estar servindo a Deus, mas que estão vivendo verdadeiramente segundo as máximas do mundo. Elas não têm o menor escrúpulo em tomar as coisas do seu vizinho, quer seja alguns pedaços de lenha ou frutas, ou mesmo milhares de outras coisas. Sempre que forem lisonjeadas ou elogiadas pelo que fazem em termos de religião, sentirão um grande orgulho por suas ações. Tais pessoas são sempre muito entusiasmadas em dar bons conselhos aos outros. Mas deixe que elas sejam submetidas a algum contratempo ou calúnia e vocês verão como elas se comportam por terem sido tratadas de tal modo! Ontem estavam dispostas a fazer todo o bem desse mundo àquele que as ofendeu, hoje mal conseguem tolerar tal pessoa e freqüentemente não conseguem sequer vê-la ou falar com ela.

Pobres mundanos! Quão infelizes vocês são! Sigam em frente com esse modo de vida e vocês não terão nada a ganhar a não ser o Inferno! Alguns de vocês até gostariam de freqüentar o Sacramento da Confissão, pelo menos uma vez no ano, mas para isso, primeiramente teriam que encontrar um confessor daqueles bem condescendentes. Imagine… até gostariam… se isso fosse todo o problema! Suponhamos que encontrem um confessor que perceba que suas disposições não são boas, ou seja, falta-lhes o arrependimento e a contrição, e que portanto se recuse a dar-lhes a absolvição! Imediatamente se põem a falar mal do confessor, procurando se justificarem a si próprias pelo fato de terem tentado e falhado em obter o Sacramento. Com certeza elas falarão muito mal daquele confessor, apesar de terem pleno conhecimento de seu estado pecaminoso e de saberem muito bem porque o confessor recusou a dar-lhes a absolvição. De todo modo, eles sabem bem que o confessor não pode fazer nada para conceder aquilo que eles querem, ainda assim elas não se dão por satisfeitas em sair espalhando suas mentiras!

Continuem assim, filhos deste mundo! Continuem nessa rotina; vocês vão ver um dia aquilo que jamais desejariam ver! Eu sei que vocês gostariam de repartir seus corações em dois! Mas não tem jeito, meus amigos: ou é tudo pra Deus ou é tudo para o mundo. Vocês querem receber com freqüência os Sacramentos? Muito bem, pois então, abram mão das danças, dos cabarés e das diversões pecaminosas! Hoje vocês possuem a graça em grau suficiente para virem até aqui, apresentarem-se voluntariamente no Tribunal da Penitência, ajoelhar-se diante da Mesa Sagrada e partilhar do Pão dos Anjos. Daqui a três ou quatro semanas, talvez até menos, vocês já serão vistos passando as noites ao lado dos bêbados, e o que é pior, se entregando aos mais horríveis atos de impureza! Pois continuem assim, filhos deste mundo! Logo, logo vocês estarão no Inferno! Lá eles ensinarão a vocês tudo que deveriam ter feito para con-seguir o Céu, que vocês acabaram perdendo inteiramente por sua própria culpa!

Ai de vocês, filhos deste mundo! Continuem assim; sigam o mestre que vocês têm seguido até agora! Muito cedo vocês perceberão o quão errado vocês foram ao seguir esses caminhos. Mas será que isso os fará mais sábios? Infelizmente não. Se alguém nos trai uma vez, nós logo dizemos: –Nunca mais voltarei a confiar nele novamente! E com razão! Mas o mundo nos trai continuamente e mesmo assim continuamos a amá-lo. São João nos adverte em sua Primeira Epístola: “Não ameis o mundo nem as coisas do mundo. Se alguém ama o mundo não está nele o amor do Pai”. Ah! Meus caros filhos, se nós tivéssemos a menor idéia do que é o mundo, passaríamos nossas vidas em dar-lhe adeus. Quando uma pessoa atinge a idade de quinze anos, ela dá adeus aos tempos de sua infância, ela olha para trás e vê como efêmeras e bobas eram as brincadeiras de crianças, como construir castelinhos de areia. Aos trinta, a pessoa começa a deixar de lado os prazeres consumistas da juventude leviana. Aquilo que dava tanto prazer nos dias de juventude, começa a tornar-se aborrecido. Se formos pensar bem, meus amigos, todos os dias estamos dando adeus a este mundo. Somos como viajantes que desfrutam da beleza da paisagem apenas enquanto estão viajando. Mais cedo do que esperamos, veremos o tempo que deixamos para trás. E é exatamente a mesma coisa com os prazeres e bens dos quais nos tornamos tão apegados. Chegará o dia em que a Eternidade jogará todas essas coisas num profundo abismo. E então, meus caros irmãos, o mundo desaparecerá para sempre dos nossos olhos e reconheceremos a nossa loucura em termos sido tão apegados a ele. E a respeito de tudo o que nos foi dito sobre o pecado? Só então veremos que era tudo verdade! Coitado daquele que tiver vivido somente para o mundo! Aquele que não buscou outra coisa senão o mundo em tudo aquilo que fez… De repente todos os prazeres e alegrias do mundo já não mais existem! Tudo estará escapulindo de suas mãos: o mundo, suas alegrias, todos os prazeres que ocupavam seu coração e o que é pior: também sua alma!



fonte:http://alexandriacatolica.blogspot.com/2011/04/sermoes-de-sao-joao-maria-vianney-o.html

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Sermões de Santo Antônio I.



Na solidão encontrarás o Senhor

1. Naquele tempo disse Jesus a Pedro: “Segue-me” (Jo 21,19). Neste passo do Evangelho, podem-se observar duas coisas: a imitação de Cristo e seu amor para com seu fiel discípulo.

I - A Imitação de Cristo.

