sábado, 26 de novembro de 2011

Espelho da Perfeição - Capítulos LI a LX.






Capítulo 51. Como os frades daquele tempo se reconciliavam, quando um perturbava o outro.

1 Afirmava que, nestes últimos tempos, os frades menores foram enviados (cf. Jd 18; Jo 1,6) pelo Senhor para darem exemplos de luz aos envolvidos pela treva dos pecados. 2 Dizia.que se impregnava de suavíssimos perfumes (cf. Ex 29,18; Jo 12,3) e se ungia da força de um óleo precioso (cf. Mt 26,7), quando ouvia as maravilhas (cf. At 2,11) realiza­das pelos santos frades espalhados pelo mundo.

3 Uma vez, aconteceu que um frade lançou palavras (cf. Jó 18,2) injuriosas contra outro frade, na presença de um nobre da ilha de Chipre. Quando percebeu que, por isso, seu irmão ficara um pouco ofendido, levado pelo desejo de punir-se, imediatamen­te apanhou esterco de asno, 4 colocou-o na boca e mordeu-o com os dentes, dizendo: “Mastigue esterco a língua que derramou o veneno (cf. Pr 23,32) da raiva no meu irmão !” 5 Vendo isso, o ho­mem, atônito de espanto, foi embora edificado e, desde então, colocou tudo que era seu à disposição dos frades.

6 Porque todos os frades tinham o costume de, se algum deles dirigisse uma palavra injuriosa ou perturbadora ao outros, lançava-se imediatamente por terra (cf. 2Mc 10,4), beijava o pé do irmão ofendido e humildemente pedia perdão. 7 O santo pai ficava exultante com essas coisas, quando ouvia que .seus filhos tiravam exemplos de santidade de si mesmos e cumulava de bênçãos dignas de toda a aceitação (cf. 1Tm 1,15). os frades que, por palavras ou por obras (cf. Cl 3,17), induziam os pecadores ao amor de Cristo; 8 pois, estando ele próprio perfeitamente repleto de zelo (cf. At 5,17) pelas almas, queria que seus filhos fossem verdadeiramen­te semelhantes a ele.



Capítulo 52. Como Cristo se queixou a Frei Leão, companheiro do bem-aventurado Francisco, por causa da ingratidão e da soberba dos frades.

1 Uma vez, o Senhor Jesus Cristo disse a Frei Leão, compa­nheiro do bem-aventurado Francisco: “Frei Leão, tenho queixas contra os fra­des”. Perguntou-lhe Frei Leão: “Por que motivo, Senhor?” 2 E o Senhor disse: “Por três: porque não reconhecem meus be­nefícios que, tão pródiga e abundantemente derramo sobre eles, pois, como sabes, não semeiam nem ceifam (cf. Lc 12,24); 3 por­que murmuram o dia todo e estão ociosos (cf. Mt 20,6); e porque, com freqüência, provocam a ira um do outro, não voltam ao amor e não perdoam a injúria que recebem”.

Capítulo 53. Como humilde e sabiamente respondeu a um dou­tor da Ordem dos Pregadores que o interrogou sobre uma pala­vra da Escritura.

1 Durante sua permanência em Sena, veio a ele um doutor em Teologia, da Ordem dos Pregadores, um homem realmente hu­milde e muito espiritual. 2 Tendo conversado com o bem-aventurado Francisco sobre as palavras do Senhor, o referido mestre interrogou~o sobre a palavra de Ezequiel: “Se não falares ao ímpio de sua impiedade, pedirei contas a ti (cf. Ez 3,18) de sua alma”. 3 Disse: “Bom pai, conheço muitos que estão em pecado mortal, aos quais não anuncio a sua impiedade: deverei eu prestar conta da alma (cf. Ez 3,18) deles?”

