sexta-feira, 15 de abril de 2016

Doutrina Monástica e a Vivência das Virtudes.

A DOUTRINA MONÁSTICA
DE
DOM ROMAIN BANQUET
FUNDADOR E PRIMEIRO ABADE
DE EN-CALCAT
Tradução do original francês.

ÍNDICE

Conforme o decreto de Urbano VIII, declaramos que, se no curso desta obra, damos a certas pessoas o título de santo ou falamos de revelações, não é de nenhum modo querendo nos antecipar às decisões da Santa Igreja, à qual nos submetemos inteiramente.

INTRODUÇÃO

A maior parte das pessoas que conheceram Dom Romain Banquet vêem nele um homem de Deus. As almas que se confiaram a ele aprenderam, escutando-o ou simplesmente olhando-o, o que é a autoridade sacerdotal. Ele falava, decidia, dirigia “tanquam auctoritatem habens”, como um homem que acredita na autoridade que recebeu de Deus e que faz uso dela segundo a necessidade das almas. Tudo, nas suas maneiras, tinha o caráter real da autoridade divina. Não era alto, mas sua dignidade se impunha. Sentia-se estar diante de uma alma elevada, forte e simples como um bloco de cristal. Nada o interessava fora de Deus. Quando a conversa se desviava para outro assunto, ele não escutava mais. Procurava somente a Deus. Achava-se que ele não teria lido nenhum livro por curiosidade nem por lazer. Ele parecia feito para agir, para combater, para construir e governar. Não se atrapalhava com sutilezas, análises ou cálculos. Ia direto a Deus. Para isso ele tinha necessidade de alguns princípios indiscutíveis. A Revelação, a Igreja, a Regra de São Bento lhos ofereciam. Ele discerniu os que são essenciais e apegou-se a eles  duma maneira absoluta. Qualquer que fosse o problema que se apresentasse, num rápido olhar, ele captava a relação deste com o princípio e decidia. Nenhuma incerteza dividia o seu espírito. Sua ação era rápida, contínua, irresistível.
Nas suas cartas e nos textos de suas conferências para as monjas de Santa Escolástica de Dourgne, que foram piedosamente guardados, a apresentação da doutrina parece dominada pela afirmação desses princípios. É um chefe que ensina em vista da ação. Não faz demonstrações. Ele dá palavras de ordem, encontra expressões concisas, ardentes, inesperadas, que tocam o espírito, comunicam suas convicções e inflamam o coração.
O sucesso da obra de Dom Romain prova a eficácia desse ensinamento. A comunidade de En-Calcat tinha somente treze anos quando foi expulsa de seu mosteiro. Depois de vários anos de exílio na Espanha, ela recomeçava a prosperar em Besalu, quando a guerra de 1914 disseminou seus monges pelos campos de batalha. Dez deles foram mortos. Essas provações não aniquilaram a fundação de Dom Romain. A comunidade, por humilde e fraca que fosse, sabia bem o que queria, a que aspirava e com que meios podia atingir o seu fim. Qualquer coisa que acontecesse, não havia hesitação nenhuma, nem divisão. Ela tinha unidade pela sua concepção da vida monástica, pelos princípios muito simples, práticos e elevados sobre os quais seu fundador a tinha solidamente estabelecido. Em todas as circunstâncias, ficou  inabalável. O ensinamento de Dom Romain Banquet foi comprovado.
Encontrar-se-ão nas páginas seguintes esses princípios, recolhidos de conferências, cartas e de alguns escritos, tais como ele os ensinava a seus filhos. Esses fragmentos inigualáveis datam, os mais antigos, de 1883 e os mais recentes de dezembro de 1928. Algumas perguntas e reflexões que foram inseridas nos diversos textos, a fim de lhes dar uma unidade, formam com eles uma espécie de diálogo
A DOUTRINA MONÁSTICA
DE DOM ROMAIN BANQUET