2. A imitação de Cristo está expressa nas palavras: “Segue-me”. Sim, isso ele o diz a Pedro, mas também a todo cristão: “segue-me, tu também, nu como nu o sou, livre de todo apego como livre o sou”. Por isso é que Jeremias afirma: “ Chamar-me-ás de Pai e não te cansarás de andar atrás de mim” (3,19). Segue-me, portanto, e joga fora o peso que levas, pois, carregado como estás, não podes andar atrás de mim que corro. “Corri, diz o salmista, tendo sede” (Sal 61,5); sede, entende-se, de salvar a humanidade. E para onde ele corre? Na direção da cruz. Por isso, corre também tu atrás de Cristo para que assim como ele tomou sua cruz por ti, tu também tomes a tua cruz por ti. Lê-se no evangelho de Lucas: “Se alguém quer vir após mim, renegue a si mesmo” (9,23), quer dizer, sacrifique a própria vontade, tome sua cruz mortificando a carne, todos os dias, isto é, continuamente, e assim siga-me. Portanto: segue-me! Ou então, se quiseres vir a mim e encontrar-me, segue-me, isto é, procura-me à parte. Ele diz aos discípulos: “Vinde à parte a um lugar deserto e descansai um pouco. Com efeito, tão grande era a multidão que ia e vinha que ele não tinha nem mesmo o tempo para comer” (Mc 6,31). Que coisa! Quantas paixões da carne, que multidão de pensamentos vão e vêm pelo nosso coração! E assim não temos nem o tempo de nos alimentar com o alimento da eterna doçura, nem de sentir o sabor da contemplação interior. Eis porque o bondoso Mestre diz ainda: “Vinde à parte, para longe da multidão, vinde a um lugar apartado, isto é, à solidão interior, da mente e do corpo, e descansai um pouco. Sim, “um pouco”, porque como diz o Apocalipse: “Fez-se silêncio no céu por mais ou menos uma meia hora” (8,1) e o Salmo 54,7: “Quem me dará asas de pomba para voar e encontrar repouso?”. E o profeta Oséias também diz: “Eis que eu a amamentarei e conduzi-la-ei ao deserto e lhe falarei ao coração” (2,16). Nestas três expressões (amamentarei-conduzirei-falarei ao coração) podem-se notar também três situações: aquela de quem está no começo, aquela de quem está progredindo e aquela de quem já está na perfeição. É a graça que amamenta quem está no começo e o ilumina para que cresça e progrida de virtude em virtude; e por isso o conduz do barulho dos vícios, do tumulto dos pensamentos à solidão, isto é, à quietude interior da mente. Aí então, torna-o perfeito, fala-lhe ao coração e ele sente a doçura da inspiração divina e pode elevar-se de corpo e alma à alegria do espírito. E então, como é grande em seu coração a devoção! E como são grandes também a contemplação e o êxtase! Através da grandeza da devoção, a pessoa eleva-se acima de si mesma. Através da sublime contemplação ela se sente como que transportada ainda acima de si mesma e, através do êxtase, ela é levada como para fora de si mesma. Por isso: “segue-me”. O Senhor fala como uma mãe carinhosa que quando está ensinando seu nenê a caminhar, mostra-lhe o pão ou uma maçã e lhe diz: “Vem, vem, eu vou te dar!” E quando a criança está pertinho, pronta para pegar, a mãe, devagarinho.. vai se afastando e dizendo-lhe, mostrando o pão e a maçã: “Vem, vem, pega!” Existem também pássaros que tiram do ninho seus filhotes e, voando, os ensina a voar e segui-los. Assim faz Cristo: ele mesmo se coloca como exemplo para que o sigamos e promete o prêmio no Reino dos Céus.

3. Segue-me, portanto, porque eu conheço o bom caminho pelo qual conduzir-te. No Livro dos Provérbios encontra-se escrito a este propósito: “Mostrar-te-ei o caminho da sabedoria. Conduzir-te-ei pelos caminhos da retidão. Quando neles entrares, teus passos não serão trôpegos e, se correres, não haverás de tropeçar” (4,11-12). O caminho da sabedoria é o caminho da humildade. Bem diferente é o caminho da estultícia, porque é o caminho do orgulho. Jesus mesmo no-lo mostrou quando disse: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para vossas almas” (Mt 11,29). O caminho é estreito, dá apenas para dois pés, de tal modo que nenhum outro possa passar. Diz-se em latim `semita’, isto é, “meia estrada”,`semis iter’, pois “semis” quer dizer metade e `iter’ quer dizer caminho. Caminhos da retidão são os da pobreza e da obediência. Por eles é que Cristo te conduz com seu exemplo, ele mesmo pobre e obediente. Nesses caminhos não existe estrada tortuosa; tudo é bem plaino, bem reto! Mas o que causa maravilha é o fato que, mesmo sendo assim tão estreitos, os passos dados neles não são indecisos, sem jeito. O caminho do mundo, ao contrário, é largo e espaçoso. E, no entanto, os seculares, aqueles que vivem segundo o mundo, acham que ele nunca é suficientemente largo: são como bêbados que acham sempre estreito qualquer caminho, mesmo o largo. Com efeito, a maldade tem uma estreiteza conatural. A pobreza e a obediência, ao contrário, contêm, é claro, uma restrição, mas por isso mesmo doam também liberdade, porque a pobreza torna rico e a obediência livre. Quem percorrer esses caminhos seguindo a Jesus, jamais encontrará o tropeço das riquezas ou o tropeço da própria vontade. Segue-me, portanto, e mostrar-te-ei “aquilo que olho não viu, ouvido não ouviu nem penetrou em coração de homem” (1Cor 2,9). “Segue-me e dar-te-ei, diz Isaías, tesouros escondidos e riquezas ocultas” (45,3). E o mesmo: “Ù vista disso ficarás radiante de alegria e teu coração estremecerá e se dilatará” (60,5). Haverás de ver a Deus face a face, assim como ele é e te encherás de delícias e riquezas na dupla estola da alma e do corpo. Teu coração admirará as ordens dos anjos e a moradia dos bem-aventurados e, por causa da imensa felicidade, se dilatará na exultação e no louvor. Portanto: segue-me!

II - O Amor de Cristo para com o seu discípulo fiel.

4. O amor de Cristo para com a pessoa que lhe é fiel é bem demonstrado, por exemplo, na seguinte passagem: “Pedro, então, tendo-se voltado, viu que o estava seguindo o discípulo que Jesus amava, aquele que na ceia tinha se inclinado sobre o seu peito” (Jo 21,20). Quem realmente segue a Cristo, deseja que todos sigam o Senhor. Eis porque se dirige ao próximo com carinho, com oração devota e com a pregação. O voltar-se de Pedro significa exatamente isto e concorda com o final do Apocalipse - “O esposo e a esposa, isto é, Cristo e a Igreja, dizem: Vem! E quem escuta diga por sua vez: Vem! (22,17). Cristo, por meio da inspiração celeste, e a Igreja, por meio da pregação, dizem ao homem e à mulher: Vem! E quem ouve essas palavras, diga por sua vez ao próximo: Vem! Não queres seguir a Jesus? Portanto: tendo-se voltado, Pedro viu que o estava seguindo aquele discípulo que Jesus amava. E Jesus ama quem o segue. No livro dos Números diz-se o seguinte: “O meu servo Caleb, que me seguiu fielmente, eu o introduzirei na terra que ele percorreu. E a sua geração dela tomará posse” (14,24). A Glossa, sem dizer o nome, mas com as palavras “que Jesus amava” está indicado o discípulo João e ele se distingue dos outros não porque Jesus amasse somente a ele, mas porque amava mais a ele do que aos outros. Amava também os outros, mas a este o amava com “maior afeição”. E Jesus gratificou-o com uma ternura maior de seu amor, pois o havia chamado quando era ainda virgem e virgem ele permaneceu; por isso a ele Jesus confiou sua própria mãe. Este foi um gesto imenso de amor! Somente João repousou a cabeça no peito de Jesus” no qual estão encerrados todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Col 2,3). Nesse mesmo gesto estava como que prefigurado o fato dos inumeráveis segredos divinos que ele haveria de escrever, a diferença dos demais evangelistas.

