sexta-feira, 24 de maio de 2013

Legenda Perusiana 101-105.

[101]

Frei Ricério da Marca de Ancona, nobre de parentela mas ainda mais nobre de santidade, a quem o bem-aventurado Francisco amava com grande afeto, visitou certo dia no mesmo palácio ao bem-aventurado Francisco. Entre outras palavras, em que comentou com o bem-aventurado Francisco sobre a situação da Religião a observância da Regra, também o interrogou sobre isto, dizendo: “Conta-me, pai, que intenção tiveste desde o princípio quando começaste a ter irmãos, e a intenção que tens agora, e achas que vais ter até tua morte, para que eu possa me certificar de tua intenção e vontade primeira e última, e saber se nós, irmãos clérigos, que temos tantos livros, podemos tê-los, embora digamos que são da Religião”.

Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: Irmãos, eu te digo que está foi e é minha primeira e última intenção e vontade, se os frades acreditassem em mim, que nenhum frade deveria ter senão a roupa, como a Regra nos concede, com o cíngulo e os calções”. Por isso, houve uma vez em que disse: “A religião e a vida dos frades menores é um pequeno rebanho, que o Filho de Deus pediu a seu Pai celeste nesta última hora, dizendo: Pai, gostaria que constituísses e me desses um povo novo e humilde neste última hora, que seja diferente na humildade e na pobreza de todos os outros que precederam e que ficasse contente de possuir só a mim.

E o Pai disse a seu dileto Filho: Filho, foi feito o que pediste”. Por isso o bem-aventurado Francisco dizia que “por isso quis o Senhor que se chamassem frades menores, porque este é o povo que o Filho de deus pediu a seu Pai. O próprio Filho de deus disse sobre eles no Evangelho: Não tenha medo, pequeno rebanho, porque aprouve a vosso Pai dar-vos o reino (Luc 12,32), e continuando: O que fizestes a um dos menores destes meus irmãos, foi a mim que fizestes (cfr. Mat 25,40). Porque ainda que se entenda que o Senhor disse isso a respeito de todos os pobres espirituais, na verdade predisse principalmente que a Religião dos frades menores viria a existir em sua Igreja”.

Por isso, como foi revelado ao bem-aventurado Francisco que a religião deveria chamar-se dos frades menores, assim fez escrever na primeira Regra, quando a levou para apresentar ao senhor papa Inocêncio III, e ele aprovou e concedeu a ele e depois anunciou a todos em um concílio. Semelhantemente, também a saudação que o senhor lhe revelou que os frades deviam dizer, como mandou escrever em seu testamento dizendo: “O Senhor me revelou que eu deveria dizer como saudação: O Senhor te dê a paz (cfr. Nm 6,26; 2Ts 3,16)“.

Por isso, no começo da religião, quando o bem-aventurado Francisco foi com um frade que foi um dos doze primeiros frades, esse frade saudava os homens e as mulheres pelos caminhos e os que estavam nos campos dizendo: O senhor vos d6e a paz”. E como as pessoas ainda não tinham ouvido tal saudação feita por nenhum religioso, ficavam muito admirados com isso. Houve até algumas pessoas que lhes disseram, como se estivessem indignadas: “O que quer essa saudação?”. De modo que aquele frade começou a ficar muito envergonhado por causa disso.

Daí disse ao bem-aventurado Francisco: “Irmão, deixa dizer outra saudação”. O bem-aventurado Francisco respondeu-lhe: “Deixa que eles falem, porque não entendem o que é de Deus. Mas não fiques com vergonha, porque eu te digo, irmão, que nobres e príncipes deste século ainda vão demonstrar reverência a ti e aos outros frades por essa saudação”. E disse o bem-aventurado Francisco: “Não é uma grande coisa que o Senhor tenha querido um pequeno povo entre todos os outros que precederam, que ficasse contente de possuir só a Ele, altíssimo e glorioso?”.

