segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Fioretti de São Francisco; capítulos 40, 41, 42, 43, 44, 45.




Capítulo 40
Do milagre que Deus fez quando S. Antonio, estando em Rímini, pregou aos peixes do mar

Querendo Cristo bendito demonstrar a grande santidade do seu fidelíssimo servo S. Antônio, e como devotamente devia ser ouvida sua pregação e sua doutrina santa, pelos animais irracionais, uma vez entre outras, isto é, pelos peixes, repreendeu a insensatez dos infiéis heréticos, como antigamente no Antigo Testamento, pela boca da jumenta, repreendera a ignorância de Balaão.

Pelo que, estando uma vez S. Antônio em Rímini, onde havia grande multidão de heréticos, querendo reduzi-los ao lume da verdadeira fé e ao caminho da verdade, por muitos dias lhes pregou e disputou sobre a fé cristã e a santa Escritura: no entanto eles não consentindo em suas santas palavras, e mesmo como endurecidos e obstinados não querendo ouvilo, S. Antônio um dia por divina inspiração dirigiu-se à foz do rio, junto do mar, e estando assim na praia entre o mar e o rio, começou a dizer a modo de prédica, da parte de Deus, aos peixes: "Ouvi a palavra de Deus, vós, peixes do mar e do rio, pois que os infiéis heréticos esquivam-se de ouvi-la". E dito que foi, subitamente aproximou-se dele na praia tal multidão de peixes grandes, pequenos e médios, como nunca naquele mar e naquele rio foi vista outra multidão tão grande, e todos tinham a cabeça fora da água e todos estavam atentos para a face de S. Antônio e todos em grandíssima paz e mansuetude e ordem: porque na frente e mais perto da praia estavam os peixinhos menores e atrás deles estavam os peixes médios; depois ainda mais atrás, onde era a água mais profunda, estavam os peixes maiores.

Estando pois em tal ordem e disposição colocados os peixes, S. Antônio começou a pregar solenemente e a dizer assim: "Meus irmãos peixes, muito obrigados estais, segundo a vossa possibilidade, de agradecer ao vosso Criador que vos deu tão nobre elemento para vossa habitação, porque, como for do vosso agrado, tendes água doce e salgada; deu-vos muitos refúgios para fugirdes das tempestades; deu-vos ainda elemento claro e transparente e cibo pelo qual podeis viver. Deus vosso Criador cortês e benigno, quando vos criou, deu-vos como mandamento de crescerdes e multiplicardes, e deu-vos a sua bênção; pois, quando foi do dilúvio geral, todos os outros animais morrendo, a vós somente Deus conservou sem dano. E ainda vos deu barbatanas para irdes aonde for do vosso agrado.

A vós foi concedido por ordem de Deus conservar Jonas e depois do terceiro dia lançá-lo em terra são e salvo. Oferecestes o censo a Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual como pobrezinho não tinha com que pagar. Depois servistes de alimento ao eterno rei Jesus Cristo antes e depois da ressurreição, por singular mistério. Pelas quais coisas todos muito deveis louvar e bendizer a Deus que vos deu tantos e tais benefícios, mais do que às outras criaturas". A tais e semelhantes palavras e ensinamentos de S. Antônio começaram os peixes a abrir as bocas e inclinar as cabeças e com estes e outros sinais de reverência, segundo o modo que puderam, louvaram a Deus.

Então S. Antônio, vendo tanta reverência dos peixes para com Deus Criador, rejubilando-se em espírito, em alta voz disse: "Bendito seja Deus eterno, porque mais o honram os peixes aquáticos do que os homens heréticos e melhor escutam a sua palavra os animais do que os homens infiéis". E tanto S. Antônio mais pregava quanto a multidão dos peixes mais crescia e nenhum se partia do lugar que ocupara. A este milagre começou a acorrer o povo da cidade, vieram mesmo os sobreditos heréticos. Os quais, vendo milagre tão maravilhoso e manifesto, compungidos em seus corações, todos se lançaram aos pés de S. Antônio para ouvir-lhe a prédica.