4 O bem-aventurado Francisco disse humildemente que era iletrado e, por isso, era-lhe mais conveniente ser instruído por ele do que respon­der sobre a sentença da Escritura. 5 Então, o humilde mestre acres­centou: “Irmão, embora tenha ouvido de vários sábios a explica­ção dessa palavra, de boa vontade receberia tua opinião sobre ela”. 6 Então, o bem-aventurado Francisco respondeu: “Se a palavra deve ver entendi­da de modo geral, eu a compreendo assim: o servo de Deus deve arder e refulgir por sua vida e santidade de forma que, pela luz do exemplo e pela linguagem de um santo comportamento (cf. 1Tm 4,12), repreenda todos os ímpios. 7 Assim eu digo que o esplendor de sua vida e o perfume da própria fama anunciará a todos as suas iniqüidades” (cf. Ez 3,19).

8 O doutor ficou muito edificado e, quando ia embora, disse aos companheiros de São Francisco: “Meus irmãos, a teologia deste homem, apoiada na pureza e na contemplação, é uma águia que voa (cf. Jó 9,26); nossa ciência, em vez, arrasta o ventre pela ter­ra” (cf. Gn 1,20.22; 3,14).

Capítulo 54. A humildade e a paz com os clérigos.

1 Embora São Francisco quisesse que seus filhos vivessem em paz com todos os homens (cf. Rm 12,18) e se mostrassem peque­nos diante de todos, no entanto, ensinou-lhes com a palavra e mos­trou pelo exemplo a serem humildes sobretudo com os clérigos.

2 Com efeito, dizia: “Somos enviados como ajuda (cf. Sl 69,2; Dn 10,13) aos clérigos para a salvação das almas (cf. 1Pd 1,9), de forma que, se algo faltar neles, seja suprido por nós. 3 pO­rém, cada um receberá a recompensa conforme o trabalho (cf. 1Cor 3,8), não conforme a autoridade. 4 Irmãos, sabei que é muito do agrado de Deus a conquista das almas, e isso podemos conse­gui-lo melhor em paz com os clérigos do que com a discórdia. 5 Mas, se eles impedem a salvação das pessoas, a Deus cabe a vin­gança e ele lhes retribuirá no momento oportuno (cf. Dt 32,25). Por isso, sede submissos (cf. 1Pd 2,13) aos prelados, a fim de que, dependendo de vocês (cf. Rm 12,18), não surja um mau zelo. 6 Se fordes filhos da paz (cf. Lc 10,6), ganhareis o clero e o povo e isso é mais agradável a Deus (cf 1Pd 2,5) do que ganhar somente o povo, deixando o clero escandalizado. 7 Cobri suas fal­tas e supri seus muitos defeitos e, quando tiverdes feito isto (cf. Lc 17,10), sede ainda mais humildes”.

Capítulo 55. Com que humildade adquiriu a igreja de Santa Maria dos Anjos, do abade de São Bento de Assis, e quis que os frades sempre habitassem ali e vivessem com humildade.

1 Vendo o bem-aventurado Francisco que o Senhor queria multiplicar o nú­mero (cf. At 6,7) dos frades, disse-lhes: “Caríssimos irmãos e fi­lhinhos meus, vejo que o Senhor quer multiplicar-nos. 2 Pare­ce-me, pois, bom e religioso que adquiramos do bispo, ou dos cô­negos de São Rufino, ou do abade de São Bento uma igreja, 3 onde os frades possam suas horas e ter ao lado dela apenas uma pequena e pobre casa, construída de barro e vimes, onde os frades possam descansar e trabalhar. 4 Pois este lugar não é conveniente nem suficiente para os frades, agora que o Senhor quer multiplicá-los e, sobretudo, porque não temos aqui uma igre­ja onde os frades possam recitar suas horas. 5 E se algum frade vier a morrer, não seria conveniente sepultá-lo aqui nem na igreja do cle­ro secular”. Esta palavra agradou a todos (cf. J s 22,33) os frades.
6 Foi, então, ao bispo de Assis e expôs-lhe as palavras acima. O bispo lhe respondeu: “Irmão, não tenho nenhuma igreja que possa dar a vocês”. A mesma coisa responderam os cônegos.