CAPÍTULO I: A herança do Pe. Muard

Para conhecer os projetos de Dom Romain Banquet quando, em 27 de fevereiro de 1890, ele abençoava a primeira pedra da abadia de São Bento de En-Calcat, basta consultar sua correspondência e, em seguida, as conferências nas quais ele expôs suas idéias. As folhas já envelhecidas guardam intactas suas palavras, o torneado de suas frases, suas expressões; e tudo parece ganhar vida novamente. Escutamos sua voz, revemos seus gestos, ele está aqui, de pé, diante de nós, seus olhos azuis fitando os nossos. Nos fala com a autoridade de um chefe e de um pai. À  pergunta que lhe fizemos: “Fundando En-Calcat, o senhor tinha um plano bem preciso, bem definido? Qual era sua idéia?” Ele respondeu: “Fazer uma verdadeira casa do Pe. Muard.” O Pe. Muard era um sacerdote da diocese de Sens que, depois de ter sido pároco de Joux-la-Ville e de Saint-Martin-d’Avallon, fundou uma sociedade de missionários diocesanos em Pontigny, e depois, em 1850, o mosteiro beneditino de “La Pierre-qui-Vire”. Ele faleceu em 1854.
“Cheguei a La Pierre-qui-Vire nove anos após a sua morte. Respirei com toda a minha alma o perfume vitorioso de santidade que o servo de Deus tinha deixado nesse deserto. O Padre Muard tornou-se o ideal da minha vida interior.”
“É o São Bento do século XIX. A caraterística de sua santidade é, ao mesmo tempo, a caraterística mais direta, mais larga e mais segura de toda santidade cristã: o amor divino. Basta olhar os detalhes da sua existência para chegar a essa conclusão. É a caraterística de todas as fases da sua vida. Seu desejo ardente do martírio desde criança, que o acompanha durante sua adolescência, sua juventude, no seminário maior e durante seu ministério sacerdotal, o revela... seu desejo das missões estrangeiras e, depois, o sacrifício total feito a Deus de todas as suas aspirações para fundar, primeiro, a Congregação dos Missionários de Pontigny e, por fim, o mosteiro beneditino de “La-Pierre-qui-Vire”... Enfim, ele morre consumido pelo amor de Deus.”
“Esta santidade está acompanhada de sinais que afastam qualquer equívoco: a imolação constante de si mesmo, a engenhosidade dos seus sacrifícios  pelas almas e por Deus. Ele só pensa no seu próximo e no seu Deus.”
“A grandeza do seu amor por Deus faz pressentir a pureza da sua vida: É uma vida angélica do começo ao fim. Todos diziam: - É um santo! É um pequeno santo! Um santo padre! O santo pároco! O santo missionário! Conheci padres que viveram com ele no seminário maior de Auxerre e que declaravam: “É um santo, da santidade mais autêntica.” Esta característica de santidade foi notada por todos os que se aproximaram dele. Ele comunicava o seu amor. Não era possível aproximar-se dele sem se deixar levar por esse amor. Contava com igual prestígio entre as comunidades que o ouviam e entre seus discípulos. O soberano pontífice Pio IX ficou impressionado pela irradiação daquela santidade e, no entanto,  o Pe. Muard se apresentou em trajes mais que modestos diante do Santo Padre; muito pobre, miserável, um pouco como São Bento Labre. Assim foi recebido em audiência em Gaeta.”
Como ele se tornou beneditino? - O Pe. Muard tinha o espírito de São Bento antes de chegar a São Bento, de tal maneira que assim que travou conhecimento com a Regra, pensou: “Eis o que Deus me pede”.
“Um dia estava andando e rezando, de repente Deus mostrou-lhe o plano da ordem religiosa que seria preciso estabelecer: uma ordem penitente, pobre, retirada na solidão, consagrada sobretudo à oração a fim de tornar o apostolado mais eficaz. Ele viu essa ordem dividida em categorias, umas  dedicadas à oração e ao estudo, outras mais aplicadas ao trabalho manual, de tal maneira que a comunidade pudesse ser auto-suficiente. Era a visão da ordem monástica tal como ela era no início. Não havia então diferença entre os irmãos conversos e os religiosos de coro. Ao mesmo tempo, o Pe. Muard sentia um impulso irresistível no sentido de que devia fazer aquilo, que devia estabelecer uma família monástica daquele tipo. Deus assim o queria.”
“O Pe. Muard dirigia nesse tempo uma fundação de missionários que acabava de estabelecer em Pontigny. Ele rezou, resistiu e dizia a si próprio: “Não, isso é impossível, é uma loucura!” Ele fez retiros, consultou os homens mais distintos que conhecia, entre eles o Pe. de Ravignan e o Pe. Lacordaire, o abade da Trapa de Sept-Fonts e, ainda, seus diretores. Fez um retiro após outro. Quanto mais ele pensava e rezava, mais sentia que devia por mãos à obra. Mas nenhuma regra lhe foi apresentada com precisão, e sua intenção era de  não compor, ele próprio, nenhuma: “É preciso que eu escolha entre as regras antigas “, dizia consigo mesmo.”
“Ele tinha pedido, como sinal da vontade de Deus, dois companheiros: um padre e um leigo. Um dia  ele se achava no seminário maior de Sens onde, através de um grande portão, via-se até o fundo do jardim. Um jovem diácono passava pela ala central. O Pe. Muard disse ao padre que o acompanhava: “Ah! Aí está o meu sacerdote!” Nunca o havia visto antes. O jovem diácono queria ser religioso. Ele fora suplicar ao padre que o levasse consigo: este o aceitou e lhe disse: “Está bem.”
“Estava passando um outro dia na rua duma aldeia. Encontra um carpinteiro  no seu caminho. A conversa começa, e o padre lhe diz: “O senhor irá comigo. - Sim, senhor.” E o irmão Mauro se entendeu com sua família, deixou seu trabalho, tudo, e foi para Pontigny. O Pe. Muard já tinha seu programa definido. Ele sabia que naquele momento não poderia deixar Pontigny. Ninguém sabia de nada. O irmão Mauro pensava em entrar lá, mas o padre lhe disse: “Não, não é para aqui. Se quiser, é outra coisa. - Quero o que o senhor quiser.” E adotaram um regime de vida nada fácil, a fim de se prepararem para partir para a Itália.”
“O Pe. Muard compreendeu que devia ir a Roma, onde as tradições religiosas estavam mais bem conservadas. Estava com seus companheiros. Eis como lhes impôs suas condições: “Meus irmãos, vamos fazer a vontade de Deus. Se quiserem saber aonde estamos indo, não sei dizer. A Roma, mas muito pobremente. O que faremos? Não sei de nada. Como voltaremos? Sei menos ainda. Se não têm coragem de ir, não vão. Irei sozinho.” É realmente a maneira  de proceder dos grandes fundadores.”
“Partem então a pé até Ars. Ali se detêm para consultar o cura d’Ars, que lhes diz: “Oh! Sim! É a vontade de Deus. Deus o quer certamente. É a vontade de Deus.” O irmão Bento se aproxima e o cura d’Ars, com sua voz fraca, lhe diz: “Vá, meu filho, siga-o. Deus os cumulará de graças. É a vontade de Deus.”
“A iniciativa pessoal do Pe. Muard o levava para a Regra de São Francisco de Assis, porque ele amava a pobreza. Mas, em Roma, os franciscanos o mandaram embora, contrariamente ao costume deles. Tomaram-no por louco. Todos os franciscanos o puseram para fora: tratavam-no como a um aventureiro. E cada vez que era despedido, ele entrava na primeira igreja que encontrava e dizia: “Te Deum laudamus.”
“Um dia no Vaticano, um arquiteto francês lhe indica Subiaco. O abade o recebe como um enviado do céu. Vendo-o, aquele beneditino, de espírito largo porém preciso, inclina-se diante do Pe. Muard, cheio de veneração e considera a vinda dele como um dom de Deus. Ele se tornou o diretor do Pe. Muard. Foi, pois, a um beneditino da velha cepa que Deus o dirigiu.”
“Nosso Pe. Muard tomou a Regra de São Bento, porque Deus a pôs na sua mão. Ele a leu. Ele não a conhecia ou a conhecia duma maneira confusa, e à medida em que ia lendo ele se dizia: “É isso. Eis o que Deus quer.”
“Fez uma apresentação completa de tudo o que desejava a Pio IX e este lhe disse as seguintes palavras: “Vá, meu filho, faça tudo isso. Mas não acabe com o “irmão asno”[1]. Depois, quando voltar, acertaremos tudo. Faça isso.” Pio IX tinha sido conquistado por seus argumentos e sua santidade.”
“No começo não havia nada em La Pierre-qui-Vire. A característica marcante, a mais incontestável era, sem dúvida alguma, o sobrenatural. Havia unicamente o sobrenatural, nada de humano.”
“O Pe. Muard não é um gênio. Seus primeiros discípulos eram  simplesmente  pessoas de bem. Nenhum deles fez qualquer descoberta notável. Se alguém era despretensioso era  o próprio Pe. Muard. “Não sou fundador.” - Quais são seus últimos desejos? perguntavam-lhe seus discípulos. - “Não sou fundador, repetia: O fundador é o Sagrado Coração.”
“Quanto aos recursos: nada! Foi dado ao Pe. Muard o essencial para construir uma casa.  A primeira construção de La Pierre-qui-Vire? Um casebre. Seus filhos precisavam de um alojamento e havia somente troncos no chão. Fizeram um barracão de madeira e palha. Uma parte servia de capela. A casa tinha de quinze a dezesseis metros de comprimento. A capela ficava na extremidade. Um cômodo servia de refeitório e de sala de conferência. Do outro lado, estava a cozinha. Uma espécie de sótão servia de dormitório para o irmão Mauro, que dormia na palha. O Pe. Muard dormia sobre a bancada de ferramentas. Viveram lá de 2 de julho até o mês de outubro de 1850.”
“Edificaram com suas próprias mãos seu mosteiro, e não é brincadeira construir em La Pierre-qui-Vire. Era necessário retirar rochedos e aplainar os terrenos íngremes. O Pe. Muard havia profeticamente marcado com seu bastão o lugar que Deus queria. No lugar exato marcado por ele se acha hoje o altar-mor da grande igreja de La Pierre-qui-Vire. Conservamos aquele projeto a fim de obedecer à vontade de nosso santo fundador.”
“Eles tinham somente as pequenas coisas que lhes eram dadas. Um dia sobravam dois tostões. Passa um pobre. Ficaram encantados em oferecer-lhe sua moeda de dois tostões. Acharam que sua fortuna estava completa. Tinham tudo o que era necessário para dizer missa: tinham um cálice, que foi usado por nós durante muito tempo: a copa de prata dourada, o pé de cobre dourado. O vestuário não era nada opulento. Um só hábito de reserva para todo mundo. Quando era preciso consertar algum, aquele hábito deveria servir para todos os tamanhos. Para alguns, ele era demasiadamente comprido; para outros, demasiadamente curto. Os hábitos eram lavados e costurados no mosteiro. Isso se fazia como se podia sem recorrer a ninguém de fora. Irmão Mauro era homem que sabia fazer de tudo.”
“As pessoas da redondeza eram camponeses. Eles traziam legumes, nabos e couves. Não era difícil cozinhar: para a sopa, punha-se água e sal numa panela, e ali se colocavam os legumes nesse caldo, e mergulhava-se o pão. Uma vez a sopa foi feita com maçãs silvestres.”
“Assim viveu aquela santa gente! E os mais fortes ainda pregavam missões!”
“Havia pessoas que vinham a La Pierre-qui-Vire. Montalambert, que ficava na vizinhança, no castelo de La Roche, era um admirador e um amigo dos beneditinos de La Pierre-qui-Vire. Monsenhor Dupanloup também. Vi os dois lá. Os castelões dos arredores vinham também. O espetáculo que tinham diante dos olhos os transportava a séculos passados. Deus queria que as coisas fossem assim ao começo de La Pierre-qui-Vire. Sem dúvida eles ficaram profundamente edificados.”
Esses começos tão pobres e tão austeros foram conformes à Regra de São Bento? - “O Pe. Muard começou como nosso Pai São Bento, como São Bernardo, como todos os grandes fundadores.”
“O Pe. Muard não inovou nada em relação à Regra, não fez nada mais que São Bernardo, que São Bernardo Ptolomeu, nada mais que os santos que adotaram a Regra de Nosso Pai São Bento e que se serviram dela com um fim determinado. Tomou a Regra tal como ela é e, por causa de sua preocupação com a penitência e a austeridade, quis praticá-la, na medida do possível, no seu rigor primitivo.”
“Estabeleceu um horário de levantar noturno que permitia  não se deitar novamente. Fazendo isso não inovava nada, pois a ordem de Cister praticou assim o horário noturno. Levantava-se às três horas, deitava-se às oito horas. Ele era discreto tanto quanto podia, tendo em vista os desígnios de Deus. Deus lhe pedia penitências pelas almas e pelos crimes que se cometem. Adotou a média de sono da Trapa. Os trapistas têm sete horas de sono contínuo durante o inverno. No verão, eles se deitam às oito horas e se levantam às duas horas da madrugada. O Pe. Muard havia estabelecido levantar às três horas.”
“Ele abrandou o jejum, pois em seu regulamento havia uma colação todas as noites. É mais brando que nos trapistas que tinham uma refeição de vinte e quatro em vinte e quatro horas, às duas horas da tarde, desde o dia 14 de setembro até o começo da Quaresma; e durante a Quaresma, às dezesseis horas. Nosso Pe. Muard coloca a refeição ao meio dia, a colação à noite sempre, e quando alguém estava com fome de manhã, comia um pedaço de pão e tomava uma sopa leve. Era uma mitigação. Dever-se-ia seguir o jejum em qualquer parte, no mosteiro ou enviado em Missão.”
“A respeito da abstinência, Nosso Pai São Bento não exclui nenhum alimento, a não ser a carne de quadrúpedes. O Pe. Muard queria que se fizesse abstinência de tudo a não ser de pão, de ovos, de sal, de frutas, de legumes. Onde ele punha discrição era em conceder mitigações. O pão dá muita energia e se comia muito pão.”
“O Pe. Muard estabeleceu o apostolado. Realmente quem acha espantoso ver os beneditinos pregarem, está fechando os olhos para os sete primeiros séculos de nossa ordem. O monge sacerdote fica à disposição para fazer apostolado se a Igreja lho pedir. Ora, quando o Pe. Muard estabeleceu a Regra, a necessidade de missões era mais importante que nunca. Ele não inovou realmente nada.”
“De resto, não excluía nada. Quando perguntavam-lhe: “Mas o que é que o senhor fará? - Todas as obras que podem servir a Deus e à Igreja, exceto as que sejam incompatíveis com a Regra de São Bento.” Falando assim, ele resumia os séculos mais fervorosos de nossa ordem.”
“Ele estabeleceu um silêncio perpétuo. Inovação? De maneira alguma. Ele tomou a Regra palavra por palavra. Alguns vão dizer: mas e Cluny? Cluny não é o primeiro modelo da Regra. Os cistercienses adotaram o silêncio perpétuo. Os cartuxos o praticaram durante muito tempo. Agora, por razões sábias, a Santa Igreja lhes impôs momentos de recreação. Em La Pierre-qui-Vire tínhamos os sinais monásticos, e posso lhes dizer que o silêncio não é uma privação. Tive a felicidade, durante quatro anos, de não ter de me acusar de  uma só palavra contra o silêncio. Eram raras as acusações de faltas contra o silêncio. Éramos fustigados em público. Jogava-se uma disciplina para o culpado, um círculo se formava, ele apanhava a disciplina e se batia com ela. É um erro deixar cair essa sanção em desuso. Agora temos o silêncio, mas não perpétuo. O silêncio não era um constrangimento, ele dava uma grande facilidade para o trabalho intelectual.”
“A pobreza! Gostaria de saber em que estilo Nosso Pai São Bento construía os mosteiros. Não se pareciam certamente com a torre de Babel. Vê-se que a mais austera pobreza presidiu o nascimento da Ordem de São Bento. Houve dias em que os monges não tinham absolutamente nada para comer. Ia-se ao refeitório, dizia-se o “Benedicite”, o celeireiro não tinha nada para dar aos irmãos, São Bento os consolava, e, milagrosamente, Deus mandava víveres. Isso mostra uma pobreza extrema. E ainda reprovaram o Pe. Muard por causa de sua pobreza: “É um exagerado! Vejam como é ridículo!”
“O Pe. Muard foi onde Deus o guiou. Não se guiou a si mesmo. Não fez uma obra humana. Não é uma nuance da Ordem de São Bento que ele quis estabelecer.”
“Quanto ao trabalho manual, havia, e era feito com seriedade. Durante as férias, a tradição era de deixar a pele das mãos no cabo das picaretas. Era necessário trabalhar seriamente, pois o solo era granítico. Tínhamos picaretas com pontas terríveis. e mesmo assim com uma forte pancada, arrancávamos pedaços bem pequenos. Honrar o trabalho manual não é inovar. É a Regra.”
O Pe. Muard tinha o espírito beneditino?
“Tinha o espírito de São Bento. Praticou, num grau heróico, todas as virtudes que nosso bem-aventurado Pai ensina na sua Regra. Como o espírito beneditino consiste nisso, ninguém, neste século, demonstrou duma maneira mais viva e mais evidente o que é um filho de São Bento. É difícil  definir o espírito do Patriarca dos monges. Lemos que São Bento era cheio do espírito de todos os justos: “Omnium justorum spiritu plenus fuit”. O espírito de todos os justos pode-se definir assim: uma adesão total, permanente à vontade divina. São Bento simplesmente recebeu ordens do Céu e as cumpriu. Nosso Pe. Muard simplesmente recebeu ordens do Céu e as cumpriu. Sabem onde encontro a exata definição do espírito do Pe. Muard? No texto do prefácio de Nosso Pai São Bento. “Ducem et magistrum coelitus edoctum”[2]. É a característica deste grande beneditino: receber, experimentar, fazer controlar pela Igreja e executar as ordens do Céu.”
“O Pe. Muard faz parte dos maiores beneditinos do século XIX. De todos os beneditinos contemporâneos, é um dos maiores santos, um dos mais autênticos enviados de Deus, um dos mais semelhantes a São Bento, o patriarca dos monges. E entre os restauradores da Regra, um dos mais ousados e completos.”
“Olhando para trás, até as origens de nossa ordem, encontro a santidade brilhando sozinha com seu mais forte brilho na pessoa de nosso glorioso Pai, de Santa Escolástica e dos seus primeiros filhos. Mais tarde, a ordem brilhou por sua ciência, seu poder e suas riquezas, mas foi também por essas coisas secundárias que ela pereceu, quando os monges deram a elas uma importância dominante e relegaram a santidade ao segundo plano. Sendo essa consideração histórica inexpugnável, quem não vê logo a gloriosa semelhança entre nosso Pe. Muard e nosso Pai São Bento, entre as origens da ordem e as de La Pierre-qui-Vire?”
Foi o Pe. Muard quem atraiu o senhor a La Pierre-qui-Vire? - “Foi unicamente a fama da sua santidade que me fez ultrapassar os obstáculos que estavam diante de mim e que tornavam moralmente impossível minha entrada em La Pierre-qui-Vire.” Sem ele o senhor não se tornaria beneditino? - “Entrei na ordem de São Bento, porque os seus exemplos me encantaram.” - O senhor, portanto, só pôde conceber sua fundação de En-Calcat  segundo o espírito do Pe. Muard. - “Devemos fazer de nosso Mosteiro de São Bento de En-Calcat uma verdadeira casa do Pe. Muard, que traz a sua marca e a sua efígie e vive de seu espírito e de suas idéias, modificando no entanto quanto ao exterior, alguns pontos da observância que ele mesmo teria modificado.”
Dois documentos nos fazem conhecer a origem desse pensamento de Dom Romain:
1. uma página de seu diário íntimo.
2. uma nota manuscrita de Mademoiselle Marie Cronier, uma jovem favorecida por graças extraordinárias e que Dom Romain dirigia desde 1877.