5. Pode-se observar também que Jacó descansou sobre uma pedra e João sobre o peito de Jesus. Aquele durante a caminhada, este durante a ceia. Em Jacó são representados os peregrinos sobre a terra, em João os bem-aventurados. Aqueles, durante a caminhada terrena, estes, já chegados à pátria celeste. No livro do Gênesis, se diz: “Jacó partiu de Bersabéia e dirigia-se a Haran. Querendo descansar, pegou uma pedra, colocou-a sob a cabeça e dormiu. E, em sonho, viu uma escada em pé e anjos subindo e descendo por ela e o Senhor no topo da escada.” (28,10-13). Jacó é o justo ainda peregrino sobre esta terra onde tem muito que lutar. Ele sai de Bersabéia que significa “sétimo poço” e representa o poço sem fundo da cobiça humana, exatamente como o sétimo dia do qual se lê não ter fim. Dirige-se rumo a Haran que significa “alto” e representa por isso a Jerusalém celeste. O profeta Habacuc o diz: “Subirei e me unirei ao nosso povo já em paz”, o nosso povo que triunfou sobre a maldade do século. E, por desejar aliviar o cansaço de sua peregrinação, o justo coloca sob a cabeça uma pedra e adormece. A cabeça é a mente. A pedra é a firmeza da fé. A escada em pé representa o duplo amor a Deus e ao próximo. Os anjos são os homens justos que sobem até Deus elevando-se com suas mentes, mas abaixando-se até o próximo através da compaixão. A pessoa justa, então, durante a peregrinação terrena, coloca a mente na firmeza da fé para descansar. Eis porque está escrito nos Provérbios: “O arganaz, uma espécie de marmota, por sua natureza, é fraco e faz seu esconderijo na pedra” (30,26). O arganaz, animal tímido, representa quem é fraco no espírito e por isso não sabe opor-se com força aos ataques de qualquer espécie e coloca na pedra da fé o travesseiro da sua esperança para aí poder descansar e dormir e ver elevar-se em si mesmo a escada do amor. Observe-se que o Senhor está no topo da escada por dois motivos: para sustentá-la e para acolher os que nela sobem. Na realidade ele sustenta o peso da nossa fragilidade de modo a estarmos em grau de subir a escada através das obras do amor. E ele acolhe aqueles que sobem para que possamos também nós tornar-nos eternos e bem aventurados com ele que é eterno e bem aventurado. E então, naquela ceia que nos saciará para sempre, descansaremos, com João, sobre o peito de Jesus. O coração no peito é o amor no coração. Descansaremos em seu amor, porque haveremos de amá-lo com todo o coração e com toda a alma e encontraremos nele todos os tesouros da sabedoria e da ciência. O amor de Jesus! Que tesouro colocado no amor! Que sabedoria de inestimável sabor! Que ciência ele nos faz conhecer! “Serei saciado, diz o salmista, quando aparecer a tua glória” (16,15) e “Esta é a vida eterna: conhecer a Ti, o único verdadeiro Deus e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17,3). A Ele sejam dados louvor e glória pelos séculos eternos. Amém.

(Na Festa de São João Evangelista, III,pg.31-35)

Traduzido diretamente dos originais em latim por frei Geraldo Monteiro, conforme a edição crítica: “Sermões Dominicais e Festivos, III volume, Pádua, 1979, Ed. Messaggero Padova”.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Editorial - desafios ao movimento de restauração da tradição católica: cuidados ao involver-se com isso!



Desafios ao movimento de restauração da tradição católica.

Muitas vezes, percebemos a dificuldade da restauração da tradição católica devido a uma série de fatores. Vejamos alguns que se relacionam ao apostolado leigo.