7 Foi, então, ao abade de São Bento do Monte Subásio e expôs-lhe as mesmas palavras. 8 Compadecido e tendo feito uma reunião com seus monges, por obra da graça e da vontade divi­na, o abade concedeu ao bem-aventurado Francisco e a seus frades a igreja de Santa Maria da Porciúncula: a menor e mais pobre igreja que possuíam. 9 E o abade disse ao bem-aventurado Francisco: “Irmão, atendemos o que pediste. Mas, se o Senhor multiplicar esta vossa congregação, queremos que este lugar se torne a cabeça de tudo o que é vosso”.

10 E a palavra agradou (cf. At 6,5) ao bem-aventurado Francisco e a seus frades; o bem-aventurado Francisco alegrou-se muito com o local concedido aos frades, principalmente por causa do nome da igreja da Mãe de Cristo, 11 e porque era uma igreja muito pobre e pequenina e tam­bém porque era denominada de Porciúncula, e isso fazia antever que devia ser mãe e cabeça dos pobres Frades Menores. Chama­va-se Porciúncula, porque antigamente aquela região era chama­da de Porciúncula.
12 Daí que São Francisco dizia: “Por isso, o Senhor quis que nenhuma outra igreja fosse concedida aos frades 13 e que os pri­meiros frades não construíssem uma igreja nova nem tivessem outra além daquela. Dessa maneira, com a chegada dos Frades Menores realizou-se uma profecia”.

14 E, embora fosse pobrezinha e já quase destruída, por muito tempo as pessoas da cidade de Assis e de toda aquela região tive­ram a maior devoção por aquela igreja e têm a maior devoção até hoje: aumenta dia a dia. 15 Por isso, desde que os frades foram morar naquele lugar, quase diariamente o Senhor multiplicava o número (cf. At 6,7) deles, e o perfume de sua fama se espalhou admiravelmente por todo o Vale de Espoleto e por muitas regiões do mundo. 16 Antigamente, porém, chamava-se Santa Maria dos Anjos porque, conforme se diz, com freqüência foram ali ouvidos cantos angélicos.

17 E, embora o abade e os monges a tenham concedido livremente ao bem-aventurado Francisco e seus frades, o bem-aventurado Francisco, como bom e há­bil mestre, querendo fundamentar sua casa, isto é, sua religião, sobre uma rocha (cf. Mt 7,24) firme, isto é, sobre a maior po­breza, 18 anualmente enviava ao dito abade e aos monges um cesto ou um pequeno balaio cheio de peixinhos, chamados las­cas, como sinal da maior humildade e pobreza. 19 Isso para que os frades não tivessem nenhum lugar próprio nem permaneces­sem em algum lugar que não pertencesse a outrem e, também, para que jamais os frades tivessem poder de vendê-lo ou de al­guma forma aliená-lo. 20 Mas quando anualmente os frades leva­vam os peixinhos aos monges, por causa da humildade de São Francisco, que fazia isso por própria iniciativa, eles lhes davam uma vasilha cheia de óleo.

21 Nós que vivemos com (cf. 2Pd 1,18) o bem-aventurado Francisco damos testemunho (cf. Jo 21,24) de que, falando daquela igreja, ele afir­mou com ênfase que ali lhe foi revelado que, por causa das mui­tas prerrogativas que o Senhor ali mostrou, entre todas as igrejas do mundo que a Bem-aventurada Virgem ama, amava esta igreja com a maior afeição. 22 E, por esse motivo, desde então ele teve o maior respeito e devoção por ela e, para que os frades sempre lembrassem disso no coração, na sua morte mandou es­crever no Testamento que os frades agissem da mesma forma. Com efeito, perto de sua morte, diante do ministro geral e dos demais frades, disse: 23 “Quero organizar e deixar o lugar de Santa Maria da Porciúncula como testamento aos frades, para que sempre seja tratado pelos frades com a maior devoção e respeito.
24 É o que fizeram os nossos antigos frades: mesmo que o lu­gar seja santo, predileto e escolhido por Cristo e pela Virgem glo­riosa, conservavam sua santidade rezando ininterruptamente e observando o silêncio dia e noite. 25 E se, por vezes, falavam de­pois que terminava o silêncio estabelecido, falavam com a maior devoção e dignidade e somente sobre assuntos relativos ao lou­vor de Deus e à salvação das almas (cf. 1Pd 1,9). 26 E se, por aca­so, alguém começasse a falar palavras inúteis e ociosas (cf. Mt 12,36), embora isso acontecesse raramente, imediatamente era corrigido por outro frade.