Mas se algum frade quiser dizer: por que o bem-aventurado Francisco, no seu tempo, não fez os frades observarem uma pobreza tão estrita como a que disse a Frei Ricério, e não mandou observá-la, nós que estivemos com ele responderemos a isso, como ouvimos de sua boca, porque ele mesmo disse isso e muitas outras coisas aos frades e também mandou escrever na Regra muitas coisas que pedia ao Senhor com assídua oração e meditação, pelo bem da religião, afirmando que essa era certamente a vontade do Senhor. Mas, depois que as mostrava a eles, pareciam-lhes graves e insuportáveis, ignorando então o que aconteceria na ordem depois da morte dele.

E como temia muito um escândalo em si e nos frades, não queria discutir com eles; mas condescendia, ainda que sem querer, à vontade deles, e se escusava diante de Deus. Mas, para que não voltasse vazia para deus a palavra que punha em sua boca para a utilidade dos frades, queria cumpri-la em si, para conseguir por isso a mercê de Deus, e no fim aquietava-se nisso e consolava seu espírito.



[102]

Por isso, em certa ocasião, quando voltou do ultramar, um ministro conversava com ele sobre o capítulo da pobreza, querendo saber qual era sua vontade e compreensão sobre isso, principalmente porque então estava escrito na Regra um capítulo de proibições do santo Evangelho, isto é: Nada levareis no caminho (Lc 9,3) etc. O bem-aventurado Francisco respondeu: “Eu assim quero entender, que os frades não devam ter nada além da roupa, com a corda e os calções, como está na Regra, e os que tiverem necessidade, os calçados”. Disse-lhe o ministro: “Que é que eu vou fazer, que tenho tantos livros, que valem mais do que cinqüenta libras? Mas perguntou isso porque queria tê-los com a consciência sossegada, principalmente porque tinha remorsos por possuir tantos livros, sabendo que o bem-aventurado Francisco entendia tão estritamente o capítulo da pobreza.

Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: “Irmão, não posso nem devo ir contra minha consciência e a profissão do Santo Evangelho, que professamos”. Ouvindo isso, o ministro ficou triste. Mas o bem-aventurado Francisco, vendo-o tão perturbado, disse-lhe com fervor de espírito, como se falasse a todos os frades: “Vós, frades menores, quereis ser vistos pelos homens e chamados de observadores do santo Evangelho, mas nas obras quereis ter bolsas (cfr. Jo 12,6)”. Na verdade os ministros sabiam que, segundo a Regra dos frades, deveriam observar o santo Evangelho, mas fizeram remover da Regra aquele capítulo que dizia: Nada levareis no caminho (Lc 9,3) etc.; julgando, portanto, que não estavam obrigados à perfeição do santo Evangelho.

Por isso o bem-aventurado Francisco, sabendo disso pelo Espírito Santo, disse diante de alguns frades: “Os irmãos ministros acham que podem enganar a Deus e a mim”. E disse: “Até para que saibam e conheçam todos os frades que são obrigados a observar a perfeição do santo Evangelho, quero que seja escrito no começo e no fim da Regra que os frades sejam obrigados a observar o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. E para que os frades nunca tenham desculpas diante de Deus, quero mostrar-lhes com obras, e observar sempre, com a ajuda do Senhor, aquilo que o Senhor pôs em minha boca, que lhes anunciei e anuncio, para salvação e utilidade minha e dos frades”. Por isso, desde o começo ele observou o santo Evangelho à letra, desde quando começou a ter frades até o dia de sua morte.



[103]

De maneira semelhante, numa ocasião ouve um irmão noviço que sabia ler o saltério, mas não bem; e como gostava de ler, pediu ao ministro geral licença para ter um saltério, e o ministro lhe concedeu. Mas ele não o queria ter se não recebesse licença para isso do bem-aventurado Francisco, principalmente porque tinha ouvido dizer que o bem-aventurado Francisco não queria que seus frades fossem desejosos de ciência e de livros; mas queria, e pregava aos frades, que se esforçassem por ter e imitar a pura e santa simplicidade, uma santa oração e a senhora pobreza, sobre as quais construíram os santos e os primeiros frades, e achava que esse era o caminho mais seguro para a salvação da alma.