1.Católicos “raivosos”. Há um movimento de católicos “raivosos” (mau exemplo de certos líderes) que se dedicam somente à apologética, aqueles desconfiados e amedrontados que não hesitam em chamar seus opositores (ou mesmo seus irmãos ignorantes)de hereges, apóstatas, ateus, descrentes (apesar de muitas vezes sê-los), e menosprezam qualquer outra forma de apostolado devocional e caritativo (justamente o que mais cativa seguidores e os conduz a conversões). Com isso, conquistam mais inimigos e mais resistência do que seguidores e adesões. Falta-lhes a caridade para fazer a apologética e esclarecer os confusos e/ou ignorantes de forma mais gentil (mas sem amolecer na assertividade), o que reforça a idéia de que a Igreja tradicional seja um poço de obscurantismo, de condenações, de caçadores e queimadores de bruxas, etc. Desconfiam de toda iniciativa baseada na sã doutrina e que não seja da pura apologética contra as heresias (principalmente do clero modernista e dos delírios do Concílio Vaticano II) e da discussão escolástica meramente intelectual (diferentemente da difusão de devoções e práticas misericordiosas, que é justamente o que mais impressiona, atrai mais seguidores e penetra mais profundamente e sem grandes resistências entre a população, já que isso se encontra pouco profanado pelo modernismo e bem relacionado a uma doutrina tradicional segura e que as embaseia, excetuando-se o ativismo social comunista e herético da TL ou algumas devoções protestantes - ou espíritas - estranhas e não menos heréticas da RCC). Olham com desconfiança até pessoas que podem ser bons colaboradores do movimento com outros dons devocionais, administrativos, catequísticos ou caritativos - afinal, a Igreja é um Corpo com várias habilidades, e limitar a ação dos leigos somente à apologética seria fazê-lo claudicar com andar lento e trôpego. Sobra-lhes orgulho por se sentirem mais cultos e esclarecidos do que a grande massa da população (e, de fato, a ignorância da doutrina católica é a regra hoje em dia). Isso gera mais antipatia contra o movimento e os tradicionais acabam sendo vistos como casos psiquiátricos, um bando de D. Quixotes fora de contexto, ou uma elite antipática, o que afasta seguidores. Falta-lhes, também, um conhecimento devocional mais profundo e uma meditação humilde sobre suas próprias vidas em confronto com os ensinamentos da Igreja, e, por essa falta, descambam para o farisaísmo e acabam mais atrapalhando do que ajudando. Sem a caridade, o diálogo mais respeitoso e a humildade no trato com os outros (sem perder a firmeza, claro), e sem boas obras de misericórdia, não haverá um bom exemplo a ser seguido nem estímulo a conversões, e acabará tudo num delírio orgulhoso, meramente intelectual e infrutífero, medroso e extremamente dependente de iniciativas do clero (na maioria modernista, atrapalhado, tímido, ignorante e nada simpático à causa) já cheio de tarefas a cumprir em seu ativismo de "enxugar gelo" (além da mania de “só o Padre é que sabe, só o Padre é que pode” – uma atitude excessivamente passiva e dependente, como se a caridade, a penitência e a oração meditativa/contemplativa fossem de prerrogativa exclusiva do clero e dos religiosos, e uma contradição, já que os leigos apologetas, muito ativos em funções que seriam da competência do clero, têm um bom embasamento doutrinário; mas falta-lhes sabedoria e discernimento, aprendidos mais em exercícios espirituais e devocionais do que em leituras meramente intelectuais, algo que os Padres da Igreja já conheciam - por isso essa passividade). Isso cria grupinhos isolados sem orientação e sem "ordem unida", além de afastar possíveis colaboradores (ocorre o mesmo nas pastorais paroquiais, onde a estupidez, o orgulho, o egocentrismo e a ignorância são a regra).

2.Falta de boas obras (e exemplos) de caridade. O leigo prega mais por seu exemplo de vida do que por suas palavras. O discurso do leigo não tem a mesma autoridade entre outros católicos do que daquele do clero, que consegue até pregar heresias e angariar adeptos entre o povo sem a mínima contestação. Sem obras de misericórdia, não há simpatia por tais pessoas nem pela fé que dizem professar. A filantropia (o gostar do ser humano por ser uma pessoa) é uma grande jogada de marketing de empresas, pessoas e até de falsas religiões para se promoverem e angariarem simpatia para suas causas (além de adeptos). Os católicos não perceberam o impacto que a caridade (amar o ser humano por ser membro do Corpo Místico de Cristo, amando a Deus, assim, com o amor que Deus tem por nós) faz entre as pessoas, fiéis ou não. Sem caridade (a começar dentro da própria família mas nunca ficando circunscrita a ela, expandindo-se a toda pessoa que nos cruze o caminho, inclusive aos inimigos), a fé é vã e farisaica. O mundo está sedento de caridade! A caridade é a perfeição e o certificado da fé!

3.Devoção superficial e “de boca” (não em espírito devocional, nem em verdade da prática virtuosa). A Igreja nos ensina duas formas de oração: vocal e mental (meditativa, que geralmente conduz à contemplação). Os “raivosos” fazem suas orações vocais como narradores de jogo de futebol (louvor de lábios enquanto o coração está distante e distraído - ou não, mas com rapidez e, consequentemente, muita superficialidade), cumprindo a “tabela” sem se aprofundar no sentido e no alcance prático das suas orações. Só conhecem o Rosário, uma devoção excelente, mas muito mal rezado no estilo narrador de rádio, e sem meditação dos mistérios, sem profundidade. Eles também vêem com desconfiança a oração meditativa como sendo algo destinado a consumo exclusivo do clero e dos religiosos (reforçando a ignorância e a superficialidade da prática da fé entre os leigos como algo inatingível pelos mesmos ou reservados apenas a uma elite de “eleitos”). Quando as pessoas têm algum diálogo com Deus e percebem Seu imenso amor para com eles, então lhes brota a força para viver de modo cristão, inclusive com a superação de muitos vícios e com uma prática de vida mais virtuosa. Sem oração profunda, portanto, não há um viver profundamente cristão.

Devoção superficial = fé superficial = caridade superficial.

Precisamos, portanto, de leigos bem formados, orientados e experientes na oração profunda para servirem de referência e até como multiplicadores dessas práticas entre os outros leigos. Os “raivosos” precisam dar-se conta de que o clero e os religiosos, apesar de serem os meios privilegiados de ensino da oração mental, profunda e contemplativa, não são os meios exclusivos de sua divulgação. Lembremo-nos também de que a oração vocal é o transbordamento de algo meditado no coração e a expressão de nossa compreensão, nosso assentimento a Deus e nossa fé naquilo que dizemos, ainda que seja algo recitado, ou seja: proclamamos com a boca aquilo que transborda sinceramente de nossos corações.

4.Impenitência e falta de conversão de hábitos (conseqüência). Sem mudança de vida (sem frutos), sua fé é vã e pouco digna de crédito; consequentemente, ninguém seguirá tal exemplo e nem se entusiasmará por tal fé, a começar por seus próprios familiares, dando motivo aos inimigos da Igreja para atacá-la com bons argumentos. O pior inimigo da Igreja é Seu filho impenitente e desobediente, que age como um fariseu, um cripto-judeu, um marrano, que nega com suas obras o que afirma com sua boca.

5.Falta de instrução doutrinária essencial (catecismo, evangelhos, documentos básicos e riquíssimos do Magistério antes do Concílio Vaticano II, lições eternas da tradição, etc.) enquanto tentam esmiuçar, curiosamente, refinamentos doutrinários úteis mas não essencialmente necessários para seu estado leigo de vida. Não é o muito saber, mais o profundamente meditar e daí extrair lições a serem aplicadas ao cotidiano é que é o mais importante, útil e necessário, já ensinava S. Inácio de Loyola. Não é preciso saber coisas demais em termos de extensão(apesar de ser importante e necessário conhecer a doutrina católica em profundidade); é preciso aplicar bem o que se aprende, porém. Isso se obtém pela leitura, meditação, discernimento, vigilância (dos pensamentos, palavras e obras) e a prática diária para levar à virtude. Deus quer a perfeição da caridade, um coração grande e misericordioso, não um cabeção cheio de conceitos sem sua aplicação na vida cotidiana.