1. O DIÁRIO DE DOM ROMAIN

23 - 31 de janeiro de 1883
“Marie começou no dia 28 a ouvir da boca do Mestre bem-amado instruções relativas ao futuro, muito claras e precisas.”
“No dia 29 de manhã, na santa comunhão, elas se tornaram mais claras ainda.”
“No dia 29 à noite, durante uma prolongada oração, elas me foram comunicadas:
“Jesus disse à sua esposa as palavras de Deus a Abraão: “Egredere de terra tua et de cognatione tua et de domo patris tui, et veni in terram quem monstravero tibi, faciamque te in gentem magnam et benedicam tibi...”[3]
“Jesus quer que se retome a obra do Pe. Muard a fim de lhe dar o seu pleno e verdadeiro desenvolvimento. Jesus diz que as filhas e os filhos da sua pequena esposa e de seu pai espiritual serão numerosos, que eles terão a forma e o espírito desejados por São Bento, mas na sua unidade e simplicidade primitivas: que será necessário, de certa forma, suprimir as tradições dos séculos posteriores a Nosso Pai São Bento, fazer como se estivéssemos recebendo a Regra de sua mão, sem intermediário, retomar a obra do Pe. Muard tal como ele a explica nas suas constituições e  restabelecê-la sem nenhuma outra influência que a de Nosso Pai São Bento na sua Regra.”
“Jesus faz entender que essa dupla família de filhos e filhas de São Bento e do Pe. Muard vai se constituir, dentro de alguns anos, sobre as ruínas amontoadas pelas catástrofes que nos ameaçam. O começo será muito pobre e pequeno. As duas almas, que vão ser as pedras fundamentais, terão muito que sofrer para realizar a obra do Bem-Amado.”
“Jesus nos mostrou a necessidade de realizar esse projeto para reparar os ultrajes feitos à sua infinita bondade, para pôr em vigor novamente o verdadeiro e primitivo espírito monástico livre das misturas modernas, para reservar para si almas escolhidas nas quais ele poderá encontrar suas delícias.”

2. NOTAS DE MADEMOISELLE MARIE CRONIER

Colóquios de Jesus a respeito da Obra
Santa Catarina, 25 de novembro de 1883.
“Durante a ação de graças, Jesus me falou acerca de pensamentos próprios ao Prefácio das Constituições das Beneditinas do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, das filhas do Pe. Muard e, sobretudo, tendo como título no seu Coração “suas esposas bem-amadas”, pois começando essa espécie de ditado para a introdução de nossas Constituições, Ele disse: “Jesus às suas esposas bem-amadas.”
“Lembrando-me de seus diferentes apelos à Obra, Ele os mostrou a mim numa só luz, depois, de novo, Ele me repetiu as memoráveis palavras do dia 29 de janeiro: “Sai do teu país e da casa do teu pai e vem para a terra que te mostrarei, edifica-me uma morada espiritual, dá-me almas que se multiplicarão e se tornarão uma raça escolhida, um povo de eleitos.”[4]
“O que Ele quer, acrescentou, é um jardim fechado, isto é, uma comunidade de almas interiores, de almas generosas que renovem e lembrem o fervor das primeiras virgens da Igreja.  Queixou-se dolorosamente, tristemente de não ser amado e, do mesmo modo que nos primeiros tempos, no meio da corrupção geral, chamou Noé, mandando-lhe construir a arca para abrigar-se nela com a sua família, assim, neste século de iniqüidade, Ele, o Deus forte e poderoso, sente a necessidade de ordenar uma arca espiritual que será sua própria morada, onde Ele virá se consolar, onde na terra as almas esforçar-se-ão por amá-Lo, servi-Lo, à maneira dos Anjos, onde, apesar das iniqüidades crescentes, haverá almas que viverão d’Ele e O servirão com toda a fidelidade que Ele delas espera, onde será o Bem-Amado, o Mestre absoluto. Esse será seu lugar escolhido, se as almas chamadas tiverem a felicidade de  entender isso e de responder a esse chamado. “Não é uma novidade, disse-me Ele, não é uma nova congregação, não são novas práticas, uma nova devoção, é um rebento das mais belas e antigas devoções da Santa Igreja, da vida religiosa em comum, da prática da vida interior, do despojamento de si mesmo para fazer viver e resplandecer Jesus Cristo, seu modelo, seu esposo, seu tesouro: é um novo elã, uma nova floração na antiga Regra de São Bento. Nenhuma inovação: a Regra, somente a  Regra. Mas estudada, amada, traduzida em ações, a fim de atingir o cume da perfeição.”
“Jesus quer almas interiores. A Obra terá por finalidade única  formar almas interiores, viver em união íntima com Jesus. Ele promete derramar bênçãos escolhidas, mas Ele quer almas generosas que se apliquem à contemplação, que não regateiem, que sejam grandes e nobres na virtude, que delineiem as virtudes religiosas dos primeiros discípulos de São Bento e cuja única sede seja a santidade. “Deixando às almas uma grande liberdade e confiança, eu lhes dou por código a Regra por excelência, por meio a Oração, a vida recolhida que as ensinará a se despojarem alegremente, a serem humildes, mortificadas, a subirem de grau em grau até a união completa com Deus. Na oração, elas acharão tudo: pobreza, castidade, obediência, fidelidade, amor, sacrifícios amados. Minha via é simples. O que quero são almas. Quero-as minhas íntimas. A minha finalidade é de lhes pedir a vida interior, é de ter um edifício espiritual.”
“1) Jesus quer a aplicação da Santa Regra.”
“2) Que como filhas do Pe. Muard, conformemo-nos a seus pensamentos e adotemos seu plano e sua vida. Homem de oração, de prece... suas filhas devem ser particularmente fiéis à oração. Jesus quer a verdadeira santidade. Ele ma representou generosa, larga, alegre, confiante para com Ele, que é tão bom. Era muito belo. Era mesmo a verdadeira santidade.”
“Já existem comunidades beneditinas, disse-me, mas Ele quer este ramo. Ele quer este pequeno jardim fechado, Ele quer este oásis de seu Coração. Ele me disse que se uma só alma verdadeiramente fiel lhe traz muita glória, quanto mais um canteiro de Virgens fiéis. Ele me disse que ninguém pode nos impedir de nos consagrarmos totalmente a Ele e levarmos uma vida celeste.”
“Ele me disse que está ansioso para ver seu desejo realizado, que está acumulando tesouros para no-los prodigalizar, que o Pai e a Mãezinha devem pôr todo o cuidado em bem formar essas almas, a fim de torná-las enérgicas e viris. Ele insiste sobre a necessidade de aumentar o fervor viril, a energia no bem, o espírito de oração e de prece, que uma só comunidade assim regrada teria grande poder junto a Deus, seria a glória de Jesus e, para essas almas bem-aventuradas, a felicidade eterna. Deve-se rezar nesta época de impiedade, e compreenderíamos como importa rezar, consagrar-se a Ele, viver para Ele, ah! se víssemos com o olhar de Jesus.”
“Jesus então abençoa de novo a Obra e chama as bênçãos de seu Pai, as luzes do Espírito Santo, a fim de que ela siga o objetivo divino, que seja preservada do erro, e que se torne o santo templo no qual muitas almas virão buscar a pura santidade.”
“Não traduzo bem tão admiráveis palavras. Sofri o dia inteiro pela impossibilidade em que me encontrava para traduzir a visão da manhã, sobretudo para explicar a perfeição tal como Jesus a pintou. Mas sinto que esse quadro permanecerá e que olhando-o sempre, ele me guiará e esclarecerá sem cessar. O que vejo nele sobretudo, é uma grande pureza de ação, o desapego de si mesmo, para seguir todos os conselhos da vida regular. Se isso não for bastante completo, pedirei a Jesus que me faça escrever suficientemente.”
“A Obra é simples e imensa ao mesmo tempo. A Obra pede somente a santidade, mas ela a quer sem limites, de tal maneira que as almas se esforcem sem cessar para subir. A Obra não as limita, ela lhes diz: Eis o objetivo. É preciso atingi-lo. A Obra, na boca de Jesus, é bela, divina, grande, santa e abençoada.”
Segundo esses dois textos, Nosso Senhor mesmo pediu que a fundação de En-Calcat e Dourgne fossem conformes às idéias do Pe. Muard e, segundo a idéia deste último, ao espírito primitivo da Regra. Ir ao Pe. Muard é ir a São Bento por um caminho direto.
“O Pe. Muard tomou a Regra tal como ela era na origem, diz-nos Dom Romain. Era a volta pura e simples à Regra.”
Mas a Regra de São Bento basta? Satisfaz a todas as questões? - “Há quinze séculos, as mais graves autoridades da Igreja ensinaram que a Regra, inspirada por Deus, basta-se a si própria e que não se deve subtrair nada dela, nem acrescentar nada. Na Regra há tudo o que é necessário para agradar a Deus e servir utilmente à Igreja.”
“Escrita para os séculos, sob a inspiração divina, ela bastará sempre e em toda parte, com a simplicidade do seu texto ao mesmo tempo imutável e largo, universal e particular, grandioso e simples, antigo e muito atual, ascético e prático, levando ao Céu, mas esclarecendo as vias terrenas com um bom senso invencível e especial. São Bento conhece duma maneira admirável a natureza humana. Ele a toma tal como ela é, mas sem as suas fraquezas. Sua Regra convém ao século vinte como ao século quinto da Igreja, a todas as fases da vida espiritual, a todas as condições físicas e mesmo morais. A Obra dos santos não desaparece nunca.”
A Regra tem suas provas, com efeito! - “Contam-se cerca de trinta e cinco papas saindo dessa milícia monástica. Quanto aos bispos , não é possível contá-los. E os mártires, os confessores da fé, os escritores! Quantos rios de ciência saíram da Ordem beneditina! Não se sabe na verdade quantos monges e monjas se puseram a imitar São Bento desde Subiaco e Monte Cassino, em todos os países do mundo. Mas pôde-se estabelecer o número de mosteiros durante a época de maior desenvolvimento da Ordem: chegaram a trinta mil!”
Como disse o Pe. Muard, o autor dessa Regra foi “um dos maiores santos do qual a Igreja se honra, um dos maiores legisladores que existiu”[5] - “São Bento tem o gênio da ordem, da administração. A Igreja, adotando uma palavra de São Gregório Magno, no-lo apresenta como “cheio do espírito de todos os justos”. Segundo essa palavra, os dons de Deus, diversificados em cada um dos santos, encontram-se todos no Patriarca dos monges. Do ponto de vista histórico, é isso que explica como a Ordem Beneditina, no decorrer dos séculos, chegou a servir a Igreja através das mais variadas obras. Na seqüência da missa própria em honra de nosso bem-aventurado Pai, a Igreja o compara aos profetas, aos mais famosos personagens do Antigo Testamento. Ele pode rivalizar também com todos os santos do Novo Testamento, que encontram nele algo de si próprios.”
Todos os fundadores de Ordem, que vieram depois dele, basearam-se nele? - “Todos proclamaram estar sob a proteção de São Bento e de sua Regra. Temos a ventura de possuir a Regra mais fundada na tradição, a mais aprovada pela Igreja. A Regra por excelência.”
Qual foi a missão do Pe. Muard em relação à Regra de São Bento? - “Nosso Pe. Muard foi suscitado por Deus: 1) para mostrar em sua pessoa a pobreza, a humildade, a penitência, a oração e o amor a Jesus crucificado dos monges dos primeiros séculos; 2) para dar à Igreja uma família de monges beneditinos fortemente marcados pelas mesmas características e animados de um grande zelo pelo serviço da Igreja e pela salvação das almas.”
Não se encontra tudo isso nos Cistercienses? - “O Espírito de Deus que conduzia o Pe. Muard também o conduziu à Trapa para lá haurir a melhor e mais autêntica maneira de praticar a Regra. Tenho, pela observância Cisterciense, o gosto e o atrativo do Pe. Muard. Ser-me-ia muito agradável se Deus me quisesse encerrar na Trapa. Que profunda solidão! Que silêncio celeste! Que salmodia grave, solene e tão piedosa!”
E Solesmes? - “Em Solesmes há por toda parte uma notável característica de superioridade intelectual, de antigüidade, de sobrenatural e de toque monástico. Lá não falta a santidade. Ela se parece a São Pedro pela arquitetura. Não há luxo, mas grandeza. É um ponto de afluência e, atualmente, é a capital da ordem beneditina na França. É a glória de Deus, da Igreja e da França. Amo esta família e quero-lhe bem e muito.” - Já que o senhor gosta tanto da Trapa e de Solesmes, por que o senhor fez outra obra? - “Jesus deu-nos o seu programa, o espírito do seu Coração e seu servo o Pe. Muard. É isto o que devemos conservar, amar e querer dar aos que amamos e que tiverem confiança em nós.”
Este programa foi exposto pelo Pe. Muard em suas Constituições: “Sendo a finalidade de nossa sociedade trabalhar para a glória de Deus, para a nossa santificação e a do próximo, pela humildade, pela pobreza, pela penitência e pela pregação, tomamos por princípio que nosso espírito particular seria um espírito de humildade, de pobreza, de expiação e de zelo (mas particularmente de humildade, porque o orgulho é o vício dominante de nosso século que pode-se bem chamar o século do orgulho). Ademais, pusemos nossa sociedade sob o patrocínio do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, porque as virtudes que devem constituir o espírito de nossa sociedade são as virtudes por excelência do Sagrado Coração de Jesus e do Coração de sua Santa Mãe.”[6]
“É necessário que sejamos filhos do Pe. Muard, quanto ao espírito de uma maneira profunda, marcada, absoluta. É também necessário, que o sejamos quanto às observâncias, no que elas têm de possível para os temperamentos contemporâneos.”
“Na época presente, é necessário, creio, conformar-se em estabelecer observâncias de acordo com a fraqueza dos temperamentos e, em compensação, fazer o que o Bem-Amado pede com tão vivas instâncias: orientar inteiramente as almas para a vida interior, para a união com Jesus, para as pequenas virtudes quotidianas. A imolação que Jesus pedia a nosso Pe. Muard será talvez menos aparente, mas será mais íntima e eficaz.” - São Francisco de Sales não falava diferentemente! - “Devemos amar São Francisco de Sales, porque o espírito com que ele esteve animado e que ele imprimiu tão bem à Visitação é precisamente o espírito de nossa Ordem. Seria fácil prová-lo pelo estudo da Regra e pela história de nossos primeiros santos. Dá-se muita atenção às suas austeridades, necessárias em seu tempo, para subjugar a natureza vigorosa que eles possuíam. Não se dá bastante atenção ao espírito interior e de oração dos quais eles estavam cheios.” - Mas o senhor mesmo, em sua juventude, acaso não imitou as austeridades dos antigos? - “Tive o erro de considerar demais as virtudes exteriores, não considerando as virtudes interiores  na mesma proporção.”
Em suma, o senhor quer orientar os seus monges para a vida interior - “Deus, no programa do dia 29 de janeiro de 1883, pede-nos uma casa cuja característica fundamental, cujo ponto de partida e cuja força primeira sejam o espírito interior com tudo o que se lhe refere.”
Mas, diminuindo as austeridades, o senhor não introduz o relaxamento? - “Quanto mais, em princípio, queremos as grandes observâncias, tanto mais, na prática, devemos e podemos impor atenuações àqueles nossos filhos que disso têm necessidade. É o próprio espírito da Regra: os princípios intactos, e as atenuações dadas com uma atenção e cuidado maternais.”
Esses princípios, aos quais Dom Romain dava uma grande importância, foram-nos deixados por ele em seu testamento.- “A falta de princípios solidamente estabelecidos é um terrível obstáculo ao desenvolvimento pacífico e sério de uma comunidade.”