27 Mortificavam sua carne com muitos jejuns e vigílias, frio e nudez e pelo trabalho de suas mãos (cf. 2Cor 11,27). 28 Muitas ve­zes, também, para não ficarem ociosos, ajudavam os pobres em seus campos e estes, depois, lhes davam pão por amor de Deus. Santificavam o lugar com estas e outras virtudes e manti­nham-se em santidade. 29 Mais tarde, porém, porque frades e secu­lares afluíam àquele lugar mais do que de costume 30 e tam­bém porque os frades eram mais frios na oração e nas obras de virtude e mais soltos para dizer palavras ociosas (cf. Mt 12,36) e novidades deste século do que costumavam, o lugar não se conser­vou com tanto respeito e devoção como até então se costumava e conforme eu gostaria”.

31 Dito isso, o bem-aventurado Francisco concluiu imediatamente, com grande fervor, dizendo: “Quero, pois, que este lu­gar esteja sempre sob o direto poder do ministro geral e servo (cf. Mt 20,26.27), 32 para que tenha o maior cuidado e solicitude em estabelecer ali uma boa e santa família.

33 Os clérigos sejam escolhidos entre os melhores, mais san­tos e mais virtuosos frades que haja em toda a religião e que me­lhor saibam recitar o ofício; para que não somente os seculares, mas também os outros frades os vejam e ouçam de boa vontade e com grande devoção.

34 Escolham-se para servi-los também dentre os irmãos leigos, homens santos, discretos, humildes e virtuosos. 35 Quero também que nenhuma pessoa e nenhum frade entre nesse lugar, a não ser o ministro geral e os frades que os servem. 36 E eles não fa­lem com nenhuma pessoa, senão com os frades que os servem e com o ministro, quando os visitar.

37 De forma semelhante, quero que os irmãos leigos que os servem sejam obrigados a nunca dizer-lhes palavras ociosas (cf. Mt 12,36) ou novidades deste século ou qualquer outra coisa que não seja útil às suas almas. 38 E, assim, quero especialmente que ninguém entre naquele lugar, para que eles melhor conservem sua pureza e santidade e que, aí, nada absolutamente se faça ou diga inutilmente, mas todo o lugar seja conservado puro e santo, em meio a hinos e lou­vores do Senhor.
39 E quando algum destes frades migrar para o Senhor, quero que em seu lugar seja mandado pelo ministro geral outro frade santo, onde quer que estiver, 40 pois, se os outros frades, alguma vez, se afas­tarem da pureza e da dignidade, quero que este lugar seja abenço­ado 41 e permaneça sempre o espelho e o bom exemplo de toda a Ordem, como um candelabro sempre ardente e luminoso (cf. Jo 5,35) ante o trono de Deus (cf. Ap 4,5) e a Bem-aventurada Vir­gem, 42 pelo qual o Senhor seja indulgente com os defeitos e as cul­pas de todos os frades e conserve sempre e proteja esta sua religião e plantinha”.

Capítulo 56. A humilde reverência que dedicava às igrejas, varrendo-as e limpando-as.

1 Um tempo, quando estava em Santa Maria da Porciúncula e os frades ainda eram poucos, o bem-aventurado Francisco ia por aquelas vi­las e igrejas em torno de Assis, anunciando.e pregando às pessoas que fizessem penitência. 2 Levava uma vassoura para varrer as igrejas sujas, pois o bem-aventurado Francisco sofria muito quando via algu­ma igreja que não estivesse limpa como queria.