Portanto, sem uma vida profunda e coerentemente cristã, não há apostolado frutífero, e a tradição católica permanece ignorada e antipatizada como um palavrório sem prática. Tomem cuidado os entusiasmados defensores da tradição, que podem mais emperrá-la do que ajudá-la se acabarem envolvidos com pessoas e práticas mal-conduzidas, ainda que bem-intencionadas, e seguirem seus maus exemplos de comportamento farisaico, aliás, fartamente condenado justamente pela Igreja que dizem defender.

Conclui muito bem o Martelo dos Hereges e famoso taumaturgo (milagreiro), S. Antônio de Pádua e de Lisboa em "Dos Sermões de Santo Antônio de Pádua, presbítero (I.226) (Séc.XIII): "A palavra é viva quando são as obras que falam. "Quem está repleto do Espírito Santo fala várias línguas. As várias línguas são os vários testemunhos sobre Cristo, a saber: a humildade, a pobreza, a paciência e a obediência; falamos estas línguas quando os outros as vêem em nós mesmos. A palavra é viva quando são as obras que falam. Cessem, portanto, os discursos e falem as obras. Estamos saturados de palavras, mas vazios de obras. Por este motivo o Senhor nos amaldiçoa, como amaldiçoou a figueira em que não encontrara frutos, mas apenas folhas. Diz São Gregório: 'Há uma lei para o pregador: que faça o que prega'. Em vão pregará o conhecimento da lei quem destrói a doutrina por suas obras".

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ajude a formar um padre tradicional.

Pessoal, O Renato Muller ainda precisa de doações para ir ao Seminário dos Dominicanos em Avrillé, França (tradicional, à moda antiga antes do Concílio Vaticano II). Ele parte em setembro mas ainda precisa de R$ 1.500,00.

Quem puder ajudar (também com orações), pode depositar:
Caixa Econômica Federal
Ag.: 0892
Op.: 013
Conta: 00036493-5
Titular: Renato Müller
CPF: 09255670603

Contato com o próprio Renato:
rmuller.sicm@yahoo.com.br

Ajudemos a formar mais um padre tradicional!

Aceitação da Morte.


Aceitação da Morte
Por
Monsenhor Ascânio Brandão

São Francisco, o Poverello de Assis chama a Morte de Irmã Morte e a desejava, e cantava indo ao seu encontro. Assim o fizeram os Santos. A Igreja dá ao dia da morte dos santos o nome de dies natalis — dia do nascimento para o céu. Eis porque dizia o génio de Pascal — "em Cristo Jesus tudo é doce, até a morte". A natureza se revolta e sente horror perante a morte. A Graça, porém, vem suavisar este horror, mostrando-nos como diz a Liturgia no prefácio da Missa dos defuntos: vita mutatur, non tollitur — a vida apenas se muda em outra, mas não nos é tirada. É por isto que São Paulo não quer que se chorem os mortos como os que não têm fé. Aceitemos a morte como cristãos. Cremos na eternidade? Um ato meritório é o da aceitação da morte feito desde já com resignação e humildade e com todas as circunstâncias dolorosas que ela tenha.

Santo Afonso Maria de Ligório escreveu: "aceitar a morte com resignação perfeita e voluntariamente, equivale a sofrer o martírio por Jesus Cristo". É um ato muito meritório e de grande valor expiatório. Perdoa as penas temporais devidas pêlos nossos pecados e pode nos levar do leito de morte ao céu. Depende do fervor e da generosidade com que o fizemos.

Argumenta assim Santo Agostinho: "como a morte é a pena do pecado, ás vezes ela nos obtém que o pecado não seja acompanhado de pena alguma". São Pio X indulgenciou este ato que é o seguinte: "Senhor, meu Deus, de boa vontade e com meu coração submisso, aceito de vossa mão o género de morte que vos aprover me enviar com todas as suas angústias, penas e dores".

Este ato nos assegura uma indulgência plenária para a hora da morte. Vamos aproveitar esta riqueza e juntar oste tesouro para a hora de nossa morte, que pode estar mais próxima do que estejamos pensando.

Afastemos este terror da morte. Procuremos trazer sempre nosso coração preparado, nossa consciência purificada e aguardemos serenos a hora do chamado celeste.

Será o da volta para a casa do Pai.

.Fonte: Breviário da Confiança, 1948

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A Procriação na Família Cristã.


A Procriação na Família Cristã

Pareceu-nos útil publicar a tradução de algumas passagens do opúsculo A Família Cristã do Padre Angelo Brucculeri S.J., publicado em 1953. Ele representa a síntese do que a Igreja ensinava antes da invasão do progressismo.

A missão própria da família é a transmissão da vida. Mas a atmosfera em que se vive, obstruída por valores tóxicos do individualismo e do materialismo, teve repercussões nocivas sobre o casal e a família, desviando-os de seu principal dever que e o serviço da espécie. Chegamos a esse crime, que dessacraliza e desnatura a instituição primordial da organização social, violando as leis que regem as relações conjugais. Quais são as leis?

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A atividade procriadora do homem se baseia no direito natural. Na inclinação do homem a se reproduzir, na diferença, na atração e na complementação fisiológica e psicológica dos sexos, ouve-se a voz da natureza que quer e impõe a conservação da espécie humana.

Ao direito da natureza se junta, valorizando-o, o direito divino positivo, o preceito que ecoa, preciso e categórico, no limiar do Éden: «Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra» (Gen. 1, 28).

A lei que domina como soberana sobre a semente familiar é a multiplicação. Sob este aspecto que apresenta a família como o viveiro eterno de onde nasce toda a coletividade humana, nenhuma sociedade, mesmo a nação ou um grupo político, pode pretender suplantar por sua importância o minúsculo e elementar organismo do lar doméstico.

Notemos que a lei da procriação é um dever para a coletividade e um direito para o indivíduo; direito que não é anulado pela lei do casamento. Aí também Santo Tomás formula, com a precisão do moralista, a verdadeira natureza da relação conjugal. A esse propósito ele estabelece primeiro o princípio geral de que essa relação se situa nos domínios que escapam à esfera de competência das autoridades sociais. «Nas coisas que interessam essencialmente à nossa natureza corporal, por exemplo, a geração e a nutrição, não se é obrigado a obedecer aos homens, mas somente a Deus, devido à igualdade natural de todos os homens» (Suma Teol., II-IIae /q. 104/5).