TESTAMENTO DE DOM ROMAIN

Viva o Coração de Jesus!
Primeira sexta-feira do mês 5 de junho de 1914.
Meus filhos muito amados,
Os homens da minha idade desaparecem em grande número. Só Deus conhece minha hora e meu dia.
Após longas hesitações, parece-me que devo deixar algumas linhas, que, com a bênção do Sagrado Coração, poderão vos servir.
I. Meu Sucessor.
É de vossa honra e de vosso interesse escolhê-lo dentre vós e elegê-lo unanimemente.
Chegareis a tal sem dificuldade, se vos preparardes com fé e pelas sessões preliminares que vos parecerem úteis.
Sede bastante fortes para não haver necessidade de nenhuma intervenção estranha à Comunidade.
Não vos lanceis nem vos percais em conjecturas.
Durando o período indicado é o que tendes de melhor a fazer.
Agrupada ao redor de um chefe, a Comunidade prosperará.
II. O que é importante.
É acima de tudo a vida cenobítica segundo a Regra, com o Opus Dei, razão de ser de nossa vocação, dando preferência à vida claustral, com apego fiel à autonomia e à estabilidade, com a constante aplicação à Escritura, à Teologia, à Patrologia, com o zelo das Observâncias, sobretudo com a profunda e suave caridade.
Nossos missionários só serão abençoados na proporção em que se mantiverem monges segundo os princípios.
No dia em que eles viverem mais do exterior que do interior, eles estarão em perigo.
Não esqueçais que, para constituir uma Abadia, é necessário um mínimo de cinqüenta padres.
Solicitude extrema pelo Noviciado e seu recrutamento e a formação dos indivíduos.
Manter constantemente o Alunato e fazê-lo progredir sempre.
Independentemente dos motivos de ordem geral, é em virtude da Justiça que devemos nossa assistência e nosso devotamento à Abadia de Santa Escolástica. Nosso Senhor que ama essa comunidade abençoar-nos-á proporcionalmente.
Um profundo e religioso respeito, um devotamento infatigável, a dignidade sacerdotal e o desapego devem caracterizar esse ministério.
A Obra Beneditina pela Igreja Padecente adquiriu direito sobre nós. Nosso Senhor a guarda e não devemos negligenciar nada para mantê-la e desenvolvê-la.
III. Saídas da Comunidade.
Nossos superiores não as imporão. Os que crerem dever pedi-las para ir para outros lugares são livres de o fazer. Mas é necessário não esquecer que o voto de estabilidade, que é característico da profissão beneditina, é obrigatório como os outros e que ele traz consigo graças e vantagens das quais é melhor não se despojar facilmente.
IV. Fundações.
Há cinqüenta anos que vejo desmoronar um grande número delas. Outras se debatem na agonia. A explicação está na maneira como estas empresas foram começadas. Meus Filhos, sede mais que prudentes nesta matéria. Dai tempo ao tempo, rezai, interrogai a vontade de Deus. Uma fundação monástica difere totalmente da fundação de um simples posto ou de uma obra.
V. O Temporal.
Nada de dívidas, nada de empréstimos. A pobreza sempre.
Esperar na Providência. Saber suportar as privações. Fazer caridade com ordem, discrição, amplidão.
VI. Ortodoxia.
Exatidão severa em seguir todas as condutas e indicações da Sé Apostólica em tudo e por tudo.
Tomai cuidado com a imprensa e as publicações que se multiplicam.
Se se revelam em nossas fileiras espíritos dissidentes e temerários, não os sigamos.
Invoco sobre cada um de vós, meus Filhos muito amados, as bênçãos do Sagrado Coração de Jesus que vos serão obtidas no instante de minha morte através do Imaculado Coração de Maria. Sua presença e assistência ser-vos-ão sensíveis.
Chegando lá em cima, velarei por vós com mais poder e afeição.
Ir. Romain O.S.B.
Natal de 1914.
Meus Filhos, tomai muito cuidado. Sede Franceses católicos. Franceses monges. Franceses em filosofia tomista. Franceses em teologia tomista. Franceses em toda a ordem intelectual, literária, artística. É o meio de servir à Igreja.

