SENTIR COM A IGREJA É SENTIR COM O VATICANO
II ?
Arnaldo Xavier da
Silveira
02.09.2013
Dados
básicos de uma questão de consciência
A] Como uma das razões da intervenção da Congregação
dos Religiosos no Instituto dos Franciscanos da Imaculada em 11 de julho último,
o comissário, Pe. Fidenzio Volpi, O.F.M.Cap., referiu-se a problemas na
aceitação do Magistério e no “sentir com a Igreja”.
B] Por outro lado, os numerosos comentários
sobre o assunto publicados nas redes sociais antimodernistas indicam que o fundador
e superior geral, Pe. Stefano Manelli, vinha orientando o Instituto no sentido
da Tradição. A intervenção, portanto, não visaria apenas afastar os frades da
celebração da Missa de São Pio V, mas também, ou sobretudo, pôr fim às
resistências de muitos deles às doutrinas controvertidas do Vaticano II e às
novidades inauditas do pós-Concílio.
C] Segundo
deflui do decreto de intervenção da Congregação dos Religiosos e dos documentos
de lavra do interventor, recusar tais doutrinas e a Missa de 1969, ou manifestar
restrições em relação a elas, seria não ter o “sentir com a Igreja”, em cuja
definição, por Santo Inácio de Loyola, se lê:
“1ª regra - Renunciando a todo juízo próprio,
devemos estar dispostos e prontos a obedecer em tudo à verdadeira esposa de
Cristo Nosso Senhor, isto é, à Santa Igreja hierárquica, nossa mãe.”
“9ª regra - Louvar todos os preceitos da
Santa Igreja, e estar disposto a procurar razões em sua defesa, e nunca para os
criticar.”
“13ª regra - Para em tudo acertar, devemos
estar sempre dispostos a crer que o que nos parece branco é negro, se assim o
determina a Igreja hierárquica; persuadidos de que entre Cristo Nosso Senhor -
o Esposo - e a Igreja - sua Esposa – não há senão um mesmo Espírito, que
nos governa e dirige para a salvação das nossas almas. Porque é pelo mesmo
Espírito e mesmo Senhor, autor dos dez mandamentos, que se dirige e governa a
Santa Igreja, nossa Mãe”.
D] Com
base nos estudos antimodernistas dos últimos cinquenta anos, pode-se atribuir
ao Vaticano II o rótulo de “heretizante” ([1]). Seus documentos estão prenhes de proposições
próximas da heresia modernista, dela favorecedoras, escandalosas, etc. Assim, é
intolerável que o “sentir com a Igreja” seja identificado ao sentir com o
Vaticano II. Na raiz dessa falsa identificação está uma noção errônea do
Magistério da Igreja.
Falsa concepção da
infalibilidade do Magistério
1] Nosso Senhor prometeu que as portas do
inferno não prevaleceriam contra a Igreja ([2]).
Mas não foi só isso. Prometeu igualmente que estaria com os apóstolos “todos os dias até a consumação dos séculos” ([3]).
Note-se bem, “todos os dias”. Logo,
segundo a doutrina clássica de papas e grandes doutores, o ensinamento da
Hierarquia em cada época é assistido por Nosso Senhor. Surge aqui a grande questão:
o Papa e os bispos hoje vivos podem errar? O católico fiel é obrigado a aceitar
incondicionalmente tudo que eles ensinam, como parecem determinar as regras do
“sentir com a Igreja” de Santo Inácio de Loyola?
2] Para muitas figuras representativas da
teologia atual que acolhem o Vaticano II como regra absoluta da Fé, o
Magistério, tanto pontifício quanto conciliar, jamais pode errar, mesmo quando
fala sem preencher as cinco condições necessárias
para gozar do carisma da infalibilidade. O Vaticano I definiu essas condições
quanto à infalibilidade papal, as quais valem também, mutatis mutandis, para a infalibilidade conciliar. No texto dessa
definição dogmática, a seguir transcrito, vêm ressaltadas as cinco referidas
condições:
“Ensinamos
e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala
ex cathedra, isto é, quando,
[1ª condição] no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos,
[2ª condição] define,
[3ª condição] com
sua suprema autoridade apostólica,
[4ª condição] alguma
doutrina referente à fé e à moral
[5ª condição] para toda a Igreja,
goza,
em virtude da assistência divina a ele prometida na pessoa de São Pedro,
daquela infalibilidade com a qual Cristo quis dotar a sua Igreja quando define
alguma doutrina sobre fé e moral; e que portanto tais declarações do Romano
Pontífice são irreformáveis por si mesmas, e não apenas em virtude do
consentimento da Igreja”.