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Outro princípio invocado por Santo Tomás para regrar a atividade procriadora é a distinção entre duas espécies de deveres. Uma que obriga cada membro da comunidade, e nesse caso cada um pessoalmente é aí incluído; outra que incumbe à sociedade, e nesta cada indivíduo não está incluído. Assim, o dever de combater incumbe a todo o exército, mas cada soldado não é a tanto obrigado individualmente pois cada membro do exército pode concorrer para a vitória de diferentes modos. Assim, também a família e os indivíduos são obrigados a concorrer para o bem social da comunidade nos diferentes estados de vida que lhe são necessários, mas não em todos. (Suma Teológica, II-IIae/ q.152/4/ad 3m).

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Não nos parece que esta atitude da ética cristã, tutora dos direitos individuais inatos, possa prejudicar a expansão demográfica, porque a natureza proveu de modo mais do que suficiente como assegurar a conservação e o progresso da espécie humana.

A virtude da abstinência é possível somente a alguns: uma ínfima elite, desprezível quanto ao número. E ao vício do egoísmo conjugal que concerne o grande número, e é este o inimigo temível que pode atentar contra a natalidade. A Igreja justamente, enquanto garante o direito do indivíduo mostra-se ao mesmo tempo guardiã vigilante e infatigável do crescimento da população, condenando as fraudes e as armadilhas do leito nupcial. Mas se por um lado a moral católica não recusa aos cônjuges a faculdade de se abster da atividade procriadora, com um acordo mútuo, por outro lado não permite que isso se faça por capricho, sob os impulsos e os cálculos de paixões problemáticas.

Outra lei da ética católica nas relações conjugais consiste na obrigação absoluta de aceitar a paternidade, as honras da geração e da educação dos filhos, quando se rejeitam os sacrifícios da continência. O homem, levado pelo egoísmo, procurou escapar dessa lei, inventando uma técnica preventiva pela qual ele pode dissociar a relação sexual de seu resultado biológico natural. Deus, que teve que impor aos esposos o peso não negligenciável dos filhos, oferece-lhes encorajamento e compensações que amainam o caminho do sacrifício. E o homem quis desviar esse plano providencial, cortando a ligação que, por natureza, ligava o prazer à procriação, transformando o primeiro, de meio que era, em fim.

Infelizmente, todo um amálgama de concepções malsãs, misturadas às vezes com algumas migalhas de verdade, se puseram a serviço do erotismo. Sob denominações que parecem inocentes, como “controle de natalidade”, “racionalização da natalidade”, “orientação sexual”, “nova moral conjugal”, “eugenia” e outros, divulgaram-se as doutrinas e as práticas criminosas por meio das quais quiseram justificar o ignóbil culto de Eros em nome da biologia, da medicina, da economia e mesmo em nome da paz internacional.

A Igreja sempre se opôs a todas as aberrações teóricas e práticas da hipertrofia sexual, que pretendeu despojar o casal de sua mais nobre missão, de seu caráter social essencial.

Desde a Antigüidade, a voz dos Padres da Igreja se elevou como um censor infatigável contra as armadilhas postas em jogo pelo egoísmo contra os perigos da fecundidade. Santo Agostinho inculca nos cônjuges a recusa absoluta a todos os procedimentos anticoncepcionais e a todos os maus artifícios que destroem o poder que foi dado ao homem para se integrar à obra da Criação. Aqueles que se abandonam a uma tal imoralidade são chamados pelo grande bispo africano por nomes bem diferentes de esposo, e o casamento é chamado concubinato (Contra Faustum, cap.XV, PL. 42,310). Aos Maniqueus, que pregavam a seu modo o controle da natalidade, ele fala assim: «o que dá razão às bodas é a geração dos filhos. Aquele que prefere o prazer aos filhos anula o casamento e abaixa a esposa ao papel de cortesã, faz dela um instrumento de luxúria. Se há uma esposa, há um casamento. Mas não há casamento se não se quer que a esposa seja mãe, sem o que não se toma uma esposa mas sim outra coisa» (De More Manich. lib.II cap. XVIII, P.L. 32,1973).

Sem dúvida, nessas expressões, como em muitas outras do grande bispo africano que querem tornar odioso o vício, dorninam a ênfase e a emoção que não se harmonizam sempre à nítida precisão das fórmulas. Não sendo um jurista como Santo Antônio, mas um mestre em retórica, o bispo de Hipona prefere, à rigidez dos termos, o brilho das imagens. Santo Tomás não se dirige aos sentimentos mas à inteligência, ele nos dá, sem procura exagerada de linguagem, as razões últimas da malícia intrínseca das manobras pelas quais se zombam das leis da procriação. Essas manobras são essencialmente desordenadas, porque deturpamos fins impostos pela natureza (e, portanto, por Deus) e dão ao prazer um valor de causa e não mais de simples conseqüência, constituindo assim um atentado contra a sociedade humana (Suma Teológica, II-IIae/q.154 a.2/3m; De Malo q.15~ a.1; In II Sent. dist.32).

Aos Padres e aos doutores da Igreja, juntam-se os moralistas com Santo Afonso (Théologie Morale, VI n.954), para condenar os abusos nas relações conjugais. A Igreja, no Catecismo de Trento, nas declarações do Santo Ofício (entre outras declarações, aquelas de 21 de maio de 1851 e 13 de maio de 1901) e pela voz da suprema autoridade pontifical, tirou todas as dúvidas que poderiam nascer no que concerne à natureza essencial condenável das fraudes conjugais.

Reagrupando as palavras das Santas Escrituras e as da tradição católica no ensinamento constante da Igreja, Pio XI escreve na sua encíclica Casti Connubii: «Entre os bens do casamento, os filhos têm então o primeiro lugar (...), os filhos que alguns ousam chamar de uma carga fastidiosa da vida conjugal; se assim fosse, os esposos deveriam se poupar dessa carga não por uma virtuosa continência (permitida também no casamento quando os dois esposos consentem), mas sim viciando o ato da natureza. Uns reivindicam o direito a essa criminosa licença, porque não suportam os filhos. Eles desejam satisfazer somente a volúpia sem nenhuma carga, e também porque dizem não poder guardar a continência, nem - em razão de suas dificuldades pessoais ou as da mãe, ou da condição familiar - de acolher os filhos.

Mas certamente nenhuma razão, por mais grave que seja, pode fazer com que o que é intrinsecamente contra a natureza se conforme à natureza e seja honesto. Porque o ato do casamento é, por sua própria natureza, destinado à geração dos filhos, e aqueles que deliberadamente se aplicam em lhe tirar sua força e sua eficácia, agem contra a natureza e fazem uma coisa vergonhosa e intrinsecamente desonesta» (Casti Connubii in A.A.S. XXII, 1930).