CAPÍTULO II: A família monástica

1. - O ESTADO MONÁSTICO

Procurei como São Bento define a vida monástica. No Prólogo, ele concebe o mosteiro como “UMA ESCOLA DO SERVIÇO DO SENHOR”[7]. No primeiro capítulo,  anuncia que, “COM O AUXÍLIO DO SENHOR”, ele vai “DISPOR SOBRE O PODEROSÍSSIMO GÊNERO DOS CENOBITAS”, “ISTO É, DOS MONGES QUE MILITAM EM UM MOSTEIRO SOB UMA REGRA E UM ABADE”[8]. É esta a definição exata e completa da vida monástica?
“A vida monástica é a consagração total da existência humana ao serviço solene de Deus.”
Em que ela difere da vida religiosa? - “O estado religioso é o do cristão que se consagra de uma maneira exclusiva ao serviço de Deus. Ele faz profissão pública de perfeição, renuncia aos bens passageiros, desfaz-se de todos os laços da carne e faz abnegação total de si mesmo sob o jugo da obediência, em conformidade a uma regra aprovada pela Igreja.” - Como o senhor define o estado religioso? - “A profissão pública da perfeição cristã...”
“Que mais ainda é o estado religioso? Uma participação da Cruz e dos sofrimentos de Nosso Senhor. - São Bento escreve, com efeito, no Prólogo da Regra: “DE MODO QUE, PERSEVERANDO NO MOSTEIRO ATÉ A MORTE, PARTICIPEMOS, PELA PACIÊNCIA, DOS SOFRIMENTOS DO CRISTO A FIM DE TAMBÉM MERECERMOS SER CO-HERDEIROS DE SEU REINO.” - No serviço de Deus é necessário ser bravo e não aspirar ao repouso.”
“Por sua natureza, o estado religioso é um estado de conversão. “NOVITER VENIENS AD CONVERSIONEM.”[9]Parece-me que esta definição é a mais exata. É necessário cada dia recomeçar o trabalho de nossa conversão.” - Esta idéia de obrigação ao progresso está contida na palavra ESCOLA escolhida por São Bento para designar o mosteiro: “ESCOLA DO SERVIÇO DO SENHOR”[10] - “DOMINICI SERVITII SCHOLA.” Poderíamos traduzir sem temeridade por esta outra palavra: “Dominici schola amoris”, escola do amor de Deus. É isso o que o glorioso Patriarca quis dizer. Ele explica isso no começo e no fim do capítulo sétimo, quando faz brilhar acima do décimo segundo grau de humildade o esplendor “DAQUELE AMOR QUE, QUANDO PERFEITO, AFASTA TODO TEMOR”[11]  Logo, somos religiosos para aprender a amar a Deus.
“O fundo íntimo do estado religioso é a prática contínua e mais perfeita possível do primeiro mandamento: “Adorar a Deus e amá-Lo de todo coração.”
Nisto o estado monástico não se distingue do estado religioso. - “A vida monástica é o exercício contínuo, pleno e inteiro do estado religioso.”
No entanto, a vida monástica acrescenta algo às condições da vida religiosa. - “Ela acrescenta a separação do mundo, a reclusão voluntária no claustro, o ofício divino de noite e de dia, o silêncio, a penitência, uma dependência que envolve todos os detalhes e, enfim, a estabilidade sob um mesmo superior num mesmo mosteiro.” - Sobretudo a clausura e a estabilidade: “A OFICINA” onde o monge deve exercitar-se é, diz-nos São Bento, “O CLAUSTRO DO MOSTEIRO ASSIM COMO A ESTABILIDADE NA COMUNIDADE.”[12] “A vida monástica é o campo entrincheirado, como que a fortaleza inexpugnável do estado religioso.”

2. - A REGRA

“A maior necessidade de uma alma consagrada a Deus é a de ser governada. O monge milita sob uma Regra, lei escrita, e sob um Abade, lei viva.”
A Regra de São Bento... “Haec est via”, é o caminho pelo qual Nosso Pai São Bento entrou no céu, o caminho pelo qual devemos aí chegar também e que nos oferece a maior segurança.”
“O texto da Regra não é o texto de um livro qualquer, é o programa de perfeição que devemos realizar; é o programa de Deus. É o verdadeiro programa do amor que devemos a Nosso Senhor. É o código dos direitos de Deus e de nossos deveres.”
Este código é suficientemente detalhado? - “A Regra trata de nossa vida de modo detalhado. Desafio qualquer um a descobrir no dia beneditino um quarto de hora que não esteja em comunicação, em união com a Regra. Nosso Pai São Bento não deixou nada de lado, nem mesmo as coisas mais transitórias! A refeição? Pensa que ele a esquece? De maneira alguma! Ele lhe fixa a hora, a disposição. Ele fixa o acordar, o deitar, o trabalho, o que ele chama de leitura e que é em realidade a meditação da Sagrada Escritura. Ele não esquece nada. Quando aparecermos diante de Deus, seremos indesculpáveis, porque não há nenhum detalhe de nossa vida que não esteja previsto na Regra, sobre o qual a Regra passe em silêncio. Todos os assuntos que possam ocorrer a nosso espírito, que interessem à salvação, à santificação de nossa alma, são tratados na Regra, e de modo admirável. Não há um minuto no dia que possa escapar à Regra.”
“Trate-a com respeito. Diga a si mesmo: Serei julgado por esta Regra. Convém que me esforce por praticá-la. É necessário que eu seja uma alma de Regra. A Regra será a medida com a qual serei medido no juízo final.”
“A Regra, para um filho de São Bento, é, então, preferível mesmo à Bíblia.” Por quê? “O código monástico é para ele a explicação da Sagrada Escritura.”
Qual a finalidade da Regra? “São Bento, sua Regra e sua Ordem estão na Igreja  para formar verdadeiros adoradores de Deus. Todos os detalhes de nossa vida monástica a isso se referem como a um fim dominante e único. Esta visão é a única que pode explicar toda a Regra em seu conjunto, em seus detalhes e sobretudo em seu espírito.”
“O cume da Regra é o amor perfeito.”
Como ela nos conduz até aí? “São Bento começa-o desde o Prólogo: “APRESSAI-VOS, CORREI, diz ele, NÃO TENDES TEMPO A PERDER.”[13] Não se trata de dissertar, de discorrer, de apreciar, de saborear, mas de combater e de marchar. É necessário marcar cada etapa do caminho por vitórias, por obras positivas. Seu estilo eminentemente marcial denota quanto o espírito dos Cecilii, seus ancestrais, havia passado para ele. Essa maneira ardente e guerreira de nos mostrar a virtude prova também que para ele a santidade consiste não em sentimentos, não em palavras, não em projetos, mas somente em atos, sempre em atos. Aí não há lugar para a fantasia. São Bento põe em destaque a ação, a ação militante aplicada ao trabalho que é ao mesmo tempo o mais necessário, o mais decisivo e o mais custoso: o trabalho contra o eu humano, contra a vontade e o julgamento próprios. “A TI, AGORA, QUEM QUER QUE SEJAS QUE, RENUNCIANDO ÀS PRÓPRIAS VONTADES... QUERES MILITAR SOB O CRISTO SENHOR...”[14]
“A Regra, eis a verdadeira Paixão do religioso, o verdadeiro martírio do religioso. Porque o martírio não é uma improvisação, exceto em certas circunstâncias particulares. O martírio é a doação total de si mesmo, de modo algum segundo a vontade do homem, mas segundo o programa de Deus: esse programa, Ele o consignou para nós na Regra de São Bento. A Regra pode pois ser para nós um martírio, não uma Paixão exuberante, mas uma Paixão silenciosa, modesta, muito ignorada, quotidiana, pela prática de virtudes obscuras, da humildade que consiste sobretudo em se apagar para deixar a Deus toda a glória.”
Ela nos mantém na humildade. “A Regra bem compreendida é um remédio contra o germe de loucura que todos os homem herdaram de Adão e Eva. O capítulo sétimo com seus doze graus de humildade, torna o espírito sadio e o põe em equilíbrio. Põe-se a cabeça no lugar submetendo-a a esse jugo abençoado da humildade obediente e da obediência verdadeiramente humilde, que nos faz abdicar do juízo próprio para acatar em tudo o dos superiores.”
Esse equilíbrio favorece nossos dons naturais... “Eles adquirem todo seu valor e todo seu poder. A Regra de São Bento, em sua simplicidade, fez germinar os talentos mais variados. O homem, sob a Regra, torna-se verdadeiramente “um homem”. Posso dizê-lo após uma tão longa experiência: a Regra possui, mais do que qualquer outro sistema, o segredo de formar homens, “viros”. Ela forma o caráter, dá equilíbrio e energia sob a orientação da graça, forja homens que são verdadeiros homens.”
A Regra torna o homem apto para todas as obras. “Quando compreendida e praticada em toda sua extensão, ela forma verdadeiros soldados de Cristo, aptos a auxiliar a Igreja e as almas, através de todo tipo de ministério e obras, capazes de prosseguir o trabalho de sua santificação pessoal em meio aos trabalhos do apostolado.”
De onde ela tira essa maravilhosa eficácia? “Nenhuma Regra apresenta o Código da doutrina cristã como a de São Bento: é o livro mais simples e, ao mesmo tempo, o mais importante. Sua superioridade vem de que é toda orientada para a santidade, através dos meios mais diretos e infalíveis. A Regra de São Bento é essencialmente um código de santidade.”