3] Estudos antimodernistas dos últimos
decênios já demonstraram amplamente a falsidade da concepção da uma
infalibilidade absoluta e omnímoda, que tenho chamado de monolítica ([4]).
Prevalece hoje, tanto em relação aos Papas quanto aos concílios ecumênicos, uma
doutrina matizada e sólida, segundo a qual o Magistério pode cair em erro e
mesmo heresia, quando não preenche as condições da infalibilidade.
4] Em aprofundado estudo recente sobre essa
matéria, o Pe. Daniel Pinheiro, do Instituto Bom Pastor, mostra que “o
Magistério desse segundo tipo – não infalível – pode (...) conter erros porque, ao contrário
do primeiro grau estudado, não se encontra garantido na verdade por Deus. (...). A
possiblidade de erro nesse grau de Magistério é, praticamente, unanimidade
entre os teólogos. É incompreensível que alguns afirmem a impossibilidade de
erros em atos do Magistério não-infalível. Negar a possiblidade de erro desse
Magistério seria torná-lo infalível (...). Deve ser assimilado a esse Magistério o
magistério de um Concílio Ecumênico que não possui a voluntas
definiendi/obligandi. Trata-se da autoridade suprema que ensina, mas sem a
intenção de engajar toda a sua autoridade e revesti-la inteiramente da
assistência divina infalível”
([5]).
5] Para compreender que tal possibilidade de
falha magisterial não se opõe às promessas de Nosso Senhor, é importante
observar que, segundo a doutrina verdadeira do Magistério ordinário ([6]),
uma condição essencial para a infalibilidade de seus ensinamentos é que estes sejam
aceitos pacificamente pela Igreja universal, dentro de um tempo suficiente para
serem tidos como pertencentes à Fé, e portanto como devendo ser professados
pelos fiéis.
6] E
é manifesto que as novidades heretizantes do Vaticano II, mesmo após cinquenta
anos de aggiornamento conciliar, jamais contaram com o consenso na Santa
Igreja, tanto no corpo docente quanto no discente. Na Carta Apostólica Tuas Libenter, de 1863, Pio IX ressalta
a importância fundamental desse consenso, declarando que a sujeição a ser
prestada à fé divina “deve ser estendida
também ao que é transmitido pelo Magistério Ordinário de toda a Igreja,
dispersa pelo orbe, como divinamente revelado, e é tido como pertencente à fé
pelo consenso universal e constante dos teólogos católicos”. Adiante, Pio
IX afirma que os fiéis devem também submeter-se “aos pontos de doutrina que pelo consenso comum e constante dos
católicos são tidos como verdades teológicas e conclusões a tal ponto certas
que as opiniões a estas doutrinas opostas, embora não possam dizer-se
heréticas, merecem no entanto alguma outra censura teológica” ([7]).
7] É
chocante que, para muitos teólogos modernos, o “sentir com a Igreja” não
permite rejeitar ensinamentos do Magistério atual mesmo quando não envolvem a
infalibilidade; mas permite negar ensinamentos do passado, mesmo quando
garantidos incontestavelmente pela infalibilidade do Magistério Extraordinário ou
do Magistério Ordinário universal.
Bento XVI e a
continuidade do Concílio com a Tradição
8] A questão da compatibilidade entre o
“sentir com a Igreja” e o sentir com o Vaticano II leva necessariamente ao
problema suscitado pelo Santo Padre Bento XVI em dezembro de 2005, ao convocar
os católicos a interpretarem o Vaticano II como uma “reforma na continuidade”
da Tradição. Ele reprovou a hermenêutica de ruptura segundo a qual os progressistas
declaram abertamente que o Concílio se opõe de modo formal às doutrinas de
sempre; e reprovou também, como sendo igualmente de ruptura a hermenêutica dos
defensores da Tradição, segundo os quais o Concílio contém novidades
inconciliáveis com o Magistério anterior.
Que os progressistas rompem com dogmas católicos de todos os séculos é
patente e incontestado, de modo que eles se calaram diante do dito de Bento
XVI. Os antimodernistas, entretanto, se dedicaram a estudos aprofundados,
mostrando cabalmente que não há como interpretar o Vaticano II na linha da
“reforma na continuidade”.