Então S. Antônio começou a pregar sobre a fé católica, e tão nobremente pregou, que todos aqueles hereges converteu e os fez voltar à verdadeira fé cristã; e todos os fiéis ficaram com grandíssima alegria confortados e fortificados na fé. E feito isto S. Antônio despediu os peixes com a bênção de Deus e todos se partiram com maravilhosos atos de alegria e do mesmo modo o povo.

E depois S. Antônio esteve em Rímini por muitos dias pregando e fazendo muito fruto espiritual de almas.

Em louvor de Cristo. Amém.

Capítulo 41
Como o venerável Frei Simão livrou de uma grande tentação um frade,
o qual por esta razão queria sair fora da Ordem

No princípio da Ordem, vivendo S. Francisco, veio à Ordem um jovem de Assis, o qual foi chamado Frei Simão, ao qual Deus adornou e dotou de tanta graça, e de tanta contemplação e elevação de mente, que toda a sua vida era um espelho de santidade, segundo ouvi dos que por muito tempo estiveram com ele. Este raríssimas vezes era visto fora da cela e, se algumas vezes estava com os irmãos, sempre falava de Deus.

Nunca tinha aprendido gramática e no entanto tão profundamente e tão altamente falava de Deus e do amor de Cristo, que as suas palavras pareciam palavras sobrenaturais. Pelo que numa tarde, tendo ido à floresta com Frei Tiago de Massa para falar de Deus e falando dulcissimamente do divino amor, esteve toda a noite naquele falar; e pela manhã lhes parecia ter passado pouquíssimo tempo segundo me narrou o dito Frei Tiago. E o dito Frei Simão tinha em tanta suavidade e doçura do Espírito Santo as divinas iluminações e visitas de Deus, que freqüentes vezes, quando as sentia vir, deitava-se no leito; porque a tranqüila suavidade do Espírito Santo requeria dele não somente o repouso da mente, mas também o do corpo.

E nestas tais visitas divinas ele era muitas vezes arroubado em Deus e ficava todo insensível às coisas corporais. E uma vez em que estava assim arroubado em Deus e insensível ao mundo, ardia dentro do divino amor e não sentia nada de fora com os sentimentos corporais; um frade, querendo fazer experiência e ver se era como parecia, foi e levou um carvão em brasa e lho pôs no pé nu; e Frei Simão nada sentiu e não ficou com sinal nenhum no pé, não obstante ter estado aí por muito tempo e ter-se apagado por si mesmo.

O dito Frei Simão, quando se punha à mesa, antes de tomar o cibo corporal, tomava para si e dava o cibo espiritual, falando de Deus. Por cujo devoto falar se converteu uma vez um jovem de S. Severino, o qual era no século um jovem vaníssimo e mundano e era nobre de sangue e multo delicado de corpo. E Frei Simão, recebendo o dito jovem na Ordem, guardou consigo as suas vestes seculares; e ele estava com Frei Simão para ser instruído nas observâncias regulares. Pelo que o demônio, o qual procura estropiar todo bem, pôs sobre ele tão forte aguilhão e tão ardente tentação da carne, que por nenhum modo ele podia resistir.

Pela qual coisa ele se foi a Frei Simão e disse-lhe: "Restitui-me as vestes que trouxe do século, porque eu não posso mais suportar a tentação carnal". E Frei Simão, tendo grande compaixão dele, disse-lhe: "Assenta-te, filho, aqui um pouco comigo". E começou a lhe falar de Deus de forma que toda a tentação se partiu; e depois de certo tempo voltando a tentação, ele pedindo-lhe as vestes, Frei Simão a repelia com o falar de Deus.

E isto acontecendo muitas vezes, finalmente uma noite o assaltou tão forte a dita tentação, mais do que soía, que por coisa nenhuma deste mundo não podendo resistir foi-se a Frei Simão, pedindo-lhe por tudo as vestes seculares, porque de modo nenhum podia ficar. Então Frei Simão, como costumava, o fez sentar-se ao seu lado e falando-lhe de Deus, o jovem encostou a cabeça no peito de Frei Simão por melancolia e tristeza. Então Frei Simão, pela grande compaixão que dele tinha, levantou os olhos ao céu e rogando a Deus devotíssimamente por ele, foi arrebatado e ouvido de Deus; pelo que, voltando ele a si, o jovem sentiu-se de todo livre daquela tentação como se nunca a tivesse sentido. Sendo assim mudado o ardor da tentação em ardor do Espírito Santo, porque ele se havia encostado ao carvão aceso, isto é, a Frei Simão, inflamou-se todo no amor de Deus e do próximo; de tal modo que, tendo sido preso uma vez um malfeitor a quem deviam tirar ambos os olhos, ele por compaixão se dirigiu ousadamente ao reitor em pleno conselho e com muitas lágrimas e orações devotas pediu que lhe tirassem um olho e ao malfeitor outro, para que ele não fosse totalmente privado da vista.