3. - O ABADE

São Bento escreveu em sua Regra: “CRÊ-SE QUE O ABADE OCUPA NO MOSTEIRO O LUGAR DE CRISTO, POIS QUE SE LHE DÁ SEU NOME: “ABBA”, QUER DIZER PAI.”[15] No pensamento de nosso Santo Legislador, o chefe da comunidade representa a divina paternidade do  Cristo Senhor e é investido dela. Os monges devem pois ver em seu Abade a realeza, o sacerdócio e a paternidade pastoral do Filho de Deus.” Quão grande é o Abade aos olhos da fé! “A autoridade é Deus.”
“Numa época e num país em que o princípio da autoridade está completamente abalado e quase derrubado, devemos a todo preço elevá-la entre nós e considerá-la, segundo a doutrina de nossos Padres e da Igreja, como a base mais indispensável e mais sagrada de nossa ordem social e de nossa santificação pessoal. Eis um princípio no qual não se toca jamais impunemente. Se a autoridade é abalada, por qualquer motivo que seja, a comunidade é abalada. O princípio da autoridade é fundamental.”
É necessário então habituar-se a ver Deus em seus superiores. “Os superiores são o sacramento da autoridade de Deus. Deve-se considerar a autoridade como o Santíssimo Sacramento:  “Fracto demum sacramento, ne vacilles, sed memento tantum esse sub fragmento quantum toto tegitur”. “Quando a hóstia é quebrada, não te perturbes. Lembra-te que Ele está tanto na parte como no todo”[16]. É necessário não se enganar sobre isso: na Igreja, a menor parcela de autoridade exercida por um superior de casa religiosa é a autoridade de Jesus Cristo Rei. É Ele.  Não é tal ou tal pessoa.  Daí vem o texto do Evangelho que São Bento cita no capítulo quinto da Regra[17], aplicando-o aos Superiores:  “Quem vos ouve, a mim ouve. Quem vos despreza, a mim despreza.”[18]
Como fazer na prática? - “Habituar-se a respeitar Nosso Senhor presente no Sacramento da autoridade, como se respeita Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento. Durante ao menos quatro anos, no começo de minha vida religiosa, a cada manhã, durante a ação de graças, eu adorava a Deus na pessoa de meus superiores ao mesmo tempo que O adorava na Eucaristia. Isso me foi muito salutar.” - Mas se formos tentados a ver o homem em nosso superior? - “Na pessoa dos superiores só temos a considerar uma coisa:  a autoridade vinda de Deus através da Igreja.”
É necessário então estar sempre do lado da autoridade. - “Os membros da comunidade são mais ou menos religiosos na medida em que são mais ou menos intransigentes quando se trata de sustentar a autoridade.” - Não se tem às vezes boas razões para se afastar dela? “O religioso que se afasta da autoridade aproxima-se do demônio. Se numa comunidade, algumas almas se desviam da autoridade, tornam-se estranhas à autoridade, elas não o fazem nunca, nunca, impunemente. É um começo de suicídio; a alma mata, começa a matar sua vocação. O resultado é infalível. Quando a alma perde a fidelidade à autoridade, ela perde tudo.” - Por quê? - “A autoridade tem Deus em si. Quem está contra a autoridade está pois com Satanás. O senhor despreza seu Superior; não é tal homem que é desprezado, mas a autoridade de Nosso Senhor.”
E a comunidade fica dividida - “A autoridade é um bem comum. Devemos todos conservá-la, sem exceção. Se todos os indivíduos concorrem para manter a autoridade, eles firmam a comunidade.”
“A autoridade deve ser soberanamente respeitada. Tudo, na comunidade, deve ser sacrificado para mantê-la.”
Quais são as características da autoridade do Abade? - “Ela é pastoral, monárquica, paternal. Pastoral, pois que ela tem por finalidade dirigir as almas: “Pasce agnos meos, pasce oves meas”[19]. Monárquica, porque ela emana de Deus. Paternal, porque a autoridade de Deus é paternal e a da Igreja também. Tais são as três características sobre as quais repousa o estado religioso e toda comunidade religiosa.”
O Pe. Muard explica em suas Constituições que nada deve escapar à autoridade do Abade, porque ele é “a cabeça de um corpo do qual todos os irmãos são os membros. E como o próprio da cabeça no corpo humano é governar, conduzir, formar todos os movimentos e todas as ações, e que, tudo se referindo a ela, não se passa nada de que ela não seja a origem e o princípio, é necessário também, numa comunidade bem regrada, que tudo se faça pelas ordens e na dependência do Superior, que ele disponha de todas as coisas para a utilidade geral e o bem dos particulares, designando a cada um suas ocupações e seus exercícios, que ele dirija suas consciências, que ele regule sua piedade, e que não haja nada sobre o qual não se estenda sua vista e direção. É isso que pensava São Bento quando declarou que o superior deve ocupar o lugar de Cristo no mosteiro, que ele tem tudo à sua disposição e que não há nada que não esteja submisso às suas ordens.”[20] “...São Bento concebe e define o Abade como a alma, a vida, o centro, o árbitro e o motor da família monástica.”
Conseqüentemente ele está obrigado a residir sempre no mosteiro. - “E permanecendo no mosteiro, ele deve se mostrar sempre acessível; a fim de que a toda hora do dia e da noite as almas que lhe são confiadas possam abordá-lo sem temor algum, com a confiança de encontrar sempre uma acolhida paternal e atenciosa.”
Seus irmãos abrir-lhe-ão também com facilidade suas almas. “O Abade só terá sobre cada um deles conhecimentos conjeturais e incertos, observa o Pe. Muard, se eles não tiverem o cuidado de lhe mostrar o fundo de seus corações, de lhe descobrir todos os movimentos e de lhe expor até suas menores dobras”. E ele estabelece que “todos os meses, os beneditinos darão conta ao Abade do estado de sua consciência, de sua mortificação, de seu trabalho intelectual e manual, do estado de sua saúde e das necessidades que eles possam ter.”[21] - “Não se verá nunca um monge sinceramente humilde e desejoso de adquirir a santidade que não seja fiel ao quinto grau da humildade assim como à constante direção.” - “O QUINTO GRAU DA HUMILDADE CONSISTE, diz São Bento, EM QUE POR UMA HUMILDE CONFIDÊNCIA NÃO SE ESCONDA A SEU ABADE NENHUM DOS MAUS PENSAMENTOS QUE SOBREVENHAM AO CORAÇÃO OU AS FALTAS COMETIDAS OCULTAMENTE”[22]. A seu Abade? Por que não a um padre de fora? - “Quando se sente desejos de fazer a direção fora, arrisca-se muito a agir por amor próprio. Temos necessidade de nos conhecermos a nós mesmos e de sermos conhecidos pelas pessoas encarregadas de nos dirigir. E para ser conhecido, é necessário viver junto.”
É obrigatório dizer tudo na direção? - “Se uma falta é secreta, pode-se dizê-la ou não. Há inteira liberdade. O direito dos Superiores é de servi-lo. O senhor não querendo; eles não o servirão. O senhor não a diz, ninguém lhe perguntará a respeito. Se é de seu interesse ter uma grande abertura de coração, os Superiores devem ser também extremamente delicados e eles o são! Eles devem respeitar a sua liberdade, como o próprio Deus a respeita. Mas diga tudo, tudo, a seu Pai. Seja para com ele como uma criança ingênua e simples, e faça isso por espírito de fé, vendo nele a autoridade do próprio Deus. Torne-se perfeito na abertura de alma e na simplicidade infantil para com ele. É um ponto da mais alta importância e do qual depende em grande parte sua santificação. Deus o quer.” - Podemos ficar incomodados, intimidados - “Quando experimentamos timidez, é a nós que devemos acusar.” - Ele brigou comigo, e eu sou susceptível - “Quanto mais os homens estão errados, mais são susceptíveis... e menos eles são capazes de suportar a verdade acerca deles mesmos. É duro advertir surdos voluntários, mostrar a luz a cegos voluntários!” - Temos, entretanto, necessidade de sermos repreendidos - “Em todas as personalidades há remendos a fazer”. - O senhor vai até esse ponto, decididamente, com seus filhos? - “O costume foi mantido quase unanimemente de se poder dizer a cada um o que lhe convém sem rodeios, nem precauções. Isso é proveitoso para eles.”
De outra parte, a unidade de direção faz a unidade da comunidade - “Se todos os indivíduos passam pela mesma direção, eles terão uma mesma formação, e a comunidade inteira será encaminhada na via que lhe convém melhor. O quinto grau da humildade basta, através da direção, para inculcar a unidade na marcha da comunidade. É um princípio de coesão. É o vínculo de coesão da comunidade. Que pode afinal fazer uma comunidade na qual a direção espiritual está ausente ou se reduz a nada? É um corpo desprovido de coesão e de homogeneidade, privado do vínculo mais necessário que é o vínculo espiritual. Este se estabelece, se mantém e dá frutos suaves de união, de paz e de harmonia pela prática assídua do quinto grau.”
Como o Abade deve exercer sua autoridade? - “Nenhuma hesitação possível na escolha entre a autoridade exercida com vigor e a autoridade exercida com fraqueza. A fraqueza é um princípio de ruína para a comunidade. O vigor, um princípio de incômodo e de sofrimentos para algumas pessoas (de caráter delicado, sensível; de espírito difícil de governar), mas o conjunto da comunidade ganha com isso. Porque sendo fundamental o princípio da autoridade, à medida que ela é exercida, mesmo com uma nuance de energia um pouco acentuada demais, a marcha da comunidade se mantém. À frente de cada grupo de monges e de monjas, é necessário haver chefes que não temam fazer uso da autoridade, pois a autoridade não é deles, mas de Deus. São Bento acreditava em sua autoridade, dela se servia segundo as necessidades de seus discípulos.” - E Nosso Senhor? - “Nosso Senhor não instituiu o sistema de cautelas. Ele não poupou nada. Os Apóstolos seguiram suas pegadas. Eles não esconderam nada, não diminuíram nada, não atenuaram nada. Ora, veja o que aconteceu: o mundo foi convertido.”
“É, portanto, necessário haver chefes que conduzam o combate da mesma maneira que nosso bem-aventurado Pai; que saibam orientar o combate, orientar a comunidade, orientar cada cabeça da maneira mais direta em direção à finalidade única: conquistar a semelhança com Jesus Cristo, estabelecer o império da graça sobre a natureza, da humildade sobre o orgulho e o amor próprio, da mortificação e da penitência sobre a sensualidade.”

4. - A COMUNIDADE

São Bento organizou a comunidade de acordo com o modelo da família - “Em sua constituição íntima, a vida monástica apresenta um ambiente inteiramente familiar, com a paternidade, a fraternidade, a expansão e a estabilidade. A reunião dos monges forma uma sociedade completa e autônoma. Os monges são como filhos em volta do pai. Não são nem estrangeiros, nem pensionistas, nem hóspedes, mas verdadeiros filhos de família. O mosteiro não é, portanto, uma simples residência, nem uma custódia[23], nem um convento transitório, mas uma verdadeira casa paterna, uma igreja estável por natureza e uma família completa. Quando uma alma entra em religião, ela só deixa a família natural para entrar numa família sobrenatural.”
A comunidade deve ser numerosa? - “Temos necessidade de ser numerosos e dispostos em abadias poderosas para cumprir dignamente o serviço do Opus Dei e o Apostolado. Aproveito todas as ocasiões para gravar este princípio no espírito de meus filhos: permanecer juntos, formar uma abadia de escol, muito disciplinada, muito solícita, muito monástica, numerosa, podendo fornecer homens para o exterior sem correr o risco de se deixar deformar no interior; um mínimo de cinqüenta padres, e um esforço constante para chegar a uma boa centena com cerca de quarenta irmãos conversos” - Se outra fundação se apresenta... - “Que as comunidades renunciem a toda fundação e a todo empreendimento até que elas tenham cada uma um colégio de cinqüenta padres ao menos, um noviciado sério e uns vinte conversos conhecendo diversos ofícios.”
Comunidades tão numerosas podem manter a unidade? - “Não negamos que não haja nunca pequenas divergências. As divergências, a variedade, Deus as quer. Cada um de nós tem seu temperamento, seu caráter; ninguém está isento de defeitos, de faltas.” - Como unir esses elementos diversos? - “Deve-se realizar a união dos espíritos quanto à maneira de conceber o respeito à autoridade, a prática da Regra, quanto às verdades de fé, quanto às apreciações gerais que devem dirigir o movimento intelectual da comunidade. Além da união dos espíritos, é necessária a união dos corações e das vontades, é necessário o entendimento com a autoridade e o entendimento fraterno.” - E se os corações, as vontades estivessem unidos sem que os espíritos o estivessem? - “Então, a graça que se deveria pedir a Deus é que Ele estabelecesse a união dos pensamentos como Ele já estabelecera a união dos corações e das vontades. Do contrário, haveria aí um fermento escondido e sempre pronto a irromper em críticas, recriminações, disputas, murmurações e, finalmente, em graves divisões.”
Na prática, como realizar esta união? - “Não há nem mal, nem perigo, nem conseqüências a temer, quando, numa questão suscetível de quatro ou cinco soluções diversas, colocamo-nos inteiramente de acordo com a autoridade na solução que ela escolheu.”
“O que fará a força e a beleza da comunidade, é a união de espírito, de vontade e de sentimentos que reinará entre todos. Mas esta união só será profunda e durável  se todos estiverem muito forte e sobrenaturalmente unidos a seu Abade.”