3 Por isso, terminada a pregação, reunia todos os sacerdotes presentes em algum lugar separado, para não ser ouvido pe­los seculares, 4 e pregava-lhes sobre a salvação das almas e, principalmente, para que fossem solícitos para manter limpas as igrejas, os a1tares e tudo o que se usa para a celebração dos mistérios divinos.

Capítulo 57. O camponês que o encontrou varrendo humilde­mente a igreja e, convertido, entrou na ordem e foi um santo frade.

1 Tendo ido à igreja de uma vila da cidade de Assis, co­meçou a varrê-la humildemente e limpá-la. Saiu imediatamente, a notí­cia sobre ele por toda a vila, pois com prazer era visto por aquelas pessoas, e ouvido com prazer ainda maior. 2 Assim que ou­viu isso, um camponês de admirável simplicidade, chamado João, que estava arando em seu campo, dirigiu-se logo a ele e o encon­trou varrendo a igreja humilde e devotamente. 3 E lhe disse: “Ir­mão, dá-me a vassoura, pois quero te ajudar”. E, recebendo a vas­soura de suas mãos, varreu o que faltava.

4 Sentaram-se juntos, e ele disse ao bem-aventurado Francisco: “Irmão, já faz tempo que tenho vontade de servir a Deus, especi­almente depois que ouvi falar de ti e dos teus frades, mas não sa­bia como chegar a ti. 5 Por isso, agora que agradou ao Senhor que eu te visse, quero fazer o que te agradar”.

6 Considerando o seu fervor, o bem-aventurado Francisco exultou no Se­nhor, principalmente porque naquele tempo tinha poucos frades e lhe parecia que, por sua simplicidade e pureza, deveria ser um bom religioso. 7 Então lhe disse: “Irmão, se queres participar de nossa vida e companhia, é preciso que te desfaças de tudo que pode ter sem escândalo e dês tudo aos pobres (cf. Mt 19 ,21), conforme o conselho do santo Evangelho, pois assim fizeram todos os meus frades que puderam”.
8 Ouvindo isso, voltou logo para o campo, onde tinha deixado os bois, e os soltou. Levou um a São Francisco e disse: “Ir­mão, por muitos anos servi a meu pai e a todos os de minha casa. 9 Embora seja pequena esta porção de minha herança, quero rece­ber este boi como minha parte e dá-lo aos pobres, segundo me­lhor te parecer”.
10 Mas vendo que queria deixá-los, seus pais e seus irmãos, que eram ainda pequenos, e todos os de sua casa começaram a chorar tão fortemente e a erguer vozes tão dolorosas que o bem-aventurado Fran­cisco se moveu de piedade, porque era uma família gran­de e de poucos recursos. 11 Disse-lhes: o bem-aventurado Francisco: “Preparai uma refeição para todos nós, comamos todos juntos, e não choreis, porque vou deixá-los bem alegres”. Eles logo prepararam e come­ram todos juntos com grande alegria.

12 Depois da refeição, disse-lhes o bem-aventurado Francisco: “Este vosso fi­lho quer servir a Deus, e disso não deveis entristecer-vos, mas alegrar-vos muito. 13 Com efeito, não só diante de Deus mas também diante deste século, a vós é dada uma grande honra e proveito para as almas e os corpos, pois Deus é honrado com vossa carne e todos os nossos frades serão vossos filhos e ir­mãos. 14 Não posso nem devo devolvê-lo a vós, porque é criatura de Deus e ele quer servir a seu criador, a quem servir é reinar. 15 Mas, para terdes dele um consolo, quero que ele ceda a vós este boi que lhe pertence, porque sois pobres, embora, segundo o Evangelho, deveria dá-lo a outros pobres” (cf. Mt 19,21). 16 E to­dos ficaram consolados com as palavras do bem-aventurado Francisco e se alegraram, sobretudo pelo boi que lhes foi devolvido, porque eram muito pobres.