Mas vendo o reitor com o conselho o grande fervor da caridade daquele frade, perdoou a um e a outro. Estando um dia o dito Frei Simão na floresta em oração e sentindo grande consolação na alma, um bando de gralhas com o seu gritar começou a distraí-lo: pelo que ele ordenou em nome de Deus que deviam partir e não mais tornar.

E partindo-se então os ditos pássaros, dora em diante não mais foram vistos nem ouvidos, nem ali nem nos arredores. E este milagre foi manifestado a toda a custódia de Fermo, na qual estava o dito convento.

Em louvor de Cristo. Amém.

Capítulo 42
Dos belos milagres que Deus fez pelos santos frades, Frei Bentivoglio,
e Frei Pedro de Monticello e Frei Conrado de Offida:
e corno Frei Bentivoglio carregou um leproso por quinze milhas em pouquíssimo tempo,
e ao outro falou S. Miguel e ao outro veio a Virgem Maria e colocou-lhe o filho nos braços

A província da Marca de Ancona foi antigamente, do mesmo modo que o céu de estrelas, adornada de santos e exemplares frades; os quais, como luminárias do céu, iluminaram e adornaram a Ordem de S. Francisco e o mundo com exemplos e com doutrina.

Entre outros foi em primeiro lugar Frei Lúcido, o antigo, o qual foi verdadeiramente luzente de santidade e ardente pela caridade divina; cuja maravilhosa lingua informada pelo Espirito Santo fazia maravilhosos frutos de pregação. Um outro foi Frei Bentivoglio de S. Severino, o qual foi visto por Frei Masseo ser levantado no ar por muito tempo, estando ele em oração na floresta; pelo qual milagre o dito Frei Masseo, sendo então pároco, deixou a paróquia e fez-se frade menor; e foi de tanta santidade que fez muitos milagres na vida e na morte, e seu corpo repousa em Murro. O sobredito Frei Bentivoglio, vivendo uma vez sozinho em Trave Bonanti, para vigiar e servir a um leproso, tendo ordem do prelado para sair dali e ir a um outro lugar, distante quinze milhas, não querendo abandonar o leproso, com grande fervor de caridade tomou-o e carregou-o nos ombros e levou-o da aurora ao sol poente, por toda aquela estrada de quinze milhas até ao dito lugar aonde fora mandado, que se chamava Monte Sancino.

A qual viagem, se ele fosse águia, não teria podido em tão pouco tempo voar; e por este divino milagre houve grande assombro e admiração em todo aquele pais. Um outro foi Frei Pedro de Monticello, o qual foi visto por Frei Servodeo de Urbino (então seu guardião no antigo convento de Ancona), levantado da terra corporalmente cinco ou seis braços até aos pés do Crucifixo, diante do qual estava em oração.

Este Frei Pedro, jejuando uma vez na Quaresma de S. Miguel Arcanjo com grande devoção, e no último dia daquela Quaresma estando na igreja em oração, foi ouvido por um frade jovem o qual de propósito estava escondido sob o altar-mor para ver algum ato de sua santidade) a falar com S. Miguel Arcanjo, e as palavras que eles diziam eram estas.

Dizia S. Miguel: "Frei Pedro, tu te hás afadigado fielmente por mim e de muitos modos tens afligido teu corpo: eis, vim consolar-te, para que peças a graça que quiseres e eu a impetre de Deus". Respondeu Frei Pedro: "Santíssimo príncipe da milícia celestial e fidelíssimo zelador do amor divino e piedoso protetor das almas, peço-te a graça de impetrares a Deus o perdão dos meus pecados".