Pio XII, com grande clareza e firmeza, deu normas de moral conjugal a propósito do uso da continência periódica: «E mais, hoje em dia se apresenta o grave problema de saber se e quando a obrigação de disponibilidade ao serviço da maternidade é conciliável com esse recurso sempre mais freqüente às épocas de esterilidade natural (períodos agenésicos na mulher), recurso que parece uma clara expressão da vontade contrária à disponibilidade...

Primeiro é preciso considerar duas hipóteses: a) Se a aplicação dessa teoria não quer significar nada além de que os esposos podem fazer uso de seu direito conjugal mesmo nos dias de esterilidade natural não há nada mais a dizer. Com efeito, desse modo, eles não impedem nem atrapalham de nenhum modo a consumação do ato natural e de suas conseqüências naturais posteriores. Precisamente nisso, a aplicação da teoria de que nós falamos se distingue essencialmente do abuso já assinalado que consiste na perversão deste ato. b) Se, ao contrário, vai-se mais além, quer dizer, que se permite o ato conjugal exclusivamente nesses dias, então a conduta dos esposos deve ser examinada atentamente. E aqui, de novo, duas hipóteses se apresentam à nossa atenção: a) Se já no momento da conclusão do casamento, ao menos um dos esposos teve a intenção de restringir aos dias de esterilidade o direito conjugal e não somente o uso deste direito de tal modo que nos outros dias o outro esposo não tenha o direito de reclamar o ato, isto implicaria em um defeito essencial do consentimento matrimonial, que comportaria em si a invalidade do casamento, pela razão de que o direito derivado do contrato matrimonial é um direito permanente, ininterrupto, e não intermitente, de cada um dos esposos em relação ao outro. b) Por outro lado, se essa limitação do ato aos dias de esterilidade natural se relaciona não ao direito mesmo mas ao uso do direito, a validade do casamento fica fora de discussão; entretanto, o valor moral de tal conduta seria de afirmar ou negar se a intenção de observar constantemente esses períodos é baseada ou não em motivos morais suficientes e seguros. Somente o fato de que os esposos não violam a natureza do ato e estão dispostos a aceitar e criar os filhos que, apesar de suas precauções, vierem ao mundo, não bastaria para garantir a retidão das intenções e a perfeita moralidade de seus motivos.

A razão é que o casamento obriga a um estado de vida que, assim como confere certos direitos, impõe igualmente cumprimento de uma obra positiva em relação a este estado. Nesse caso, pode-se aplicar o principio geral de que uma prestação positiva pode ser omitida se graves motivos, independentes da boa vontade daqueles que a isso são obrigados, estabeleça que esta prestação é inoportuna, ou provém que ela não pode ser, com justiça, reclamada pelo requerente da espécie, o gênero humano.

O contrato matrimonial que concede aos esposos o direito de satisfazer a inclinação da natureza, os estabelece num estado de vida, o estado conjugal. Ora, aos esposos que fazem uso do ato específico de seu estado, a natureza e o Criador impõem a função de prover à conservação do gênero humano. Tal é a prestação característica que faz o próprio valor de seu estado, o «bonum prolis». O indivíduo e a sociedade, o povo e o Estado, e a própria Igreja dependem para sua existência, na ordem estabelecida por Deus, do casamento fecundo.

Por conseqüência, abraçar o casamento, usar constantemente da faculdade que lhe é própria e que só é lícita nesses limites, e por outro lado, livrar-se sempre e deliberadamente, sem um motivo grave de um dever principal, será um pecado contra o sentido mesmo da vida conjugal.

Pode-se ser dispensado dessa prestação positiva obrigatória, mesmo por muito tempo e até pela duração inteira do casamento, por motivos sérios como aqueles que não são raros achar no que se chama «indicação» médica, eugênica, econômica e social. De onde se segue que a observância das épocas infecundas pode ser lícita sob o aspecto moral, nas condições realmente indicadas. Entretanto, se não há, à luz de um julgamento razoável e justo, condições semelhantes, quer pessoais quer decorrentes de circunstâncias exteriores, a vontade de evitar habitualmente a fecundidade da união, mas continuando a satisfazer plenamente sua sensualidade, só pode vir de uma falsa apreciação da vida e de motivos estranhos às regras da sã moral» (Discurso de Pio XII, às mulheres parteiras, em 29 de outubro de 1951).

Os apologistas do neo-malthusianismo rejeitam esse ensinamento porque o princípio sob o qual ele se baseia, o do ato ilícito, deformado pela lei da natureza, é um princípio metafísico. Porém, nada é mais inconsistente do que essa objeção baseada na hipótese gratuita de que os termos da equação são metafísicos, portanto falsos. Por outro lado, os partidários da racionalização dos nascimentos não percebem que sua tese se baseia, ela também, sobre um outro princípio geral, como o princípio utilitário hedonista, que definitivamente não é menos metafísico do que aquele que eles rejeitam.

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Em contraposição, Pio XI, em sua encíclica, reprova e condena, ao mesmo tempo, as teorias que violam a fecundidade, como aquelas pelas quais queriam justificá-las. Nessa condenação, o Papa apela à sua suprema missão e faz sentir todo o peso de sua autoridade.

Não podemos deixar de reproduzir aqui as palavras pelas quais se compreende que ele não ensina como se fosse um mestre qualquer:

«Em conseqüência, como alguns, afastando-se claramente da doutrina cristã como foi transmitida desde o começo e sempre fielmente guardada, julgaram recentemente que era bom pregar de um modo retumbante, sobre essas práticas, outra doutrina, a Igreja Católica, investida pelo próprio Deus da missão de ensinar e defender a integridade dos modos e a honestidade, mostrando-se assim a enviada de Deus, eleva bem alto a voz por Nossa boca, e promulga de novo: Que todo uso do casamento, qualquer que ele seja, no exercício do qual o ato é privado, pelo artifício dos homens, de seu poder natural de procriar a vida, ofende a lei de Deus e a lei natural, e que aqueles que tiverem cometido alguma coisa parecida, mancharam-se com uma falta grave» (Casti Connubii in A.A.S. XXII, 560, 1930).