17 E como agradava muito ao bem-aventurado Francisco a pura e santa simplicidade, em si e nos outros, imediatamente o vestiu com as roupas da religião e o levava humildemente consigo, como seu companheiro. 18 Pois ele de uma simplicidade tão grande que tinha que fazer tudo que o bem-aventurado Francisco fazia. Assim, quando São Francisco estava a rezar numa igreja ou em outro lugar, ele queria vê-lo, para conformar-se exatamente em todos os seus atos e gestos. 19 De modo que, se São Francisco dobrava os joe­lhos, ou elevava as mãos ao céu (cf. Dt 32,40), ou cuspia, ou tos­sia, ou suspirava, também ele fazia tudo parecido. 20 Quando o bem-aventurado Francisco percebeu isso, começou a repreendê-lo com grande alegria por essas simplicidades. 21 Mas ele lhe respondeu: “Irmão, prometi fazer tudo o que tu fazes e, então, preciso ser con­forme a ti em tudo”. 22 Vendo-o tão puro e simples, o bem-aventurado Francisco ficou muito admirado e contente.

23 De fato, depois ele começou a progredir tanto em todas as virtudes e bons costumes que o bem-aventurado Francisco e todos os outros frades se admiravam muito de sua perfeição. Pouco tempo depois, ele morreu naquele santo progresso de virtudes. 24 Por isso, mais tarde, quando, com muita alegria interior e exterior, o bem-aventurado Francisco falava com os frades sobre o seu comportamento, não o chamava de Frei João, mas de São João.

Capítulo 58. Como puniu a si mesmo, comendo na escudela com um leproso, porque o fizera passar vergonha.

1 Voltando à igreja de Santa Maria da Porciúncula, o bem-aventurado Francisco encontrou Frei Tiago o Simples, em companhia de um leproso bastante ulcerado. 2 São Francisco havia-lhe recomendado aquele leproso e todos os outros, porque era como um médico de­les e, de bom grado, tocava, limpava e curava suas feridas, 3 pois nesse tempo os frades moravam nos leprosários.

4 Em tom de repreensão, disse o bem-aventurado Francisco a Frei Ti­ago: “Não deverias levar assim os irmãos cristãos, porque não é conveniente para ti nem para eles”. 5 Pois, embora quisesse que os servisse, não queria que levasse para fora do hospital aqueles que estavam muito chagados, porque as pessoas costumavam ter muita repugnância deles, 6 e Frei Tiago era tão simples que ia com eles do hospital até a igreja de Santa Maria, como se fosse com os frades. 7 O bem-aventurado Francisco chamava os leprosos de irmãos cristãos.

8 Tendo dito isso, o bem-aventurado Francisco logo se repreendeu, pensando que o leproso tivesse ficado envergonhado por causa da repreensão que fizera a Frei Tiago. 9 Por isso, querendo satisfazer a Deus e ao leproso, disse sua culpa a Frei Pedro Cattani que era, então, o ministro geral. 10 E disse: “Quero que confirmes a peni­tência que resolvi fazer por esta falta e que de modo algum me contradigas”. Ele respondeu: “Irmão, faze como te agradar”. 11 Pois Frei Pedro tinha tanta veneração e respeito por ele que não ousava contradizê-lo, embora muitas vezes ficasse aflito.
12 Então, São Francisco disse: “Esta seja a minha penitência: que eu coma numa escudela junto com o irmão cristão”. 13 Assim, quando o bem-aventurado Francisco se sentou à mesa com o leproso e os outros frades, foi colocada uma escudela entre São Francisco e o leproso. 14 O leproso estava totalmente ulcerado, repugnante e, até, disso, tinha os dedos, com os quais tirava os bocados da escude­la, contraídos e ensangüentados, de forma que quando os punha na escudela, o sangue e o pus dos dedos escorriam nela. 15 Vendo isso, Frei Pedro e os outros frades ficaram muito tristes, mas nada ousavam dizer, por temor e respeito para com o santo pai.