Não que desprezasse ou olhasse com desagrado a santa ciência; até venerava com o maior afeto os que eram sábios na Religião e todos os sábios, como ele mesmo testemunhou em seu Testamento, dizendo: “A todos os teólogos e aos que nos administram as palavras divinas devemos honrar e venerar como a quem nos administra o espírito e a vida”. Mas, olhando para o futuro, conhecia pelo Espírito Santo e disse muitas vezes aos frades que muitos frades, com a desculpa de edificar os outros, abandonarão sua vocação, isto é a pura e santa simplicidade, a santa oração e nossa senhora pobreza. E acontecerá com eles que, de onde acharam que depois se imbuiriam de devoção e acenderiam para o amor de Deus por causa da compreensão das Escrituras, justamente por isso ficarão interiormente frios e como que vazios.

E assim não poderão voltar à antiga vocação, principalmente porque perderam o tempo de viver segundo a sua vocação. E temo que não lhes seja tirado o que parecia que possuíam, porque abandonaram sua vocação. E dizia: “Há muitos que põem na ciência todo o seu esforço e toda a sua solicitude, dia e noite, deixando sua santa vocação e a devota oração. E quando pregarem a alguns ou ao povo e virem ou ficarem sabendo que alguns ficaram edificados ou se converteram à penitência por causa disso, vão se inchar e orgulhar-se pelas obras e o lucro alheio. Porque é o Senhor que edifica e converte aqueles que eles crêem que eles acham que se edificam com suas palavras e se convertem à penitência, com as orações dos frades santos, mesmo que eles não saibam disso, pois assim é a vontade de Deus, que não percebam disso para não se orgulharem. Estes são os meus frades da távola redonda, que se escondem nos desertos e nos lugares afastados, para se dedicarem mais diligentemente à oração e à meditação, chorando os seus pecados e os dos outros, cuja santidade é conhecida por Deus, algumas vezes pelos frades, mas é ignorada pelos outros.

E quando suas almas forem apresentadas a Deus pelos anjos, então o Senhor vai mostrar-lhes o fruto e o resultado de seus trabalhos, isto é, muitas almas que forma salvas por suas orações, dizendo-lhes: Filhos, olhem estas almas salvas por suas orações, e porque fostes fiéis no pouco, eu vos constituirei sobre muitas coisas (cfr. Mt 25,21)”. Por isso, o bem-aventurado Francisco dizia sobre aquela passagem: Enquanto a estéril teve muitos filhos e a quem tinha muitos filhos ficou doente (cfr. 1Re 2,5), que a estéril era o bom religioso, que edifica a si mesmo e aos outros pelas santas orações e e virtudes. Dizia muitas vezes essas palavras diante dos frades em suas conversas com eles, e principalmente no capítulo dos frades junto à igreja de Santa Maria da Porciúncula, diante dos ministros e dos outros frades.

Por isso formava para as obras todos os frades, tanto ministros como pregadores, dizendo-lhes que por causa da prelatura e do ofício e solicitude de pregar não deviam absolutamente deixar a santa e devota oração, ir pedir esmolas e trabalhar com suas mãos, como os outros frades, por causa do bom exemplo e do lucro de suas almas e das dos outros. E dizia: “Os frades súditos ficam muito edificados quando seus ministros e pregadores se entregam de boa vontade à oração, e se prostram e se humilham”. Por isso ele, como um fiel zelador de Cristo, enquanto foi sadio de corpo, fazia em si o que ensinava a seus frades. Como aquele frade noviço, de que falamos acima, morava num eremitério, aconteceu que certo dia esteve lá o bem-aventurado Francisco.