Respondeu S. Miguel: "Pede outra graça, que esta alcançarei facilmente para ti". E Frei Pedro não pedindo mais nada, o arcanjo concluiu: "Eu, pela fé e devoção que tens em mim, obterei para ti esta graça e outras muitas". Acabada a conversação, a qual durou muito tempo, o arcanjo S. Miguel partiu-se, deixando-o sumamente consolado.

No tempo deste Frei Pedro santo existiu o santo Frei Conrado de Offida, os quais estando juntos em família no convento de Forano, da custódia de Ancona, o dito Frei Conrado foi um dia à floresta para a contemplação de Deus, e Frei Pedro secretamente seguiu atrás dele para ver o que advinha; e Frei Conrado começou a estar em oração e rogar devotíssimamente à Virgem Maria com grande pranto que ela lhe obtivesse a graça do seu bendito filho, para que ele sentisse aquela doçura que sentiu S. Simeão no dia da Purificação, quando tomou aos braços Jesus salvador bendito. E feita esta oração, a misericordiosa Virgem Maria o atendeu, e eis que apareceu a rainha do céu com seu filho bendito no braço com grandíssima claridade de luz; e, aproximando-se de Frei Conrado, pôs-lhe no braço aquele bendito filho, o qual devotíssimamente recebendo e abraçando e beijando e cingindo ao peito, todo se derretia e consumia em amor divino e inexplicável consolação: e Frei Pedro semelhantemente, o qual escondido via tudo, sentia na alma grandíssima doçura e consolação.

E partindo-se a Virgem Maria de Frei Conrado, Frei Pedro às pressas voltou ao convento para não ser visto por ele: mas depois, quando Frei Conrado voltava todo alegre e jucundo, disse-lhe Frei Pedro: "Ó célico, grande consolação tiveste hoje".

Disse Frei Conrado: "Que é que dizes, Frei Pedro? Que sabes do que me aconteceu?" "Bem sei, bem sei, dizia Frei Pedro, como a Virgem Maria com o seu bendito filho te visitou". Então Frei Conrado, o qual, com verdadeira humildade, desejava estar em segredo nas graças de Deus, pediu-lhe que não dissesse a ninguém. E foi tão grande o amor daquela hora em diante entre os dois, que pareciam ter em todas as coisas uma mesma alma e um mesmo coração. E o dito Frei Conrado uma vez, no convento de Sirolo, com as suas orações livrou uma mulher possessa orando por ela toda a noite e aparecendo à sua mãe, e pela manhã fugiu para não ser encontrado e honrado pelo povo.

Em louvor de Cristo. Amém.

Capítulo 43
Como Frei Conrado de Offida converteu um jovem frade que molestava os outros frades.
E como o dito frade jovem, tendo morrido, apareceu ao dito Frei Conrado, pedindo que rezasse por ele, e como o livrou por suas orações das penas grandíssimas do purgatório

O dito Frei Conrado de Offida, admirável zelador da pobreza evangélica e da Regra de S. Francisco, foi de tão religiosa vida e de tanto mérito para com Deus, que Cristo bendito em vida e na morte o honrou com muitos milagres; entre os quais uma vez tendo ido como forasteiro ao convento de Offida, os frades pediram-lhe pelo amor de Deus e da caridade que admoestasse um frade jovem que havia naquele convento, o qual procedia tão infantilmente e desordenadamente que perturbava Os velhos e os jovens daquela família, e do oficio divino e das outras regulares observâncias pouco ou nada se importava.

Pelo que Frei Conrado, por compaixão daquele jovem e pelos pedidos dos frades, chamou à parte o dito jovem e com fervor de caridade lhe disse tão eficazes e devotas palavras de admoestação, que com a operação da divina graça ele subitamente se mudou de moço em velho de costumes e tão obediente e benigno e solicito e devoto, e ainda tão pacífico e serviçal, e tão cuidadoso para com todas as coisas de virtude, que, como primeiramente toda a família vivia perturbada por ele, assim depois todos estavam contentes e consolados e grandemente o amavam. Adveio, como aprouve a Deus, que poucos dias depois desta conversão o dito jovem morreu; do que os ditos frades muito se lamentaram, e poucos dias depois da morte sua alma apareceu a Frei Conrado, estando ele devotamente em oração, diante do altar do dito convento, e o saudou devotamente como a seu pai; e Frei Conrado lhe perguntou: «Quem és?" Respondeu: "Eu sou a alma daquele frade jovem que morreu há dias".