16 Quem escreveu viu estas coisas e dá testemunho delas (cf. Jo 19,35,21,24).

Capítulo 59. Como afugentou os demônios com palavras de hu­mildade.

1 Certa ocasião, o bem-aventurado Francisco foi à igreja de São Pedro de Bovara, perto do castelo de Trevi, no Vale de Espoleto; e foi com ele Frei Pacífico que, no século, era chamado de rei dos ver­sos, um homem nobre e cortês mestre de canto.
2 Aquela igreja estava abandonada. Então, o beato Francisco dis­se a Frei Pacífico: “Volta para o hospital dos leprosos, porque, nesta noite, quero ficar sozinho aqui. Amanhã bem cedinho voltarás a mim”.

3 Quando ficou sozinho e recitou as Completas e as outras orações, quis descansar e dormir, mas não pôde. 4 Seu espírito co­meçou a ter medo, o corpo a tremer e a sentir as sugestões diabó­licas. Saiu logo da igreja e fez o sinal-da-cruz, dizendo: “Da par­te de Deus onipotente, eu vos ordeno, demônios, que façais com meu corpo o que vos for permitido pelo Senhor Jesus Cristo, pois estou pronto a suportar tudo. 5 Sendo meu corpo o maior inimigo que eu tenho, vingar-me-eis do meu adversário (cf. Lc 18,3) e pior inimigo”.

6 Imediatamente cessaram por completo as tentações e, re­gressando ao local onde estava deitado, dormiu (cf. 1Sm 3,2.9) em paz.

Capítulo 60. A visão de Frei Pacífico, que viu e ouviu que o trono de Lúcifer estava reservado ao humilde Francisco.

1 Chegada a manhã (cf. Jo 21,4), Frei Pacífico voltou até ele. O bem-aventurado Francisco estava diante do altar em oração. Frei Pacífico espe­rou-o fora do coro, orando também diante do crucifixo. 2 E quando começou a rezar, foi elevado e arrebatado ao céu — se foi no corpo, ou fora do corpo, só Deus soube (cf. 2Cor 12,2.3) — e viu muitos tronos no céu; entre os quais um mais elevado e mais glorioso que os ou­tros, refulgente e ornado de toda espécie de pedras preciosas (cf. Ap 21,19). 3 E, admirando sua beleza, começou a indagar a si mes­mo (cf. Dn 4,16) a quem pertenceria aquele trono. E logo ouviu uma voz que lhe dizia (cf. At 9,4): “Este trono pertenceu a Lúcifer; em seu lugar sentar-se-á nele o humilde Francisco”.
4 Logo que voltou a si, o bem-aventurado Francisco saiu e foi ter com ele; o irmão lançou-se a seus pés (cf. At 10,25), com os bra­ços em cruz. 5 E, considerando-o como se já estivesse no céu sen­tado naquele trono, disse-lhe: “Pai, perdoa-me e roga ao Senhor que tenha pena de mim e perdoe meus pecados”. 6 Estendendo a mão (cf. Mt 14,31), o bem-aventurado Francisco ergueu-o e compreendeu ime­diatamente que ele tinha visto (cf. Lc 1,22) alguma coisa na oração. Com efeito, parecia totalmente mudado e falava com o bem-aventurado Francisco não como a alguém que vive na carne, mas como se já estivesse reinando no céu.

7 Depois, porém, não querendo contar a visão ao bem-aventurado Francis­co, começou a falar-lhe por rodeios e, entre outras coisas, disse: “Irmão, o que pensas de ti mesmo?” 8 O bem-aventurado Francisco respondeu e lhe disse: “Acho que sou um pecador maior do que qual­quer outro que existe neste mundo”. 9 No mesmo instante, foi dito à alma de Frei Pacífico: “Nisto podes saber que a visão que tives­te foi verdadeira (cf. Dn 8,26), porque, assim como Lúcifer, por sua soberba, foi alijado de seu trono, Francisco, por sua humilda­de, merecerá ser exaltado e sentar-se nele”.

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