5. - O NOVICIADO

Esta união depende, em parte, da escolha e da formação dos indivíduos.  Eis porque S. Bento recomenda: “QUE NÃO SE CONCEDA FÁCIL INGRESSO” ao postulante.[24] - “A facilidade das entradas faz a facilidade das saídas e prepara a multiplicação destas.”
Mas se se deseja o número... - “Os superiores e a comunidade devem desejar bem mais a qualidade que o grande número dos indivíduos.” - É necessário então “PROVAR OS ESPÍRITOS” como o recomenda São Bento.[25] - “A Igreja exige que os candidatos sejam provados, não sejam poupados, nem solicitados para ficarem.”
Que qualidades deve ter o postulante? - “Prestar-se-á a maior atenção ao espírito e ao julgamento do postulante, mas sobretudo dos que se apresentam para o coro, e ainda mais daqueles que são brilhantes e distintos. A experiência mostra que esse é um ponto capital.”
O senhor exige uma saúde forte? - “Os indivíduos com uma saúde débil, sobretudo em nossos dias, não devem ser rejeitados à primeira vista. Em nenhuma parte nosso Glorioso Pai indica a saúde robusta como uma condição indispensável para a admissão em nossa Ordem. No entanto, é necessário exigir o equilíbrio orgânico e, sobretudo, uma cabeça calma e sólida.”
O senhor leva em conta as aptidões? - “A questão das aptidões é tão supérflua como secundária. Hoje em dia preocupa-se demais com isso. Em lugar de perguntar com simplicidade a Deus o que Ele quer, muitas almas consultam principalmente seus gostos pessoais, científicos e artísticos e a isso subordinam, como a uma coisa muito importante, a escolha de sua vocação e de seu gênero de vida. Para uma alma cristã essa questão é simplesmente secundária. Ademais, atualmente como no passado, os trabalhos de todo gênero não abundam nos claustros beneditinos?”
Nosso Pai São Bento quer somente que se examine se o postulante “PROCURA VERDADEIRAMENTE A DEUS, SE É SOLÍCITO PARA COM O OFÍCIO DIVINO, A OBEDIÊNCIA E OS OPRÓBRIOS”[26]. - “Ele compreende que se entra na vida religiosa para se humilhar, para servir e não para ser servido? Se ele o compreende é um sinal de vocação. Se ele não o compreende, convém admiti-lo? Sim, mas por misericórdia, desde que ele queira se converter acerca desse ponto importante. Se se percebe que suas pretensões são calculadas e mostram alguma tendência a se realizarem na prática, evitem recebê-lo. Admitir em comunidade um orgulhoso que quer alimentar seu amor próprio, seria introduzir algo de satânico na comunidade.”
A piedade é um sinal de vocação ? - “Pode-se temer tudo de uma alma que se diz piedosa, mas que é escrava de sua vontade e de seu julgamento próprio .”
E a obediência ? - “A boa e verdadeira obediência basta, apesar de disposições imperfeitas, para denotar a vocação.”

6. - OS VOTOS

Um ano de noviciado permite julgar acerca das disposições do indivíduo. Então, se a comunidade o admite, ele pronuncia, por três anos, os três votos de religião: pobreza, castidade e obediência. À expiração desse prazo, tendo sido a comunidade novamente consultada, ele pronuncia os votos solenes que o consagram definitivamente a Deus e o tornam membro da família monástica. A fórmula desses votos se encontra na Regra de São Bento: “PROMITTO STABILITATEM, CONVERSIONEM MORUM MEORUM ET OBEDIENTIAM SECUNDUM REGULAM”. “PROMETO A ESTABILIDADE, A CONVERSÃO DE MEUS COSTUMES E A OBEDIÊNCIA SEGUNDO A REGRA.”[27] “Desde o século VI, essa fórmula tão breve em seus termos, tão profunda e tão absoluta em seu sentido, não sofreu nenhuma modificação.”

1. Estabilidade

“Em primeiro lugar a estabilidade, pela qual, no que depende de si mesmo, o monge está fixado na comunidade que ele escolheu e adotou.”
“A família repousa sobre a estabilidade. O Pai e a Mãe são pai e mãe sempre. Só a morte pode romper o exercício de sua autoridade. Os filhos serão filhos sempre. O voto de estabilidade nos fixa sob a autoridade do Abade até a morte. Ele une para sempre o soldado de Cristo aos chefes e aos companheiros de armas uma vez escolhidos.”
Quais são as vantagens da estabilidade? - “Mantendo-se as mesmas pessoas em presença umas das outras, a estabilidade lhes dá  uma implacável penetração mútua dos menores defeitos, que é pouco cômoda para o amor-próprio, mas preciosa  para o bem de cada um e para a ordem geral. Assim se acham corrigidas duas tendências que se revelam quando falamos de nós mesmos: primeiramente, consiste em atenuar, disfarçar o melhor possível, tudo o que é contra nós; em segundo lugar, fazer sobressair artisticamente tudo o que é a nosso favor. São Bento estabeleceu o voto de estabilidade contra essas duas tendências. É um remédio contra as ilusões.”- E contra a inconstância... - “Tira as ocasiões de variação, de inconstância. Concentra as diferentes fases do combate num mesmo lugar, sob o mesmo comando, diante das mesmas testemunhas, no manejo das mesmas armas, todas escolhidas por um mestre como São Bento. Assim, pela estabilidade, o combate espiritual é reduzido a uma espécie de duelo em campo cerrado, e este se prosseguirá sem descanso, o que é necessário, pois durará toda a vida; é necessário conduzi-lo com perseverança. Ora, se nas obras importantes e trabalhosas, a estabilidade dá o seguimento indispensável, ela é bem mais necessária num trabalho de santificação, que deve durar a vida inteira. Do ponto de vista instrumental, ela é decisiva. Ela fixa, prolonga, une à ação do tempo e da continuidade, a ação da graça. A perseverança é a melhor tradução do voto de estabilidade.”
Esse engajamento não é difícil de manter ? - “Não. A estabilidade produz, pouco a pouco, o equilíbrio das faculdades, a paz da consciência, uma visão muito mais clara de si mesmo. Ela estabelece as almas na calma e no silêncio interior, num estado que as mantém sem cessar à disposição do Espírito Santo. “Non in commotione Dominus”[28]. É por isso que ela é praticada sem dificuldade.”
Então, ela é necessária? - “Tocar no voto de estabilidade, é demolir a Regra. Pode-se notar através do curso da história monástica que onde a estabilidade não existe, os desenvolvimentos são muito difíceis e, ainda assim, momentâneos. Ao contrário, logo que essa virtude intervém, tudo é possível. Mosteiros, pouco numerosos aliás, não compreendendo a importância da estabilidade, não a aplicando, ficaram em situações incertas, e foi preciso que o conjunto de religiosos de uma província interviesse para remediar a situação. Os mosteiros isolados se esgotaram. Mas, onde se manteve a estabilidade com toda a sua força, os mosteiros floresceram, apesar das cegueiras do período contemporâneo dos séculos XVIII e XIX.”

2. Conversão de Costumes

“É incontestável que o voto de conversão de costumes é mais elevado que o de estabilidade. “Não é pouca coisa, diz a Imitação, viver no Mosteiro e aí perseverar fielmente até a morte.”[29] E, no entanto, é coisa bem maior ainda exercer, durante esse tempo de perseverança, seu voto de conversão de costumes.”
Que significa esta expressão? - “Discutiu-se muito sobre o alcance desta expressão “conversão de costumes”. Pouco importa! Tomemo-la na simplicidade do termo. É a obrigação de tender sem cessar a afastar-se do mal e aperfeiçoar-se no bem.”
Na prática, a que obriga esse voto? - “1- Ele exclui, com mais força do que o decálogo, o pecado mortal, o pecado venial, o apego ao pecado, a negligência em relação aos defeitos.”
“2- Ele pede o uso mais perfeito possível do sacramento da penitência e, por conseqüência, o exame de consciência sem ilusão, o zelo em combater as pequenas faltas, o conhecimento exato do que  exige a pobreza, a castidade, a obediência, a estabilidade, a fim de praticar as virtudes que são o objeto desses votos com todas suas delicadezas.”
Esse voto é então diretamente oposto ao pecado. - “Desviar-se do pecado é o começo da conversão.  A conversão de costumes é pois, antes de tudo, a abolição do pecado. Ela começa na consciência que deve ser regrada, esclarecida sobre os verdadeiros princípios e que não deve confundir o mal com o bem, desculpar suas faltas. Que não haja ilusões.”
É a primeira etapa. Em seguida... “Ela obriga a tender à perfeição, a progredir todos os dias. 1- Para não se lhe opor, é suficiente ser fiel à Regra em geral. 2- Para atingir o fim desse voto, devemos nos compenetrar não somente da letra, mas do espírito da Regra, não podemos nos contentar somente por não estarmos recuando, mas devemos avançar e trabalhar positivamente para eliminar os defeitos. Não se trata aqui de uma veleidade de combate contra os defeitos, de algumas resoluções abandonadas logo: a luta deve ser determinada (não há compatibilidade entre a  conversão de costumes e tudo o que se chama negligência, tibieza, à vontade, espírito do mundo e procura de si: a primeira conversão consiste em separar-se de si mesmo), a luta deve ser determinada, começada, continuada com perseverança até a eliminação dos defeitos.”
“O ponto em que é necessário colocar o esforço inicial: as disposições interiores; as intenções em primeiro lugar; em seguida, os movimentos tão variados que se passam no íntimo de nossa alma e que só Deus pode discernir. A escolha dos pensamentos, das idéias que é necessário entreter ou afastar, o desaparecimento das incertezas, das hesitações, das vontades que não estão suficientemente definidas (nossa marcha para Deus deve ser direta, firme, simples e contínua). Oh! sim, a conversão de costumes assegurada na região dos pensamentos, dos sentimentos, das disposições em relação a Deus primeiramente e, em seguida,  em relação ao próximo.”
Chega-se assim à eliminação dos defeitos... “E a eliminação dos defeitos prepara a aquisição das virtudes, na qual consiste a construção do edifício espiritual.”
Chega-se à conversão perfeita? - “A conversão simples e perfeita é, com o ódio e a expiação do pecado, a adesão perpétua a Deus num estado de luta para manter o seu reino e reagir contra tudo que a isso se oponha. Assim entendida, a conversão designa e pede a prática de toda a Regra.”
De modo que esse voto tende a nos introduzir na vida mística. - “Há uma conexão íntima de natureza entre a vida mística e o voto de conversão de costumes. Na vida mística a alma move-se e deixa-se mover principalmente pela iniciativa divina. A alma se entregou sem reserva, e Deus, encontrando essa fidelidade, a conduz aonde Ele quer. O voto de conversão de costumes é o estímulo às almas a nunca parar, a não pôr limites à ação da graça.”
“Ora, à medida que ela avança, ela vê, da maneira mais clara, que ela é indigna, que  não fez nada, que Deus é muito bom por suportá-la. Ela adquire d’Ele um conhecimento de tal modo resplandecente que, à luz da santidade divina, ela vê, nos seus atos de virtude, sobretudo o que não é e o que deveria ser, o que seria conveniente para que ela pudesse apresentar-se diante da face do Senhor. E com essa visão que lhe dá a aproximação de Deus, nascem estímulos poderosos para fazer sempre mais.”
“Na vida mística, chega sempre um momento onde a alma está menos preocupada, por assim dizer, em se santificar, do que em se imolar a Deus. Mas ela já sabe que a imolação, para ser digna de Deus, deve ser acompanhada de uma grande santidade. Como querer que a alma deixe de progredir nessa escola do calvário? O voto da conversão de costumes, considerado desse ponto de vista, à luz da vida mística, aparece como a mais bela homenagem que uma criatura pode prestar a seu Deus. Assim considerado, ele ornamenta com seu reflexo magnífico os outros votos, que então são elevados ao seu grau mais alto. O voto de obediência é praticado de tal maneira que a vontade do homem se funde completamente na de Deus. A pobreza é vivida à maneira de Nosso Senhor Jesus Cristo: a mais completa indiferença com relação aos bens desse mundo. A castidade é observada a ponto de espiritualizar o que há de mais material.”
“Assim realizado, o voto de conversão de costumes reflete-se, resplandece no amor. Ele se confunde, de certo modo, com o amor. O amor conduz a alma a desejos cada vez mais vivos de virtude e de santidade: o voto de conversão de costumes mantém no coração, na vontade, um desejo insaciável de combate e de vitória. A alma se lança seguindo Nosso Senhor. “Exsultavit ut gigas ad currendam viam.”[30]
Existem, pois, vários graus na conversão. - “Converter-se do mal ao bem, eis o voto no grau inicial. Depois, converter-se do bem ao melhor, do melhor ao perfeito, do perfeito ao heróico.”
“Desse caminho luminoso a percorrer, todas as etapas são distintas, determinadas, descritas no texto da Regra e por um dos maiores Doutores e Diretores de Santidade prática, o Bem-Amado de Deus, Bento. Esta Regra, obra-prima de legislação monástica e social, é também o código mais bem combinado, o mais simples e o mais completo do ascetismo cristão. A conversão que ela exige, em virtude do voto, ela a toma no seu grau inicial, que é a ruptura com o pecado, para conduzir “ ÀQUELE AMOR DE DEUS QUE, SENDO PERFEITO, EXPULSA O TEMOR”. “CARITATEM ILLAM QUAE PERFECTA FORAS MITTIT TIMOREM.”[31]