E Frei Conrado: "Ó filho caríssimo, que é feito de ti?" Respondeu ele: ' Pela graça de Deus e pela vossa doutrina vou bem, porque não estou danado: mas por certos pecados meus, os quais não tive tempo de purgar suficientemente, suporto grandíssimas penas no purgatório: mas te peço, pai, que, como por tua piedade me socorreste quando eu era vivo, assim agora queiras socorrer-me nas minhas penas, dizendo por mim algum painosso, porque a tua oração é muito aceita de Deus".

Então Frei Conrado, consentindo benignamente no pedido e dizendo por ele uma vez o pai-nosso com requiem aeternam, disse aquela alma: "Ó pai caríssimo, quanto bem e quanto refrigério eu sinto! Peço-te que o digas uma outra vez". E Frei Conrado disse e, dito que foi, disse a alma: "Santo pai, quando tu rezas por mim, sinto-me todo aliviado; pelo que te peço que não cesses de rezar por mim"- Então Frei Conrado, vendo que aquela alma era tão ajudada pelas suas orações, disse por ela cem pai-nossos e tendo terminado, disse aquela alma: "Agradeço-te, pai caríssimo, da parte de Deus pela caridade que tiveste comigo; porque pelas tuas orações estou livre de todas as penas e me vou ao reino celestial".

E dito isto partiu aquela alma. Então Frei Conrado, para dar alegria e conforto aos frades, lhes contou por ordem toda aquela visão.

Em louvor de Cristo bendito. Amém.

Capítulo 44
Como a Frei Conrado apareceu a mãe de Cristo e S. João Evangelista e S. Francisco;
e lhe disseram qual deles sofreu maior dor da paixão de Cristo

No tempo em que moravam juntos na custódia de Ancona, no convento de Forano, os sobreditos Frei Conrado e Frei Pedro os quais eram duas luzentes estrelas na província da Marca e dois homens celestiais); entre os dois havia tanto amor e tanta caridade, que parecia terem ambos o mesmo coração e uma mesma alma, e se ligaram por este pacto, que qualquer consolação que a misericórdia de Deus lhes desse, deviam revelar um ao outro por caridade.

Firmado entre ambos este pacto, sucedeu que um dia estando Frei Pedro em oração e pensando devotamente na paixão de Cristo, e como a Beatíssima Mãe de Cristo e S. João, diletíssimo discípulo, e S. Francisco estivessem pintados ao pé da cruz, pela dor mental crucificados com Cristo, teve ele o desejo de saber qual dos três tinha sofrido dor maior com a paixão de Cristo; se a mãe, que o tinha gerado, ou o discípulo, o qual havia dormido sobre o peito, ou S. Francisco, que com ele estava crucificado.

E permanecendo nesse devoto pensamento, aparece-lhe a Virgem Maria com S. João Evangelista e com S. Francisco, vestidos de nobilíssimas vestes de glória bem-aventurada; mas S. Francisco parecia vestido de vestes mais belas do que S. João.

E estando Frei Pedro todo espantado com esta visão, S. João o confortou e disse-lhe: "Não temas, caríssimo irmão, pois vimos consolar-te e esclarecer a tua dúvida. Sabe, pois, que a mãe de Cristo e eu sobre todas as criaturas sofremos com a paixão de Cristo; mas depois de nós S. Francisco teve dor maior do que outro qualquer; e por isso tu o vês com tanta glória". E Frei Pedro perguntou-lhe: "Santíssimo apóstolo de Cristo, por que a veste de S. Francisco parece mais bela do que a tua?" Respondeu S. João: "A razão é esta; porque, quando ele estava no mundo, trouxe consigo vestes mais vis do que eu".

E ditas estas palavras, S. João deu a Frei Pedro uma veste gloriosa, a qual nas mãos trazia, e disse: "Toma esta veste a qual trouxe para te dar". E querendo S. João vesti-lo com aquela veste, Frei Pedro estupefato caiu no chão e começou a gritar: "Frei Conrado, Frei Conrado caríssimo, socorre-me depressa; vem ver coisas maravilhosas".