9] Já se tornou tranquilo para os teólogos
antimodernistas, únicos que contam ([8]),
que o Vaticano II não pode ser entendido como “reforma na continuidade”, mas carrega em seu bojo desvios graves em
relação à doutrina tradicional. Essa posição foi recentemente exposta pelo
Padre Jean-Michel Gleize, da Fraternidade São Pio X, numa fórmula cortante e
concisa: “A hermenêutica da continuidade
proposta pelo Papa Bento XVI é um esforço louvável mas vão, um a mais depois de
cinquenta anos do Vaticano II. Esforço vão, porque incapaz de superar uma
ruptura inscrita nos textos do Concílio” ([9]).
O Cardeal Kasper e a reforma na
continuidade
10] Artigo recente do Cardeal Walter Kasper ([10]),
que comentei neste site ([11]),
relata fatos fundamentais para a comprovação de que, numa hermenêutica séria e
objetiva, não há como interpretar certos textos do Vaticano II na continuidade
da Tradição. Depreende-se desse artigo que o Concílio se inspirou na nouvelle théologie. Expõe o Cardeal que
Paulo VI, não desejando aprovar formulações às quais os tradicionalistas se
opusessem em definitivo, “engajou” a
minoria tradicionalista com alterações de redação que atenuavam ou confundiam o
sentido das passagens modernizantes. Para isso, diz o Cardeal Kasper, “pagou-se um preço” com “fórmulas de compromisso” em que “as posições da maioria figuram imediatamente
ao lado daquelas da minoria, pensadas para delimitá-las”. Essas limitações
não tornavam ortodoxos os textos modernistas originais, mas debilitavam seu
sentido, afastando ou dificultando
as censuras teológicas mais graves, e bloqueando as reações sadias que pudessem
surgir.
11] Continua o artigo explicando que, em
razão dessas “fórmulas de compromisso”,
“os textos conciliares têm em si um
enorme potencial de conflito, abrem a porta a uma recepção seletiva numa ou
noutra direção”.
12] No mencionado artigo, o Cardeal declara
que “a recepção oficial não permaneceu
estática, mas, em parte, ultrapassou o Concílio”; “o primeiro passo oficial da recepção foi a reforma litúrgica; foi
sobretudo a introdução do novo Missal”; “tudo isso transformou positivamente, sob muitos aspectos, o rosto da
Igreja tanto interna quanto externamente”. Essa afirmação, que pelo menos
beira o escândalo, permite entender melhor o alcance do título dado pelo
purpurado ao artigo: Um Concílio ainda em
caminho.
13] Vê-se pois que o artigo do Cardeal Kasper
revela patente descontinuidade do Concílio em face da Tradição. Somente uma hermenêutica a fórceps, e portanto falsa, poderia interpretar o
Vaticano II como uma “reforma na continuidade”. Para poder prevalecer, essa
hermenêutica haveria de partir do pressuposto de que jamais um Concílio poderia
opor-se à Tradição. Haveria de ver nesse pressuposto um dogma de fé, que
inexiste. A fórceps, haveria de interpretar as passagens modernistas e modernizantes
originais do Vaticano II como se houvessem sido de todo corrigidas por “fórmulas
de compromisso”, as quais entretanto, como diz com razão o Cardeal
Kasper, apenas se justapõem às
posições da maioria, de modo tal que “os textos conciliares têm em si um enorme potencial de conflito, abrem
a porta a uma recepção seletiva numa ou noutra direção”. Isto é, são textos
heretizantes.
Modernismo e nouvelle théologie
14] Como observado no item 13 retro, o
mencionado artigo do Cardeal Kasper torna claro que o Vaticano II constituiu
grande vitória da nouvelle théologie, condenada
por Pio XII na Encíclica Humani Generis, de
1950. Nela está o elemento dinâmico dos textos conciliares, tudo confluindo para
o vórtice do modernismo, que, em suas diversas correntes, ainda hoje se
pavoneia como se fosse a doutrina católica verdadeira.
15] O eminente teólogo dominicano Pe.
Garrigou-Lagrange se perguntava, já bem antes do Vaticano II, para onde ia a nouvelle théologie, e respondia: “Ela redunda no próprio modernismo, porque
aceitou a proposta que este lhe fazia: substituir, como se fosse quimérica, a
definição tradicional da verdade, ‘adaequatio rei et intellectus’, pela definição subjetiva, ‘adaequatio
realis mentis et vitae’. A verdade já não
é a conformidade do juízo com o real extramental e suas leis imutáveis, mas a
conformidade do juízo com as exigências da ação e da vida humana sempre em evolução.