3. Obediência

“Na prática e no detalhe, a conversão de costumes se resume na obediência que é o objeto do terceiro voto e que conduz à abnegação total de si mesmo.”
“Não há nenhum estado em que a obediência não deva interferir, visto que é ela que resume a vida de Nosso Senhor e que é a lei fundamental da Igreja e de todas as almas que caminham nas vias da salvação. Mas, no próprio seio da Igreja, o gênero de vida mais concentrado na obediência é incontestavelmente o estado monástico com a Regra que lhe é própria. Veja-se somente o capítulo cinco da Regra. É a fusão do “eu” humano com a vontade de Deus manifestada pela autoridade legítima, nos limites de suas atribuições e sempre segundo a Regra.”
“A santidade se resume nisto: nossa vontade se submetendo tão bem e com tanta constância à vontade de Deus, que não se possa encontrar mais nada em nós fora dessa vontade dominando a natureza, em todos os seus detalhes. É a realização desta palavra de Isaías: “Vocaberis: Voluntas mea in ea”[32]. O termo da santidade é a obediência. É preciso que tudo se faça na obediência. A obediência é Deus em nós e nós em Deus.” - O grau de santidade mede-se, pois, pelo grau de obediência. - “Um beneditino vale o que vale sua obediência.”
Se pensássemos nisso, seríamos exatos na obediência. - “É preciso ser muito delicado na obediência. A vontade do religioso constitui a matéria do holocausto que ele põe sobre o altar quando faz profissão. Logo, por pequenas que sejam as faltas contra a obediência, elas se tornam uma rapina no holocausto.”
No entanto, a obediência custa! - “Nossa vontade própria é tão pegajosa! Trazemos em nós uma coleção de resistências que é preciso sacrificar a Nosso Senhor até o nosso último suspiro.”
É preciso ainda querer obedecer com sinceridade. - “Quer-se obedecer, pretende-se obedecer, mas, por mil voltas e com belas e piedosas invenções, pensa-se enganar a Deus e retoma-se para si toda a vontade e todo o julgamento dos quais lhe havíamos feito um holocausto eterno. Esses são fantasmas de religiosos, aparências de pessoas que querem a santidade, mas que a querem em poesia, em imaginação.” - É acaso possível tornar-se um religioso dessa espécie? - “É suficiente, para isso, entrar na via dos “mas” e dos “se”. Perde-se tempo conversando consigo mesmo. Cansa-se a bondade dos melhores superiores que não compreenderão mais nada, que decidirão dizer: “Faça como quiser!” Que tristeza haver entrado em religião para obedecer e não obedecer.”
É preciso obedecer sem demora. - “Pensar dez vezes antes de obedecer não é olhar para trás e começar já a sua própria derrota? O atraso transforma-se, muitas vezes, em omissão.” - Mas, e se tivermos uma razão para demorar?- “Por que esperar quando Deus fala, senão porque nos preferimos a Ele?” - “O PRIMEIRO GRAU DA HUMILDADE, escreve com efeito S. Bento, É A OBEDIÊNCIA SEM DEMORA. ESTA CONVÉM ÀQUELES QUE ESTIMAM NÃO HAVER NADA MAIS CARO QUE  CRISTO.”[33] - “Não se tem a virtude da obediência, senão quando os atos dela são feitos com prontidão. Se há prontidão da obediência, a alma é fervorosa.”
Isto supõe uma grande renúncia. - “A obediência é a espada da renúncia penetrando até o mais íntimo do nosso ser, para nos retirar de nós mesmos.”
“A obediência é o dom da alma a Deus. De outro modo, dê quantos presentes quiser a Deus e não lhe terá dado nenhum. Quando Nosso Senhor nos diz: “Fili, praebe cor tuum mihi”. “Meu filho, dá-me o teu coração”[34], é como se nos dissesse: “Dá-me tua vontade”, pois o fundo mais íntimo do coração consiste na vontade. A própria virgindade é pouca coisa diante de Deus quando não é coroada pela obediência e pela humildade.” - Nada vale mais que nossa obediência, porque nada mostra melhor a Deus o nosso amor. - “Deus nos pede o amor provado pela submissão.”
É preciso então oferecer-lhe uma obediência sem limites. - “Todo o esforço da santificação consiste em sacrificar sua vontade profunda por uma obediência universal, constante, tanto interior como exterior.”
O voto nos pede tudo isso. - “Para guardar estritamente o voto, é suficiente não elevar-se deliberadamente contra uma ordem formal e expressa. Mas deve-se desejar mais. Não desejemos guardar somente o princípio da obediência, é preciso abraçar toda a obediência; não obedecer somente a uma ordem, mas também a um conselho, a um desejo expresso ou simplesmente adivinhado, pensando que é mais perfeito obedecer a um conselho do que a uma ordem, a um desejo do que a um conselho, a um desejo adivinhado do que a um desejo expresso. O religioso que compreende sua vocação não deve se limitar a guardar o princípio da obediência, mas aplicar-se a ser fiel a ela nas menores nuances. O monge deve formar seus pensamentos, suas apreciações interiores, seus sentimentos sobre os princípios estabelecidos e deles se penetrar totalmente.”
Os dons naturais são apagados pela obediência assim compreendida? - “O esplêndido relevo com que se destacam através da história as personalidades tão variadas dos santos e santas da Ordem Beneditina prova bem que a obediência, longe de anulá-los, leva a seu mais alto grau de perfeição os dons naturais recebidos de Deus. Se o grão de trigo humano cai em terra de obediência para aí morrer em honra de Deus, torna-se então capaz de frutificar com maravilhosa abundância.” - Como ela opera essa maravilha? - “A obediência tem uma recompensa imediata: a tranqüilidade de espírito.” - O espírito tranqüilo é lúcido. - “Nós já não somos muito esclarecidos nesta terra. E quando nos pomos a seguir nosso próprio espírito, então, é a noite completa.” - Ao contrário, há luz quando seguimos o espírito de Deus. - “Quem abdica da sua própria sabedoria encontra a de Deus.”
O sacrifício do julgamento é difícil de realizar? - “O sacrifício do julgamento não consiste em aniquilá-lo, nem em suprimi-lo, mas em submetê-lo para servir-se dele com mais segurança, conformando-o com o de Deus, manifestado pelos superiores.”
Deixar-se conduzir por Deus. - “Se os homens quiserem ser justos, que eles se deixem conduzir. Nada é tão temível como a iniciativa humana pessoal em todo tipo de coisas e, sobretudo, na maneira de se conduzir. Ora, assim começam todas as suas faltas: eles resolvem conduzir-se a si mesmos.” - Então as paixões os conduzem. - “Nosso escudo contra as paixões é a docilidade. A sã e verdadeira liberdade acha-se na obediência sem demora, a qual exclui todas as escravidões, quaisquer que sejam.”
“Com a obediência, não há nada a temer: a alma fica numa fortaleza protegida de todos os lados. Por quê? Porque a obediência é a vontade de Deus posta em prática sem condições, sem discussão, sem “se”, sem “mas”: Vós quereis isto, meu Deus? então será isto!”
É suficiente querer? - “É fácil dizer ‘a obediência’; mas que grande virtude! É necessário todo o tempo da vida religiosa para adquiri-la. A obediência e a santidade são uma coisa só.”
“Obedecer a Deus, mas como a um Deus.”

4. Pobreza

Os beneditinos não mencionam a pobreza  quando pronunciam seus votos solenes... “porque a pobreza é essencial ao estado de perfeição.” Pelo fato de se estar no estado de perfeição, está-se obrigado à pobreza. - “O voto de pobreza tem a importância de um alicerce;  sem ele, o estado religioso não existe, é impossível chegar à perfeição. Por quê? “Si vis perfectus esse, vade, vende omnia et da...”[35]
Em que ele consiste? - “É o engajamento sagrado pelo qual nos despojamos de toda liberdade na disposição dos bens deste mundo. Doravante não se tem mais a propriedade deles. Não se dispõe de nada, “NIHIL OMNINO NIHIL”[36], diz São Bento, NEM MESMO DO SEU PRÓPRIO CORPO. É a nudez do crucifixo.”[37]

5. Castidade

O voto de castidade é igualmente essencial ao estado religioso; sem ele não há vida religiosa. Como o voto de pobreza, ele está pois implicitamente compreendido no voto de estabilidade, de conversão de costumes e de obediência.
Veja-se a sobriedade de Nosso Pai São Bento: “CASTITATEM AMARE”[38]. Essa sobriedade é um ensinamento para os monges. A castidade é talvez antes uma resultante do que uma virtude distinta, uma resultante da humildade e, sobretudo, da obediência. São Pedro diz: “Animas vestras castificantes in obedientia caritatis”. “Tornai vossas almas castas pela obediência”[39]. As três fontes da castidade são pois: a humildade, a obediência, mas, antes de tudo, a Obra de Deus (Ofício Divino). O Opus Dei, desde a primeira palavra até a última, no seu texto, nas suas cerimônias, nas suas próprias melodias, é uma semente de pureza angélica: tudo nele vem do mundo angélico, tudo nele faz voltar a esse mundo.
A castidade não é um duro sacrifício? - “A castidade é um cativeiro de tal modo doce que após tê-lo experimentado não se pode viver sem ele, sem querer que ela impere cada vez mais. Essa felicidade da castidade é:
1 - para a inteligência: a pureza, a acuidade, a penetração do olhar.
2 - para a vontade: o vigor, a força, uma têmpera especial.
3 - para o coração: a independência. O coração é terno, penetrado de humildade, dotado de uma sensibilidade muito especial. A natureza humana é violentada, desonrada, ela não é mais ela mesma, quando falta a castidade, pois a castidade é o domínio da alma sobre os sentidos.”
“Estejamos dispostos a dar nossa vida antes do que cometer, nesse ponto, a mais leve falta. Ela é ou não é. É preciso que ela apareça em sua integridade, que reine sobre a alma, sobre o corpo, na conduta interior.”
São Bento recomenda: “CASTITATEM AMARE”[40]. “Amar a castidade como Deus a ama. Amá-la de uma maneira absoluta.”

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