E com estas palavras aquela santa visão desapareceu.

Depois, vindo Frei Conrado, ele lhe contou ordenadamente todas as coisas e agradeceram a Deus.

Capítulo 45
Da conversão e vida e milagres e morte do santo Frei João da Pena

Frei João da Pena, sendo menino e escolar na província da Marca, uma noite lhe apareceu um menino belíssimo e chamou-o dizendo-lhe: "João, vai a S. Estêvão, onde prega um dos frades menores, em cuja doutrina crê e a cujas palavras atende, porque lá o mandei.

E feito isto, tens de fazer uma grande viagem e depois voltaras a mim". Pelo que imediatamente se levantou e sentiu grande mudança na alma, e foi a S. Estêvão e achou uma grande multidão de homens e mulheres que foram ouvir a prédica. E quem devia pregar era um frade que tinha o nome de Frei Filipe, o qual era um dos primeiros frades que tinham vindo à Marca de Ancona (e ainda poucos conventos havia na Marca) - Sobe ao púlpito Frei Filipe para pregar e prega devotíssimamente, não com palavras de sapiência humana, mas em virtude do espírito de Cristo, anunciando o reino da vida eterna.

E terminada a prédica, o dito menino aproximou-se do dito Frei Filipe e disse-lhe: "Pai, se vos aprouver receber-me na Ordem, eu de boa vontade farei penitência e servirei a Nosso Senhor Jesus Cristo". Vendo Frei Filipe e percebendo no dito menino uma maravilhosa inocência e pronta vontade de servir a Deus, disse-lhe: "Vai ter comigo tal dia a Ricanati e farei que te recebam; no qual convento se deve reunir capítulo provincial». Pelo que o menino, o qual era puríssimo, pensou que esta fosse a grande viagem que devia fazer segundo a revelação que lhe fora feita, e depois ir-se ao paraíso; e assim acreditava suceder logo que fosse recebido na Ordem.

Lá foi e o receberam; e vendo que seu pensamento não se realizava então, dizendo o ministro em capítulo que todo aquele que quisesse ir à província da Provença, pelo mérito da santa obediência, ele de boa vontade dava licença, veio-lhe grande vontade de ir, pensando em seu coração que fosse aquela a grande viagem que tinha de fazer, antes que fosse ao paraíso. Mas envergonhando-se de dizê-lo, confiando finalmente no dito Frei Filipe, o qual o tinha feito receber na Ordem, pediu-lhe com instância que lhe obtivesse a graça de ir à província da Provença. Então Frei Filipe, vendo a sua pureza e sua santa intenção, obteve-lhe a licença: pelo que Frei João com grande letícia pôs-se a andar tendo a opinião de que, terminada a viagem, iria ao paraíso.

Mas, pela vontade de Deus, viveu na dita província vinte e cinco anos nesta expectação e desejo, vivendo em grandíssima honestidade e santidade e exemplaridade, crescendo sempre em virtude e em graça de Deus e do povo, e era sumamente amado pelos irmãos e os seculares - E estando um dia Frei João devotamente em oração, e chorando e lamentando-se porque o seu desejo não se realizava e a sua peregrinação por esta vida muito se prolongava, apareceu-lhe Cristo bendito, a cujo aspecto sua alma ficou toda liqüefeita, e lhe disse: "Filho Frei João, pede-me o que quiseres". E ele respondeu: "Senhor meu, não sei o que te pedir senão a ti mesmo, não desejo nenhuma outra coisa: mas isto só te peço, que perdoes todos os meus pecados e me concedas a graça de te ver outra vez, quando tiver maior necessidade".

Disse Jesus: "Atendida foi a tua oração"; e dito isto se partiu, e Frei João ficou todo consolado. Por fim, ouvindo os frades da Marca a fama de sua santidade, tanto fizeram com o geral, que ele lhe enviou a obediência de voltar à Marca.