A filosofia do ser ou ontologia é substituída pela filosofia da ação que define
a verdade não já em função do ser mas da ação. Retorna-se, pois, à posição
modernista (...). Assim, Pio X dizia dos modernistas: ‘eles pervertem o conceito
eterno da verdade’ (...). Ora, deixar de defender a definição tradicional da
verdade, permitir seja ela tida como quimérica, dizer que é necessário
substituí-la por outra, vitalista e evolucionista, isso leva ao relativismo
completo e é um erro muito grave”
([12]).
Conclusão: “sentir
com a Igreja” não pode ser sentir com um Concílio heretizante
16] Como se vê, os modernistas de hoje
pretendem utilizar-se dos conceitos mais sagrados e das doutrinas mais santas
da Tradição em favor de seus desvios na fé. Assim é que deturpam e degradam a
noção do Magistério, atribuindo-lhe uma infalibilidade que discrepa das
definições do Vaticano I. Entendem o “sentir com a Igreja” de forma errônea,
levando muitos a interpretá-lo em sentido diverso do ensinamento de Santo
Inácio. Valem-se da autoridade suprema de um Concílio Ecumênico para a
propagação de suas novidades opostas à fé.
17] A identificação pelos progressistas do “sentir
com a Igreja” ao sentir com o Vaticano II transcende a questão dos Franciscanos
da Imaculada, cujo desenrolar os fieis verdadeiros aguardam com extrema
preocupação e orações ardentes. De todo modo deve-se proclamar, alto e bom som,
que tal identificação não pode prevalecer, porque o Vaticano II foi um Concílio
heretizante, insuscetível de uma interpretação como “reforma na continuidade”.
18] Que Nossa Senhora das Vitórias dê forças ao fundador dos
Franciscanos da Imaculada, a seus seguidores e a todos os católicos fiéis, mantendo-os
firmes na mais pura ortodoxia em doutrina como na prática; e que Ela abrevie os
dias de glória falaz e necessariamente transitória do modernismo.
[1]
Ver, neste site Bonum Certamen,
o artigo “Da qualificação teológica
extrínseca do Vaticano II”.
[2]
Mt 16,18.
[3]
Mt 28.20.
[4] Ver, neste site Bonum Certamen, os artigos: “Infalibilidade
monolítica e as divergências entre os antimodernistas” e “Grave lapso teológico de Mons. Ocáriz”.
[6]
Ver, neste site Bonum Certamen,
o artigo “O caráter orgânico do
magistério ordinário”.
[7]
Denzinger-Hünermann, 2875-2880.
[8] Com
efeito, para a finalidade aqui indicada, não se haverá de considerar os
teólogos que notoriamente se distanciam da ortodoxia católica. A mesma ideia vem expressa nos itens 9 e 34-c
do artigo “Da
qualificação teológica extrínseca do Vaticano II”,
publicado neste site Bonum Certamen.
[9] Abbé Jean-Michel Gleize, “Vatican II en débat”, Courrier de Rome,
maio 2013, p. 220.
[10]
“Um concílio ainda em caminho”,
publicado em L’Osservatore Romano de
12 de abril último.
[11]
Ver, neste site Bonum Certamen, o artigo “Da qualificação teológica extrínseca do Vaticano II”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Infelizmente, devido ao alto grau de estupidez, hostilidade e de ignorância de tantos "comentaristas" (e nossa falta de tempo para refutar tantas imbecilidades), os comentários estão temporariamente suspensos.
Contribuições positivas com boas informações via formulário serão benvindas!
Regras para postagem de comentários:
-
1) Comentários com conteúdo e linguagem ofensivos não serão postados.
-
2) Polêmicas desnecessárias, soberba desmedida e extremos de ignorância serão solenemente ignorados.
-
3) Ataque a mensagem, não o mensageiro - utilize argumentos lógicos (observe o item 1 acima).
-
4) Aguarde a moderação quando houver (pode demorar dias ou semanas). Não espere uma resposta imediata.
-
5) Seu comentário pode ser apagado discricionariamente a qualquer momento.
-
6) Lembre-se da Caridade ao postar comentários.
-
7) Grato por sua visita!
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.