Então aquele frade falou com ele, dizendo: “Pai, para mim seria uma grande consolação ter um saltério, mas, embora o ministro geral queira conceder-me isso, quero tê-lo de acordo com a tua consciência”. Esta foi a resposta que o bem-aventurado Francisco lhe deu: “Carlos imperador, Rolando e Olivério, e todos os paladinos e robustos varões, que foram poderosos no combate, perseguindo os infiéis com muito suor e trabalho até a morte, conseguiram uma gloriosa e memorável vitória sobre eles, e no fim os próprios santos mártires morreram no combate pela fé em Cristo; e sãos muitos os que só pela narração deles, do que eles fizeram, querem receber honra e louvor humano”. E por isso escreveu qual o significado dessas palavras em suas Admoestações, dizendo: “Os santos fizeram as obras e nós, recitando-as e pregando-as, queremos receber por isso honra e glória”. Como se dissesse: a ciência incha, mas a caridade edifica (cfr. 1Cor 8,1).



[104]

Outra vez, quando o bem-aventurado Francisco estava sentado junto ao fogo, esquentando-se, ele (o noviço) tornou a falar-lhe sobre o saltério. E o bem-aventurado Francisco lhe disse; “Depois que tiveres o saltério, vais ficar com vontade e querer um breviário. Depois que tiveres o breviário, te sentarás na poltrona como um grande prelado, dizendo ma teu irmão: Traz-me o breviário”. E dizendo isso, com grande fervor de espírito pegou cinza com a mão e colocou-a em cima da cabeça, levando a mão em volta da cabeça, como alguém que se lava, dizendo para si mesmo: “Quero um breviário! Quero um breviário!”. E falando assim muitas vezes, repetiu-o passando a mão pela cabeça. Aquele frade ficou estupefato e envergonhado.

Depois, o bem-aventurado Francisco lhe disse: “Irmão, eu também fui tentado a ter livros, de modo semelhante; mas para conhecer a vontade de Deus a respeito disso, peguei um livro em que estavam escritos os Evangelhos do Senhor e orei ao Senhor para que se dignasse mostrar sua vontade a para mim a respeito dessas coisss na primeira vez que abrisse o livro. Terminada a oração, na primeira vez que abri o livro encontrei aquela palavra do santo Evangelho: A vós foi dado conhecer os mistérios do reino de Deus; aos outros, porém, em parábolas (Lc 8,10; cfr. Mc 4,11)”. E disse: “São tantos os que sobem à ci6encia que feliz será quem e fizer estéril por amor do Senhor Deus”.



[105]

Depois, passados vários meses, quando o bem-aventurado Francisco estava perto da igreja de Santa Maria da Porciúncula, perto de sua cela no caminho atrás da casa, e aquele frade falou-lhe de novo sobre o saltério. O bem-aventurado Francisco disse-lhe: “Vá fazer como te disser o teu ministro”. Ouvindo isso, o frade começou a voltar pelo caminho por onde tinha vindo. Mas o bem-aventurado Francisco, permanecendo no caminho, começou a pensar no que tinha dito àquele frade, e logo gritou para ele, dizendo: “Espera-me, irmão, espera!”. e assim foi até junto dele, dizendo: “Volta comigo, irmão, e mostra-me o lugar em que te disse que fizesses do saltério o que te dissesse o teu ministro”.

Quando chegaram ao lugar onde tinha dito aquela palavra, o bem-aventurado Francisco inclinou-se diante do frade e, ficando de joelhos, disse: “Minha culpa, irmão, minha culpa, porque quem quiser ser frade menor não deve ter senão as túnicas, como a regra lhe concede, o cordão e os calções e, os que forem obrigados por manifesta necessidade ou doença, os calçados”. Por isso, a todos os frades que iam a ele para ter seu conselho a respeito disso, dava-lhes essa resposta”. Por isso dizia: “Uma pessoa tem tanto conhecimento de ciência quanto põe em prática; e um religioso é tão bom orador quanto ele mesmo pratica”. Como se dissesse: uma árvore boa não é conhecida senão pelo seu fruto (cfr. Mt 12,33; Lc 6,44)”.

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