A qual obediência recebendo alegremente, pôs-se em caminho, pensando que, terminando-o, deveria ir ao céu segundo a promessa de Cristo. Mas voltado que foi à província da Marca, nela viveu trinta anos sem ser reconhecido por nenhum parente e em cada dia esperava que a misericórdia de Deus lhe realizasse a promessa. E durante esse tempo exerceu diversas vezes o cargo de guardião com grande discrição, e Deus operou por ele muitos milagres. E entre outros dons que ele teve de Deus, teve o espírito de profecia: pelo que uma vez, andando por fora do convento, um seu noviço foi combatido pelo demônio e tão fortemente tentado, que, consentindo na tentação, deliberou consigo mesmo sair da Ordem logo que Frei João voltasse.

A qual tentação e deliberação conhecendo Frei João por espírito de profecia, imediatamente voltou a casa e chamou a si o dito noviço e disse que queria que ele se confessasse. Mas antes de confessá-lo contou-lhe por ordem toda a sua tentação, conforme Deus lhe havia revelado e concluiu: "Filho, porque esperaste e não quiseste partir sem a minha bênção, Deus te fez a graça de que jamais desta Ordem sairás, mas morrerás na Ordem com a graça divina». Então o dito noviço foi confirmado em boa vontade e, ficando na Ordem, tornou-se um santo frade: e todas estas coisas me foram por ele contadas a mim Frei Hugolino.

O dito Frei João, o qual era um homem alegre e calmo e raras vezes falava, e era um homem de grande oração e devoção, e especialmente após Matinas não mais voltava à cela e ficava na igreja até ao amanhecer em oração, estando ele uma noite após Matinas em oração, apareceu-lhe o anjo de Deus e disse-lhe: "Frei João, está concluída a tua viagem, a qual por tanto tempo esperaste, e por isso anuncio da parte de Deus que peças a graça que quiseres. E ainda te anuncio que escolhas o que preferes, um dia de purgatório ou sete de sofrimento neste mundo". E preferindo Frei João os sete dias de sofrimento neste mundo, subitamente enfermou de diversas enfermidades; pelo que o acometeu a febre forte, e a gota nas mãos e nos pés e dores nas costas e muitos outros males.

Mas o que lhe fazia mais tormentos era que o demônio estava em sua frente e tinha na mão um grande papel em que estavam escritos todos os pecados que ele tinha cometido ou pensado; e lhe dizia: "Por estes pecados que cometeste com o pensamento e a língua e com as obras serás danado nas profundas do inferno". E ele não se recordava de bem algum que tivesse feito, nem que estivesse na Ordem nem que nunca nela tivesse estado; mas sim pensava de estar danado como o demônio lhe dizia. De modo que, quando lhe perguntavam como estava, respondia: "Estou mal, porque estou danado".

Isto vendo, os frades mandaram vir um frade velho por nome Frei Mateus de Monte Rubiano, o qual era um santo homem e grande amigo de Frei João. Chegou o dito Frei Mateus junto dele no sétimo dia da tribulação e o saudou e perguntou-lhe como estava. Respondeu-lhe que estava mal, porque estava danado. Então disse Frei Mateus: "Ora, não te recordas de que muitas vezes te confessaste comigo e inteiramente te absolvi de todos os teus pecados? Não te lembras mais que serviste a Deus nesta santa Ordem por muitos anos? Depois, não te recordas que a misericórdia de Deus excede a todos os pecados do mundo e que Cristo bendito nosso Salvador pagou, para nos resgatar, um preço infinito? E por isso tem boa esperança que por certo serás salvo".

E com este falar, porque havia chegado ao termo de sua purgação, foi-se a tentação e veio a consolação. E com grande letícia disse a Frei Mateus: "Porque te fatigaste e a hora é tarda, peço-te que te vás repousar". E Frei Mateus não o queria deixar, mas por fim, pela grande instância dele, deixou-o e foi repousar: e Frei João ficou sozinho com o frade que o servia. E eis Cristo bendito vem com grandíssimo esplendor e com excessiva suavidade de perfume, segundo havia prometido aparecer-lhe outra vez quando maior precisão tivesse dele e assim o sarou perfeitamente de toda enfermidade.

Então Frei João com as mãos juntas, agradecendo a Deus que com ótimo fim terminara sua viagem da presente mísera vida, nas mãos de Cristo bendito recomendou e entregou sua alma, passando desta vida mortal à eterna com Cristo bendito, o qual havia por tanto tempo desejado e esperado.

E repousa o dito Frei João no convento da Pena de S. João.

Em louvor de Cristo. Amém.

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