Como na encíclica Casti Connubii o Papa declara se dirigir como mestre universal a toda a Igreja e a todo o mundo, dada a solenidade com que fala no extrato que reproduzimos, «não podemos duvidar, diz o padre Vermeersch, que nos vemos num caso, bastante comum, no qual o Papa ensina infalivelmente uma verdade já definida e acreditada pela Igreja» (Catéchisme du Mariage Chrétien d'après l'encyclique Casti Connubii, já citado) (...)

*

A encíclica Casti Connubii, assim como não admite a justificação econômica, não reconhece também a justificação médica do neo-malthusianismo.

Os inimigos da natalidade acham que a sucessão não limitada das gestações é nociva à saúde da mãe. Mas como a maternidade é somente uma função fisiológica, ela concorre nos organismos normais para seu pleno desenvolvimento (Cf R.Blot, Le point de vue medical dans le question de la population, curso dado nas semanas sociais da Franca, XV seção, 1923; - R. de Guchteneere, La Limitation des naissances - V.Palmieri, Dénatalité). A natureza, por outro lado, sem que entrem em jogo os processos contra a fecundidade, tem o hábito de espaçar geralmente as gestações com um intervalo de dezoito a vinte e quatro meses, isto acontecendo sobretudo graças ao funcionamento benéfico do aleitamento. Escreve o doutor Palmieri: «Mesmo que os intervalos entre uma gestação e outra sejam mais curtos, o organismo maternal adquire durante a gestação e de modo notório, energias insuspeitas, que o põe na medida para fazer face às exigências fisiológicas da situação... Freqüentemente, observamos que a sucessão de gestações fortifica e por assim dizer amadurece a mulher, uma vez que se atenuam e até desaparecem os problemas inconvenientes ou doenças que ela sofria antes» (Dénatalité, op. cit., pag. 164-165).

É certo que a maternidade não se desenrola sempre em condições normais, assim como o estado de saúde da mãe nem sempre permite afrontar sem perigo o risco proveniente de gestações sucessivas. Há então na prolificidade, como em todas as outras funções orgânicas, casos excepcionais e patológicos dos quais, logicamente, não podemos deduzir que são as gestações sucessivas as causas de males ou de mortes.

Outra acusação contra as gestações, segundo a qual elas seriam a origem da taxa excessiva da mortalidade infantil, também é sem fundamento. Escreve o doutor De Guchteneere: «Não está demonstrado, de forma alguma, que a uma diminuição da natalidade corresponde diretamente uma diminuição da mortalidade. No que concerne à mortalidade infantil, a falsidade da argumentação do Birth Control é ainda mais flagrante. Na realidade, todo mundo sabe que a taxa de mortalidade das crianças baixou notavelmente em todos os países civilizados, por causa do desenvolvimento da higiene e não por causa da diminuição relativa dos nascimentos... De fato, a França, apesar de sua fraca taxa de natalidade (1,88%). em 1926, teve uma taxa de mortalidade infantil bastante elevada (9,7%); enquanto que a Holanda, com uma taxa de natalidade bastante elevada (2,38%) teve uma taxa de mortalidade infantil inferior à da França (6,1%). Os dez Departamentos franceses que têm a mais baixa taxa de natalidade apresentam uma taxa de mortalidade infantil mais elevada do que os dez Departamentos que têm a taxa de natalidade mais elevada. Pode-se dar outros exemplos, tomados do estudo comparativo das estatísticas que demonstram que a relação entre natalidade e mortalidade infantil é insignificante e não implica numa relação de causalidade» (R.de Guchteneere, La Limitation des Naissances, op. cit. pags. 132-134).

Outra justificativa do neo-malthusianismo, que pareceria mais sedutora que as demais é a que concerne ao eugenismo. Invoca-se para isso o interesse da sociedade, que precisaria de elementos vigorosos, e o interesse da linhagem que de uma parte quer ser liberada de todos os vícios hereditários e, de outra parte, quer evoluir no domínio biológico. Dizem os partidários da limitação dos nascimentos: infelizmente, enquanto nas classes superiores a natalidade é freqüentemente fraca, as classes inferiores multiplicam excessivamente os filhos, aumentando o número dos sujeitos indesejáveis. Seria preciso então adotar o controle de natalidade, a fim de fazer prevalecer a qualidade sobre a quantidade.

Esta afirmação apóia-se sobre a hipótese, não demonstrada nem demonstrável, de que as classes inferiores, que no fundo são os pobres, só têm filhos inaptos e fracos. O que é certo, é que os deficientes não são prerrogativa de uma classe social, mas se acham em todas as classes, com uma proporção numérica aproximada e relativamente igual. E mais, as duas noções de qualidade e de quantidade não se opõem nem são separadas no problema demográfico. Sem uma fonte importante de nascimentos com que contar, a diminuição da qualidade não se detém e os povos e as civilizações se aproximam de seu declínio.

Uma propaganda que visa a qualidade, inculcando a limitação dos nascimentos de deficientes, quer queira ou não, diminui e para, de uma só vez, os que eram desejados por serem dotados de qualidades superiores. Quando se prega a esterilidade voluntária, por um motivo determinado, a esterilidade se infiltra pouco a pouco em todas as classes sociais, não importando qual a razão.

E mais, a seleção humana não se coloca no mesmo nível que a criação de animais, porque mesmo nos corpos doentes há gênios ou almas superiores, que podem prestar grandes serviços à sociedade. Por outro lado, os eugenistas exageram quando expõem a exuberante proliferação dos tarados, idiotas, dementes e outros seres enfraquecidos, porque na maior parte eles não têm o hábito de ser fecundos, sem dizer que encontram muitos obstáculos para sua união.

Não se pode, entretanto, esquecer que a própria natureza desenvolve processos eugênicos, sem esperar a contribuição e a cooperação da ciência. Escrevia Joseph Moscati: «As leis de Mendel importantes tanto no domínio da saúde como no da ciência, não nos ensinam que o tipo primitivo tende a se reproduzir através de desvios devidos a cruzamentos, mesmo se esteve como perdido durante gerações? Os cromossomos sabem se reagrupar de um modo melhor do que aquele imposto pelos eugenistas!» (Prefácio do fascículo Eugénique do Pe. G. de Giovanni e do Pe. M. Mazzeo, Nápoles, 1924).

Não se quer dizer com isso que não se deve levar em conta as sugestões da ciência, mas deve-se fazê-lo sem desligá-la das normas superiores da moral, como se a faculdade procriadora fosse, ela mesma, independente e distinta das realidades fundamentais e das supremas leis do homem (...)

Fonte: http://www.beneditinos.org.br/atualidades/textos_escolhidos/procriacao.htm

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